quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Mário Soares vs Pacheco Pereira



















Não vi a totalidade do programa «Os Prós e os Contras» que os opôs. Do pouco que que vi, aqui ficam as minhas impressões.

De um lado, Pacheco Pereira, inteligente, articulado, defendendo com vigor as suas posições. Do outro, Mário Soares, titubeante, discurso entaramelado, raciocínio aproximativo. Apenas lhe restava a combatividade, a sua extraordinária capacidade de se bater por aquilo em que acredita; mas perdeu-se o conteúdo, o sentido da inteligência, o fio de Ariana do verbo. Pela primeira vez desde 1974, apercebi-me da sua velhice e de uma fragilidade que é, ao mesmo tempo, patética e comovente.

Assim, o debate não existiu. Mas, por muito que tenha ganho (formalmente) a discussão, Pacheco Pereira não tem razão:

1. Não tem razão quando não distingue a intervenção norte-americana no Afeganistão e no Iraque. A primeira constituiu uma resposta justa ao ataque dirigido contra os Estados Unidos; e, como tal, teve o apoio da comunidade internacional (sim! até da França, dos cínicos franceses, dos maquiavélicos franceses, acreditam?). A segunda correspondeu a outros objectivos: os de um punhado de neo-conservadores, reunidos em torno de Cheney, Rumsfeld e Wolfowitz, que acreditavam no papel messiânico dos Estados Unidos e no célebre eixo do mal de que faria parte o Iraque de Saddam Hussein. Ora, até o próprio Bush, no discurso que fez no passado dia 11 de Setembro, cinco anos depois dos atentados, teve que reconhecer que Saddam nada tinha a ver com os ataques desse dia. E já sabemos que não existiam armas de destruição massiva no Iraque. Os dois argumentos usados para justificar a guerra preventiva caíram diante dos factos: até o «Economist» já aceita ter sido enganado.

2. Não tem razão quando pretende que um país se pode arrogar o direito de exportar a democracia – principalmente se esse país é os Estados Unidos. Com efeito, por um lado, não temos que recuar muito longe no tempo para encontrarmos ocasiões em que os Estados Unidos exportavam ditaduras: 11 de Setembro é também o dia do golpe de Estado contra Allende, dirigido por Pinochet. E Pinochet é uma figura sinistra. No seu tempo, pretextando a luta contra o comunismo, deitavam-se opositores políticos ao mar, de aviões que voavam a três mil metros de altitude. Por outro lado, exportar a democracia é um assunto perigoso. Não é evidente que a intervenção estrangeira não se traduza, em vez de substituir a ditadura pela democracia, numa simples mudança de cliques dirigentes. Principalmente, se os meios utilizados forem, como foram, mesquinhos.

3. Não tem razão quando se esquece de falar de Guantanamo. Se, na verdade, estivéssemos em plena guerra de civilizações, se lutássemos em defesa nos nossos valores (dos chamados «valores ocidentais» que, contudo, ao longo dos séculos se forma definido em luta contra os poderes instituídos no Ocidente – através de lutas que nunca foram fáceis e pelas quais muitos homens e mulheres pagaram o preço, em vidas ceifadas ou destruídas), então como justificar a atitude americana face a Guantanamo; à tortura; às convenções de Geneva? Defendemos estes valores ao mesmo tempo que, na prática quotidiana, os espezinhamos?

4. Não tem razão quando se esquece de referir os resultados da política de Bush. (E este critério – resultados, eficácia – é o que os seus adeptos nos lançam à cara quando falamos, por exemplo, de preservar os direitos individuais dos suspeitos de terrorismo.) Ora, só para citar alguns:

– Bin Laden não foi capturado e o seu movimento continua (crescentemente) a arregimentar adeptos;

– O Irão – ou seja, o chiismo muçulmano – é a mais importante força no Médio Oriente. As posições dos chiitas, como o Hezbollah no Líbano, reformaram-se imenso desde a intervenção americana.

A quem serve a nova geopolítica do Médio Oriente? Até há algum tempo, esta região caracterizava-se por ser perigosa mas estável; agora é perigosa e instável. E cada vez mais afastada dos interesses ocidentais. O Irão surge como o grande vencedor de um conflito em que não participou directamente.

5. Não tem razão quando pretende que os Estados Unidos têm uma opção militar real no Irão. No actual estado de coisas, quando o exército americano se confronta com imensas dificuldades de recrutamento, uma invasão do tipo da que levaram a cabo no Iraque está para além das suas possibilidades. O ataque selectivo a instalações iranianas, através de armas nucleares tácticas (única solução possível, no puro plano militar, ao que parece), levantaria contra eles o resto do mundo. A única solução para a ameaça nuclear constituída pelo Irão passa pela negociação. Não porque a negociação seja necessariamente eficaz. Mas porque, em face dos dados militares, não há outra. Para além de que não podemos negar razão a Mário Soares quando pergunta: porquê o Irão? Porquê só o Irão? E o Paquistão? E a Índia ou a China? E, principalmente, Israel? Se olharmos as coisas com um mínimo de seriedade, como podemos considerar razoável que Israel – um pequeno Estado rodeado de inimigos – tenha a arma nuclear? Porque, se o nosso objectivo é evitar a sua utilização, o riso maior desta vem inevitavelmente de Israel – a não ser que, como Bush, Blair ou Pacheco Pereira, olhemos as coisas pelo prisma dos nossos preconceitos e concluamos:gostamos de Israel, e por isso perdoamos-lhe a arma nuclear; não gostamos do Irão, e por isso não lha perdoamos.

6. Não tem razão quando não critica a actual posição dos Estados Unidos em relação a Israel. (E, a talhe de foice, não tem razão quando diz que, entre Bush e Clinton, não há diferenças essenciais: há-as, pelo menos no que respeita a Israel.) Durante anos, os Estados Unidos tentaram ser no Médio Oriente, com avanços e recuos, com dificuldades, mesmo com certa hipocrisia, um «honest broker». Hoje, são os partidários declarados de uma das partes em conflito. O drama da administração Bush é que deu a Israel uma sensação de impunidade, a ideia de que pode fazer tudo o que lhe apetece sem consequências de maior. A atitude de Israel em relação a Abbas, a recusa em compreender quem depois de Arafat, tinha diante de si um homem com quem era possível chegar a acordo, a teimosia na solução militar, que levaram ao poder as forças mais extremistas do Hamas, foi suicidária. É difícil – principalmente para alguém que considera o holocausto como o maior crime histórico de sempre – assistir ao drama de ver o povo judeu criar de própria vontade (e refugiar-se nele) um novo gueto, delimitado por muros e arame farpado, por patrulhas de reconhecimento, por homens armados e em uniforme. Para sobreviver, Israel precisa dos outros países da região, que mais não seja por uma questão demográfica. Nenhum Estado pode resistir a uma diferença de população em relação a vizinhos hostis tão elevada como aquela que separa Israel dos países com que tem fronteiras.

Mesmo se ganhou a Mário Soares – digamos, por desistência do adversário provocada por grave lesão – Pacheco Pereira não venceu o argumento. Infelizmente, é impossível convencê-lo disso.