terça-feira, 19 de outubro de 2010

Conclusão


Sempre fui uma pessoa privada. O meu universo não se resumiu exclusivamente às minhas filhas e ao meu filho, e mais tarde às minhas netas, mas a Sofia, a Inês, a Trezzu e o Dico, e depois a Xá e a Constança, foram sempre a parte mais importante da minha vida. Nunca me impliquei de forma inteira na vida profissional: não me interessava. Concentrei os meus esforços em criar em torno de mim, com as minhas filhas e o meu filho, as minhas netas, e os meus filhos por acrescento, um espaço de amor e de ternura. Dei-lhes o que podia. Fui recompensado: recebi tudo o que dei e muito mais.


Minhas queridas, meu querido: aflige-me não vos encontrar palavras de consolação. Não sou religioso; não acredito que voltemos a encontrar-nos. E sei a dor, a tristeza, imensas, que a minha morte vos deixará. É isto que mais me desola. Não poder ver-vos mais, não ouvir os vossos risos, a vossa voz, as nossas discussões; não reatar esta comunhão que sempre nos uniu. Um universo em que todos cabíamos, e que se abriu, ao longo dos anos, ao Diogo e o João. Posso apenas dizer-vos que nunca perdemos aqueles que amamos. De uma certa forma, estaremos juntos: na vossa memória e, sobretudo, no vosso coração. São bocados de mim que guardarei convosco. Parece pouco mas, em alguns momentos da vossa vida, será muito.


Hoje é dia de tristeza mas não quero esquecer a alegria. Os meus livros, a minha música, o meu i-Pod... Vejo-me, por vezes, já depois dos cinquenta anos, desenhando nas ruas uma figura algo desajustada, com os auscultadores pendurados nas orelhas, um livro nas mãos, a mochila a tiracolo, e, mergulhado na leitura, sucedendo-se os inevitáveis encontrões com quem me cruzava distraído. E o mar, as ondas da Foz do Arelho, a praia, Cascais, a Pérgola, as livrarias, as discotecas... Isto é o que quero que principalmente recordem, os momentos felizes: o nascimento das minhas filhas, do meu filho, das minhas netas, algumas conversas com a minha Mãe, as conversas de sábado com a Xá, o riso da Constança, algumas viagens a Itália, e tantos momentos de tranquila solidão, aquela solidão que se suporta facilmente porque se sabe que o bulício das crianças que entretanto cresceram virá decerto e depressa.


E quero lembrar alguns amigos. O Francisco, meu irmão, que comunga comigo da memória da Mãe, e a Nanuz; o Pedro, primo que se transformou em irmão, com o seu optimismo que tantas vezes me deu forças, e a Ana; o Rui, o mais velho amigo, mais de quarenta anos em cumplicidade, mesmo se às vezes longínqua embora nunca distante, e a Margarida; o Carlos, sem quem estes últimos meses teriam sido muito mais difíceis, e a Prista; e alguns outros.


Sendo eu esta pessoa íntima, privada, sempre pensei o meu futuro com muitos anos mais, rodeado da minha família, filhas, filho, filhos, netas, netos, até bisnetos. É apenas nesta medida que sinto esta partida como uma injustiça: mas a sorte, ou a má sorte, decidiu de outra forma. Não queria ir-me embora tão depressa. Não parto resignado: queria viver. Enraivece-me ter de deixar-vos cedo: queria ficar convosco muito mais tempo.


Mas não tenho medo.


E pronto. Se a minha vida acabou agora, a vossa vida, Sofia, Inês, Trezzu, Dico, Xá e Nini, continua ou começa. Gostaria, depois destes momentos de tristeza, que ela fosse coberta de alegria e, principalmente, de ternura. Porque esta é a mensagem que vos deixo: a ternura que semeei em vós e que quero que continue a crescer, mesmo que eu esteja longe. Esta ternura dar-vos-á o amparo necessário.


Minhas queridas, meu querido: o vosso amor foi o que de mais importante me aconteceu. Despeço-me com as mesmas palavras das minhas mensagens. Um grande beijinho et je vous aime beaucoup.


Poemas

Manhã de Outono num Palácio de Sintra


Um brilho de azulejo e de folhagem

Povoa o palácio que um jovem rei trocou

Pela morte frontal no descampado


Ele não quis ouvir o alaúde dos dias

Seu ombro sacudiu a frescura das salas

Sua mão rejeitou o sussurro das águas


Mas o pequeno palácio é nítido – sem nenhum fantasma –

Sua sombra é clara como a sombra de um palmar

No seu pátio canta um alvoroço de início

Em suas águas brilha a juventude do tempo



Sophia de Mello Breyner

Dual (1972)



Casa


A antiga casa que os ventos rodearam

Com suas noites de espanto e de prodígio

Onde os anjos vermelhos batalharam


A antiga casa de inverno em cujos vidros

Os ramos nus e negros se cruzaram

Sob o íman dum céu lunar e frio


Permanece presente como um reino

E atravessa meus sonhos como um rio



Sophia de Mello Breyner

Geografia (1967)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Respirar, engolir, tiróide e depois, para alegrar, Vargas Llosa e família

Estou a escrever muito cedo. Já estou mesmo farto das minhas insónias e decidi recomeçar a viver como antes do cancro, ou seja, a dormir quando tenho vontade, seja de noite, manhã ou tarde. Assim, acordado por volta das quatro, voltei para a sala e deitei-me no sofá. Dormi alguma coisa. São oito horas agora.


Já disse que a quimioterapia correu de novo bem e, mais uma vez, e pelo menos dois dias já passados, sem efeitos secundários. O que me preocupa agora — porque há sempre qualquer coisa que me preocupa — são os problemas de respiração e deglutição. A zona à volta da tiróide duplicou ou triplicou de volume e faz-me pressão sobre a garganta. Respiro (não tive problemas de asfixia durante a noite e ainda tenho posição sentada e deitada de forma confortável, se bem que não por muito tempo de seguida) e engulo, mas muito mais dificilmente — as minhas refeições agora são sopas. Já tinha chamado a atenção do Dr. Depaus (ortografia corrigida) sobre tudo isto mas é verdade que, na altura em que ele me viu, o inchaço não era tão evidente. Vou falar-lhe logo que ele chegar às nove. Estou mais descansado porque a Sofia, Diogo e crianças chegam esta noite: não vou estar sozinho.


Fiquei muito contente com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Mário Vargas Llosa e estou a preparar o artigo que quero inserir aqui no blogue, possivelmente ainda hoje mas, ao mais tarde, amanhã.


E, Dico, não esqueci do artigo sobre o Lula mas ficará para depois do Vargas Llosa — provavelmente para domingo. Beijinhos para si.


E ainda para a Inês e Trezzu, de quem tenho saudades. Da Sofia et alii de Paris também mas já disse que os verei ainda hoje.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Quimioterapia/3

Mesmo quarto que da última vez – aquele cuja única vantagem era a posição da abertura das janelas que agora não tem nenhuma importância porque está imenso frio no quarto e as janelas ficarão... fechadas. Pelo contrário, o quarto continua feio e desconfortável.


O novo assistente da Maazeo é o Dr. De Pos. (Não sabia que variavam tanto: será que ela é insuportável?) Simpático, ouviu-me com atenção a propósito das insónias e da respiração. Umas gotas para dormir, aerossóis – vamos ver. Já nada me convence. Falou também de fazer um teste (amanhã?) para verificar se tenho uma bronquite crónica. Porque não, se bem que nunca ninguém me tenha falado disso e que o que eu quero é mesmo tratar das insónias? Mas dói-me a garganta. Quando respiro, silvo... Até as enfermeiras notaram e se preocuparam.


Os aerossóis são desagradáveis de utilizar (um tubo parecido com um charuto havana de plástico enfiado na boca pelo qual se inspira e expira; parece que estamos a mastigar um bife duríssimo e os dentes ficam doridos) mas parecem eficazes a limpar a garganta e os brônquios.


Emagreci 4 quilos desde a última sessão. Estou com 82. É natural porque não como bem porque ando sempre exausto e com sono. É o que sempre digo: as insónias estão a prejudicar o tratamento do cancro para além de me deixarem desorientado. Não é saudável.


Para não continuar a emagrecer, deram-me um complemento alimentar com sabor a moka (não é desagradável mas há-os também a saber a chocolate, morangos e baunilha). Foi uma boa ideia porque já quase me tinha esquecido dos wonder jantares aqui do hospital. Hoje, salada de feijão verde cru com uns bocados de fiambre mal cortados e, ao fundo, mas nem investiguei adequadamente, pareceu-me que restos da salada do almoço. Bem hajam os complementos alimentares!



Quimioterapia no centenário da República

Dia da quimioterapia a coincidir com o centenário da I República. Há comemorações em Portugal; por aqui, comemoro, efectuando o meu tratamento.


Disseram-me do hospital que bastava aparecer por volta das duas da tarde. Deito-me a adivinhar: quarto livre só a partir dessa hora? transfusão desnecessária por serem boas as análises do sangue ontem efectuadas? Saberei tudo isto daqui a poucas horas. Estes parágrafos são apenas desperdício de esforços. Mas só tenho tempo livre pela minha frente... Melhor aproveitá-lo.


Voltei a dormir muito pouco mas ocorreu-me a ideia de que tenho encarado o problema das insónias pela via errada. Ou seja que, ao menos desde há algum tempo, não seriam estas mas a falta de ar e as dificuldades de respiração que seriam responsáveis por acordar tão cedo e por não readormecer. Verifico que nos últimos dias tenho adormecido bem mas que acordo invariavelmente três horas depois sem conseguir respirar plenamente e sem posição na cama. Por outro lado, quando desci para a sala ontem e anteontem, também não consegui encontrar posição deitada no sofá e tive, minutos depois, que me sentar direito, encostado às almofadas. Mas tenho sono e, quando, por exemplo, vou buscar um copo de água ou por qualquer razão me levanto, sinto-me como um sonâmbulo. Se tiver razão, então toda a minha estratégia presente está errada e tenho que aproveitar todos os momentos de sono, a qualquer hora do dia, para tentar adormecer – ao contrário do que faço agora, que os evito. Vou falar à Meert hoje e com o Mertens (psiquiatra) amanhã por telefone.


Será que estas dificuldade de respiração acrescidas significam que as coisas, no plano físico, estão a piorar? Não tenho nenhumas outras razões para pensar assim: no máximo, uma correspondente maior dificuldade de engolir que deve ter a mesma origem e ma respiração ruidosa. No resto, tudo continua aparentemente bem: nenhumas dores, náuseas, vómitos, etc.. Estado geral excelente fora algum cansaço à noite, principalmente se me esforço mais do que é hábito. Mobilidade quase perfeita. Um pouco de tosse mas nada que não seja suportáve


O Dico disse-me para escrever um artigo sobre o Lula. Boa ideia. (Este blogue está a transformar-se no diário de uma insónia). Vou alinhavar alguns pensamentos na clínica para tentar terminar antes do fim-de-semana.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Psiquiatra

Fui ao psiquiatra. Falámos sobretudo das insónias mas outros temas, mais sérios, também vieram à baila. Afinal, já o conheço há mais de dez anos.


Quanto às insónias, recomendou-me que juntasse um comprimido de Dominal ao cocktail que já tomo. Ao que parece, este novo medicamento tem efeitos calmantes e contra a angústia. Pediu-me que lhe telefonasse depois de amanhã para saber como correram as coisas. Se o novo tratamento resultar, poderei até encarar a possibilidade de reduzir o Loramet.


O problema é que estou, nestes dias, a tomar cortisona em mais fortes doses. Mas experimentemos.

Noite

Dormi precisamente entre a meia-noite e meia e as duas e meia e depois dormitei na sala até às seis mas com sobressaltos. Três boas horas em suma. Acordei com o nariz tapado.

Hoje, vou ao psiquiatra – consulta prevista há muito tempo – para lhe falar principalmente destas insónias. Preciso de, com ele, adoptar uma forma de as vencer. A minha decisão de reduzir os medicamentos ainda me parece um passo no bom caminho. E qualquer maneira estas três horas dormidas ser-me-ão preciosas nos dias que se avizinham porque a cortisona cujas doses duplicam antes e depois da quimioterapia é tudo menos um calmante.

Prise de sang de manhã para, entre outras coisas, para verificar o estado geral e e a anemia – e saber se devo ou não fazer uma transfusão de sangue por altura da quimio.

domingo, 3 de outubro de 2010

Almoço de ontem, jantar de ante-ontem, sono, Trezzu, Leninha

Ontem, como previsto, fui almoçar a casa do Carlos. Massa (que tipo ele dirá, ou não, em comentário) com bacon e maçãs assadas para a sobremesa – há tempos, anos, que não comia! Agradável o setting, melhor ainda a companhia, com um tempo infecto lá fora – que ainda piorou antes de se acalmar. Depois passámos pela Orfeo para o Carlos comprar os jornais. Eu comprei Os Maias porque alguém (pensava que tinha sido a Trezzu mas ela nega a pés juntos) me tinha pedido emprestado a que tinha, naquela edição conhecidíssima encadernada a vermelho. Estava o Joaquim Pires da Silva, com quem conversei uns minutos. Depois voltei para casa. Estava bastante cansado.

Na noite anterior, a Ana Batalha também me tinha telefonado para ir lá jantar um arroz de pato. Muito bom (Bimbi?) mas também tive que me vir embora cedo. Aliás, o que me cansa mais agora é falar e gritar – mas gritar não consigo. (Tenho a certeza, no entanto, de que, se não grito, quase não me ouvem, ou fingem que não ouvem, a começar pela Kiddie, que dá mostras de uma independência crescente e irritante). Fico com tosse e sinto-me ansioso. O resto passa bem: andar, passear, etc. Mas para mim, é uma verdadeira mudança, esta de não falar alto.

Dormi razoavelmente mas acordei pela uma e meia (já pelo segundo dia) por causa do nariz entupido que me impede de estar deitado – não encontro posição, sento-me na cama com os pés de fora e é apenas assim que suporto a ameaça de falta de ar. Desci por volta das três e meia e ainda consegui adormecer por mais ou menos duas horas. Agora, quando escrevo isto, estou meio ensonado.

Ontem, quando falei com a Trezzu, estava cansado e enervado. Vou falar-lhe hoje para me desculpar. Tinha gostado tanto do seu comentário à minha anterior entrada no blogue. Espero (tenho a certeza) que me desculpe, minha querida.

E termino com um beijinho para a Leninha por razões que ela conhece. Vou tentar telefonar-lhe hoje.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Tempo lento

Começa um novo mês, o terceiro depois de saber que tinha um cancro, e não sinto nenhuma reacção particular... À vezes, mas poucas vezes, interrogo-me se esta minha decisão de provisoriamente não pensar directamente na doença e preferir concentrar os meus esforços no tratamento, deixando algumas perguntas graves, algumas as questões sérias, para outra altura, é a melhor forma de actuar. Provavelmente sim. Começar a cogitar no que aí pode vir seria uma distracção do meu objectivo principal, que é o de completar a quimioterapia nas melhores condições possíveis para que isto evolua depressa e bem. Daí também a minha preocupação com as insónias porque interferem com o tratamento, na medida em que me deixam exausto, enervado e, por isso, menos capaz de reagir.

Hoje voltei a dormir. Mesmo padrão que ontem: quatro horas na cama, quatro horas (ou um pouco mais) no sofá. É que, quando acordo pelas quatro da manhã, tenho o nariz entupido, custa-me respirar e perco a posição na cama. Pelo contrário, na sala, sento-me de forma diferente e consigo descansar.

O tempo custa a passar. Para combater esta angústia difusa de ter as horas pela frente sem maneira de as preencher, saio espaçadamente, passeio o cão, compro revistas, leio os livros acumulados (mas custa-me ler muitas páginas de seguida), navego na Internet e recomecei a organizar a minha biblioteca na iTunes. Mas nada disto significa obrigação a cumprir, é tudo elementar, fragmentário, desestruturado, e por isso há sempre horas que sobram antes de o dia acabar. E se o dia está feio - hoje amanheceu contente mas já se estragou -
ainda é mais difícil suportar o tempo que resta, como se a areia da ampulheta tivesse cessado de correr.

Amanhã, vou almoçar a casa do Carlos, o que me fará bem. Vamos também passar pela MediaMarkt e pela Orfeo, para ele comprar, e eu folhear, os jornais portugueses.

Na próxima semana, recomeço a quimioterapia. Com a mesma esperança de sempre e a mesma resolução, pesem horas perdidas, angústias ou insónias.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Dormi!!!

Dormi! Finalmente. Não sei se de exaustão se por qualquer outra razão mas não me interessa. Dormi!

Quatro horas a partir da meia-noite e, depois, aqui em baixo, na sala, entre dormir e dormitar, outras quatro horas. Dormir assim já não me acontecia há mais de um mês. Quase me parece que dormi demais! Sinto-me outro.

Estou tanto mais satisfeito quanto ontem tinha decidido tentar romper este círculo vicioso em que me deixara enredar, de noites brancas seguidas de aumento dos comprimidos. Assim, na segunda-feira já tinha renunciado ao Xanax e esta noite voltei à dose inicial, já pesada, de dois miligramas de Loramet em vez dos três que tomei desde sexta-feira.

Não sei o que acontecerá logo mas a cada dia sua pena ou sua alegria. De qualquer maneira, esta noite bem dormida permite-me recuperar forças para o que der e vier e encarar as coisas com optimismo.

Estou muito contente. E descansado.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Documentário: a cisão da Universidade de Leuven em 1968

Ontem, na RTBF (Canal 1), um documentário sobre a cisão, em 1968, da Universidade Católica de Leuven, a expulsão dos estudantes francófonos e a instalação das secções francesas em Louvain-la-Neuve, uma cidade construída do nada. Em 1962, tinham sido criadas em Leuven duas secções, flamenga e francófona, com separação dos cursos e alunos e uma estrutura de direcção comum presidida por um flamengo e um valão mas isso não impediu que a contestação na Flandres continuasse e o processo culminou em 1968, com a clara posição de apoio às reivindicações nacionalistas do episcopado flamengo (o arcebispo de Bruges chegou a dizer, no que se assemelha quase a uma blasfémia, que era flamengo antes de ser católico) e, conduzindo inevitavelmente à queda do governo de Paul Venden Boyenants, Presidente do Partido Social Cristão unitário, a cisão deste partido em dois partidos de base linguística: PSC e do CVP. Por seu lado, a construção de Louvain-la-Neuve só foi completada em 1977 embora a Universidade tenha começado a funcionar, se bem que em condições precárias, a partir de 1971. Estranho tempo em que o espólio de Leuven foi partilhado com espírito de merceeiros: um serviço de china para aqui, um lote de livros acolá. Separaram-se colecções e, para o resíduo dos livros deixados após a partilha, aliás, a divisão fez-se por números de catálogo: par para uma das novas universidades e ímpar para a outra.

Um documentário bastante bem feito e muito oportuno nestes momentos em que a Bélgica se debate novamente com uma crise comunitária grave. A criação das duas universidades e a cisão no Partido Social Cristão foram os primeiros passos na comunitarização do país, que continuou a progredir até aos nossos dias e até à constituição do Estado federal e, quiçá, do fim do país tal como o conhecemos. Não há quaisquer sinais de que a tendência se inverta e hoje fala-se abertamente da constituição de dois Estados independentes. Dá a impressão que, se houvesse solução para Bruxelas, isso já teria acontecido.

Boletim médico. Noite branca.

Mais problemas de sono com as insónias, desta vez, a começarem cedo – e a não acabarem! Normalmente, deito-me e consigo dormir duas ou três horas. Hoje, nem sequer adormeci. Nem à uma, nem às duas... nem às cinco, nem às oito. Noite branca. Retrocesso. Alguma angústia por causa disto. Mas quero evitar mais soníferos ou ansiolíticos porque já tomo carradas e sem resultados aparentes.

Quanto ao resto, alguma tosse mas muito suportável. Raras náuseas que penso estarem relacionadas mais com esta tosse do que com os efeitos da quimioterapia. Nenhumas dores, respiração confortável. Cansaço quanto baste: não muito; apenas me canso quando falo demais, o que, agora, acontece pouco. Espírito algo embotado por causa da falta de "sono reparador". Ainda assim, leitura dos jornais e de alguns livros, mas sem grande capacidade de concentração (por isso salto de um livro a outro). Espírito e moral: bom, boa. Optimismo porque, fora as insónias, me sinto bem.

Tinha medo que o cancro ocupasse todo meu espaço. Parece que as insónias se ocupam disso. Este blogue é a prova, com prejuízo na variedade e qualidade. Com excepções, carácter matter of fact das últimas entradas. Reflexão: precisa-se.

Respondo às minhas mensagens de correio electrónico e – claro! – mantenho o blogue, mesmo se apenas com estas notícias breves.

O dia amanheceu feio e frio. Como diziam os os covilhanenses a propósito da Guarda? Feia, forte, farta e fria? Aqui, falta o "farta" (et encore) e o "forte" (que nunca entendi) mas, se juntarmos as nuvens e a chuva, o resto condiz.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Consulta de cardiologia

Hoje de manhã fui a Saint Luc para uma consulta com a cardiologista que libertou a minha artéria na altura do enfarto. A médica era gelada. Nem sequer me estendeu a mão mas eu, que já me tinha apercebido destas maneiras originais quando vi entrar o doente antes de mim, fiz exactamente o mesmo. Entendemo-nos perfeitamente.

Mas – é o que importa – as notícias foram óptimas. De um ponto de vista cardio-vascular, o enfarto quase não ocorreu, não tendo deixado praticamente sinais visíveis para além duma levíssima necrose. Do coração, posso dizer que estou curado. Resta... o resto. Mas saber que o coração não é coisa com que me preocupar (para além das cautelas normais, com a dieta, exercício, etc.) precisamente liberta-me energias para esse resto.

À saída, mesma pantomina de parte e doutra: Bonjour Monsieur; Bonjour Madame. No shaking hands, no touching.

O tempo está horrível. Que frio! Não sei se é por ter emagrecido tanto mas adormeço e acordo gelado.

Dormi menos bem que ontem, melhor que anteontem. Principalmente porque tossi mais esta noite. Mas parece-me que, também aqui, estou no bom caminho.

Alguns dados sobre a insónia em pacientes com cancro

Há uma parte de mim que é irredutivelmente racional. Estando às voltas com esta questão das insónias, tratei de me informar melhor.

Há, segundo vários estudos apanhados aqui e ali na Internet, uma relação evidente entre a insónia e cancro. Ou seja, a insónia é um problema comum para os paciente com cancro com níveis de incidência de 30 a 50% neste grupo comparados com 15% na população em geral. (E esta relação aumenta nos pacientes que recorrem à quimioterapia). Para além disso, encontraram-se ainda sintomas de insónia em 23 a 44% dos pacientes 2 a 5 anos depois do tratamento. Uma conclusão destes estudos é que a insónia é um problema geralmente negligenciado pela população afectada por cancro, problema que mereceria maior pesquisa e investigação e, eventualmente, tratamentos mais eficazes dirigidos a este público.

Negligenciado porquê? Porque o tratamento do cancro em si mesmo aparece como prioritário; porque a insónia é vista como uma reacção normal ao diagnóstico e tratamento do cancro; e porque muitos médicos não se sentem qualificados para diagnosticar ou tratar o problema da insónia relacionada com o cancro. Assim, certos estudos apontam que apenas 16 % dos pacientes cancerosos com insónia alertaram os seus oncologistas para o problema da insónia e muitos médicos não levantam o problema da quantidade/qualidade de sono nos seus doentes.

Em princípio, os tratamentos normalmente utilizados no tratamento da insónia em pacientes saudáveis são também eficazes nos pacientes com cancro e os cuidados habituais relativos à utilização de hipnóticos e soníferos devem também ser tidos em conta nestas situações. Um aspecto que pode estar a influenciar negativamente a minha reacção actual é o facto de eu ter começado o tratamento contra a insónia muito antes (3 a 4 meses) de me ter sido diagnosticado o cancro. Quer dizer que a eficácia dos medicamentos é, no meu caso, muito menor, sendo necessárias doses mais elevadas para obter resultados. Mas estes aumentos não podem ser ilimitados, até porque os efeitos secundários desta medicação são muitos e potencialmente perigosos.

Há alternativas – e é sobre essas que tenho que me concentrar. Por exemplo, as terapias cognitivas e comportamentais parecem ter resultados eficazes. Exemplos de coisas simples que podem trazer benefícios inesperados são: não beber bebidas com cafeína ou parecidas, ou bebidas alcoólicas, antes de nos deitarmos; não dormir demasiado mas apenas aquilo que é necessário (se bem que este separar de águas seja difícil de determinar em plena crise de insónia); adormecer e acordar a horas fixas; e, em geral, e de forma mais jocosa, utilizar a cama exclusivamente para o sono e o sexo e não para outras actividades como ler ou ver televisão.

Para mim, estes estudos ajudaram-me e de certa forma sossegaram-me na medida em que situam o problema e não me tornam parte da excepção mas parte da regra e porque acredito o conjunto de técnicas sugeridas pode ajudar-me a reduzir a dependência dos medicamentos.

A ver vamos.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Lagrimita

O Dico volta hoje para a Suíça. Acabou mesmo agora de sair de casa com a Mãe para o aeroporto. Gostei de o ver e de o ter por cá com o rodopio de idas e vindas que animaram a casa nestes dois a três dias. Tenho a impressão de que cresceu um pouco nas quatro semanas que passaram desde o início do curso. Mesmo se há aspectos do colégio, nomeadamente o regime de internato com esta inevitável separação dos amigos de sempre, que lhe causam alguma natural contrariedade (é preciso não esquecer que o Dico era o centro de um grupo extremamente variado e, de certa forma, o traço de união entre amigos vindos de vários colégios e quadrantes diferentes que nunca se reduziram aos seus colegas da Escola Europeia, e cujo quartel-general, como diziam, se situava no primeiro andar da nossa casa), não me parece que o seu empenho e a sua determinação estejam a vacilar. Amadureceu. Está a aprender a viver sozinho – com as dificuldades de adaptação que isso acarreta mas também com aquela confiança que nele se revela sempre de forma discreta. Para além do mais, e embora muitas provas e exames aconteçam antes disso, está ansioso pelo momento em que mergulhará na fase dos estágios – nessa primeira experiência de contacto com a realidade e os aspectos práticos da vida fora da escola, nomeadamente de um trabalho quotidiano regular e independente. Está a preparar-se cuidadosamente para a escolha dos melhores hotéis de Genève, sabendo que nem tudo depende dele ou do seu trabalho.

A forma como fala da sua experiência recente conforta-me. Tem um olhar lúcido sobre o que o espera – os pontos positivos e negativos da sua nova realidade. Tem principalmente a noção de que o sucesso no curso está ao seu alcance, com trabalho, seriedade, sentido de organização, atenção aos detalhes e cuidado nas relações com os professores e colegas. Ao mesmo tempo, não o abandonou uma saudável dose de ironia, que lhe facilita a adaptação a este ambiente em que as principais dificuldades são as de superar a solidão inicial. Basta vê-lo a descrever os diversos passos da sua aprendizagem dos aspectos práticos do food & beveradge. Saio deste fim-de-semana muito contente e confiante.

Boa sorte Diquinho. Deste lado, o Pai está a torcer por si com todas as forças. E até breve.