sexta-feira, 30 de março de 2007

Vikram Seth e «A Suitable Boy»

Aconteceu por acaso. Tive uma reunião perto das Filigranes – a minha livraria de Bruxelas – e passei por lá. A livraria estava praticamente vazia mas, no bar, três pessoas conversavam em torno duma mesa. Um dos empregados aproximou-se de mim e disse-me: «Sabe quem é?» E continuou: «Vikram Seth. Veio apresentar a tradução do seu último livro: Two Lives, Deux Vies

Conheci Vikram Seth através do seu segundo livro – e seu maior êxito: A Suitable Boy. Trata-se dum livro estupendo, que começa pela história duma mãe que procura um bom partido para uma das suas filhas, Lata (e bom partido significa casamento decidido pelos pais, num ambiente em que as diferenças religiosas têm que ser tomadas em conta), e se estende depois a um fresco da Índia nos anos imediatamente a seguir à independência, tendo como pano de fundo o enorme conflito religioso e racial que se viveu naquele tempo. Quando foi publicado, o romance mereceu aplauso unânime e lançou a carreira de Seth. Um seu romance posterior, Equal Music, desiludiu. A sua última obra, que já referi, conta a história da seu tio avô, Shanti Behari Seth, que conheceu e casou com uma judia alemã, Henny Caro, que conheceu em Berlim nos seus tempos de estudante e teve, de novo, sucesso crítico. Vou reler A Suitable Boy durante estas férias da Páscoa, como prelúdio à leitura de Two Lives.

Como não estava quase ninguém nas Filigranes, pude falar com Vikram Seth durante algum tempo. Elogiei-lhe a sua pronúncia de nomes portugueses – reproduziu perfeitamente o som nasal de João, algo que os estrangeiros têm normalmente dificuldade em fazer. (Quando, mais tarde, efectuei uma pesquisa na Internet sobre Seth, soube que ele conhece perfeitamente o mandarim e compreendi que, para ele, o som de João não deve apresentar enormes dificuldades.) Falámos do Brasil, onde ele vai proximamente, em promoção do seu livro. Falámos de Portugal, que não conhece, e da Editorial Presença, que editou a tradução portuguesa de A Suitable Boy (Um Bom Partido) mas não soube dizer-lhe, porque não a li, que era de muito má qualidade, informação que me deu a Sofia, a quem telefonei entusiasmado logo após o nosso encontro. E falámos do livro, mas muito rapidamente porque havia duas pessoas à espera: levou oito anos a escrevê-lo. Quando lhe disse que o tinha lido, perguntou-me o que fazia («Sou um eurocrata», respondi-lhe) e comentou que eu não deveria trabalhar muito, se tinha tempo para ler livros como o dele. Sorrisos! Despedidas!

Saí da livraria contente e com um calhamaço (mais de mil páginas) da tradução francesa, que se intitula Un Garçon convenable (fotografia aqui ao lado), devidamente dedicada «To José Pedro with every good wish. Vikram Seth». E o meu nome escrito com acento, e tudo!

quinta-feira, 29 de março de 2007

O Maior Português de Sempre

Esta escolha de «O Maior Português de Sempre», protagonizada pela RTP, não me mereceria qualquer comentário se não fosse o facto de, quando fui jogar bridge na terça-feira, ter deparado com dois jogadores belgas que me falaram no assunto. A conversa começou, aliás, com um «Portugal tem andado nas bocas do mundo ultimamente», e eu pensei que se referiam ao futebol e à nossa vitória sobre a Bélgica da semana passada. Mas não! Estavam espantados por Salazar poder ter ganho semelhante concurso. Já lhes fui dizendo que o voto não era representativo (e pensei para com os meus botões: «senão das soi-disant elites que organizam tais concursos!») e que, certamente, a organizar-se uma verdadeira sondagem, os resultados seriam diferentes. Mas tenho que reconhecer-lhes alguma razão. Como é possível que Salazar, Salazar, ele próprio, Salazar, o ditador que mandava a oposição para a cadeia, Salazar, o político que queria para este país um regime de honrada pobreza, de onde estava ausente qualquer desígnio de modernidade e de desenvolvimento – um homem que, sobre este aspecto, nem sequer pode ser comparado ao frustre Franco, daqui do lado – seja escolhido, em qualquer concurso, em qualquer consulta, como o maior português de sempre? Se os portugueses andam à procura de mãos férreas e punhos de aço, então que preferissem o Marquês de Pombal: está mais longe no tempo e, pelo menos, trazia consigo um projecto de modernidade. Mas este deve estar, aos olhos dessa gente, irremediavelmente maculado pela sua perseguição dos jesuítas! E lá de jesuítas, Salazar gostava. Nós, portugueses, gostamos sobretudo de praia.

Fica Aristides Sousa Mendes. Não, de certeza, o maior português de sempre mas um justo. Muito mais do que se pode dizer de Salazar (primeiro) e Cunhal (segundo.)

Bom, tudo isto me levou a procurar dois poemas de dois grandes (esses, sim) portugueses sobre o nosso «torrão à beira-mar plantado.» Eles diriam mais prosaicamente: este «país de merda.» Aqui ficam os poemas. Leiam-nos bem e não se esqueçam de que o país de que falam era o país de Salazar.

Alexandre O'Neill
Portugal


















Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!


Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.


Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


Jorge de Sena
A Portugal













Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não

segunda-feira, 26 de março de 2007

Teresinha, Sofia e Diogo - Regresso do Brasil

Regresso do Brasil da minha neta, minha filha e meu genro - por esta ordem! Pensei mesmo em escrever: regressou do Brasil a minha neta Teresa, acompanhada pelos seus pais. Estiveram lá com a avó Teresa e em praias como esta. Espero rapidamente fotografias para o blogue.

Sim à Europa

Não me via a escrever neste blogue sem falar do quinquagésimo aniversário do Tratado de Roma. A maior parte dos comentadores evocam a situação de crise em que a Europa se encontra mergulhada: crise das instituições, crise de modelo económico e social, crise de confiança, crise de identidade.

Estou de acordo. Estamos em crise. O alargamento (justo e inevitável) levou a que se encontrassem, no convés deste barco, pelo menos duas concepções diferentes do projecto europeu. Uma que, fiel aos pioneiros, define claramente como objectivo a união política: dentro desta concepção, contudo, cabem várias correntes, desde os federalistas puros e duros, com as suas propostas de maior integração, de alargamento do euro e de reforço dos poderes do Parlamento Europeu, a tendências mais moderadas que se fixam como finalidade a união mas aceitam uma grande flexibilidade nos meios, como a Europa a duas (ou mais) velocidades – um pouco à imagem de Monnet e Schumann, para quem a Europa se construiria paulatinamente, à medida que se tecessem entre os europeus solidariedades progressivas. Uma segunda, porém, para quem a União Europeia se resume a uma forma de organização, principalmente económica, que tem consequentemente uma obrigação de resultado. É nesta última corrente que se insere o actual Presidente da Comissão Europeia, como prova a iniciativa principal do seu mandato: a revisão da estratégia de Lisboa no sentido de a concentrar nos seus aspectos mais imediatamente «result oriented», como sejam o crescimento e emprego.

Mas a crise (real, difícil) não devia fazer-nos esquecer as realizações desta Europa que temos. A minha geração já não viveu as guerras europeias; a geração dos nossos pais, que desaparece, é a última que ainda guardava a memória vivida da carnificina de 1939-1945 e, em Portugal, nem mesmo essa geração a sofreu. Por isso, temos tendência a considerar displicentemente este longuíssimo período de paz nos assuntos internos europeus. Mas a verdade é que ele não tem paralelo histórico: nem mesmo o «pacífico» século XIX dispôs de paz tão prolongada. Pensada para assegurar a reconciliação franco-alemã, a Europa unida cumpriu magnificamente o seu propósito inicial: hoje, é difícil imaginar uma guerra intra europeia. A principal vantagem do método europeu é que nos abre a porta para formas diferentes (quase jurisdicionais) de resolução de conflitos. Um método que, aliás, o resto do mundo, e os Estados Unidos em particular, teria interesse em estudar e aplicar.

Ao mesmo tempo, não devemos esquecer o extraordinário progresso económico que o projecto europeu sustentou. Há quem diga que ele não se deveu principalmente à União Europeia: que a Europa, fosse qual fosse a sua estrutura institucional, teria sempre chegado a níveis de prosperidade próximos dos actuais. Permito-me discordar. Não só o comércio intra europeu atingiu níveis nunca conseguidos em qualquer outra forma de organização política ou económica como esta prosperidade de que gozamos actualmente foi, com a União Europeia, atingida da forma menos dolorosa possível. Não existiram, por assim dizer, custos de crescimento – ou eles foram claramente minimizados pela organização institucional e pela solidariedade europeia. Pense-se no caso dos que, como Portugal, aderiram ao projecto quando este já se encontrava em andamento: e comparem-se os custos da transformação económica do país (mesmo se insuficiente, desigual, ineficaz, como afirmam alguns) com os custos dessa transformação se tivéssemos estado fora da Europa: e dando já de barato que teria existido transformação.

Assim os homens políticos que se reuniram em Berlim durante o fim-de-semana teriam, se pensassem a sério nessas coisas, um problema a resolver: como corresponder a um passado de que deveriam orgulhar-se. Passamos um momento em que se acumulam dúvidas, incertezas, hesitações, perplexidades, sobre o projecto europeu; mas temos já razões de sobra de contentamento, regozijo e natural vaidade pelo nosso passado recente. Pudessem as novas gerações ter o que nós tivemos. Seria já enorme; porque foi enorme o que se obteve em cinquenta anos. E, se há a natural tendência para concentrar os nossos discursos nas dificuldades presentes, parece-me que seria injusto esquecer o muito que, juntos, conseguimos fazer.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Bom português

Notícia do telejornal desta manhã (que tem o nome delicioso de Bom Dia, Portugal):

Pela segunda vez em duas semanas, mulher dá à luz na estrada que liga Figueira da Foz a Coimbra.

A gente percebe o que eles querem dizer: que duas mulheres deram à luz numa ambulância enquanto viajavam entre as duas cidades. E tudo isto por causa do fecho da maternidade da Figueira, decidido pelo Ministro da Saúde.

Mas porque o dizem tão mal?


Mas, para nos reconciliar com o mundo, aqui fica um trabalho de Paolo Ferrari (2000) intitulado Parto

terça-feira, 20 de março de 2007

As sinfonias de Shostakovich (2) - Maria Yudina e Estaline




















Shostakovich gostava de contar a história da carta que Maria Yudina, uma das mais extraordinárias pianistas russas mas que, por nunca ter saído do país, é relativamente pouco conhecida no Ocidente, escreveu a Estaline quando este lhe enviou dinheiro destinado a pagar uma sua interpretação dum concerto de Mozart de que o ditador tinha particularmente gostado. Para além de pianista brilhante, Yudina era uma dissidente que não calava a sua oposição ao regime e uma mulher de enorme força interior e serena determinação, a propósito de quem Shostakovich, que a conhecia dos tempos de escola, dizia que, para ela, «the ocean was only knee-deep», o que poderíamos traduzir (mal) por «o oceano só lhe chegava aos joelhos.»

A história é a seguinte. Uma vez, Estaline escutou na telefonia um concerto de Mozart interpretado por Yudina e pediu que lhe fosse enviada a respectiva gravação. Mas o concerto não tinha sido gravado. Preocupados, os lacaios do ditador souberam que a pianista executava de novo a obra na noite seguinte. Como é óbvio, todos os obstáculos foram vencidos, incluindo a resistência da intérprete (que, segundo dizem, exigiu ser acompanhada por um maestro da sua escolha - que os ditos lacaios foram buscar sem pestanejar, nem eles nem ele) e, de manhã, já o ditador tinha o seu disco. Para recompensar Yudina, Estaline ordenou que lhe fossem pagos 20.000 rublos. Ela respondeu-lhe por carta, mais ou menos nos seguintes termos:

«Agradeço-lhe, Iosif Vissarionovich Estaline. Rezarei por si dia e noite e pedirei ao Senhor que perdoe os seus pecados. Dei o dinheiro à Igreja…»

Diz-se que o disco de Yudina se encontrava no prato da grafonola de Estaline quando ele morreu.

As sinfonias de Shostakovich (1) - Relembrar o estalinismo

Em matéria de música, ando concentrado numa revisão completa das sinfonias de Shostakovich depois de ter comprado uma nova edição, recentemente posta à venda, da integral que Kirill Kondrachine gravou à frente de Orquestra Filarmónica de Moscovo entre 1961 e 1974.

A União Soviética pertence agora ao passado e, do estalinismo, o que hoje se sabe tende a ser apenas, ou aquilo que aparece em artigos de revistas especializadas em história ou política, ou o que é objecto de polémicas desenhadas a preto e branco, colocando num único prato da balança, positivo ou negativo, o que só pode plenamente compreender-se em tons de cinzento (e incluo nesta crítica esses famosos Livros Negros em que se especializaram certos historiadores – como os Livros Negros do Comunismo, do Colonialismo, do Capitalismo ou da Psicanálise). Agora que, felizmente, o mundo de Lenine e Estaline, e até o mundo menos violento mas desprovido de qualquer sentido ou ideal dos seus sucessores Breznev e Andropov, meros burocratas ou polícias, acabou (mesmo se a Rússia de Putin não constitui certamente exemplo a seguir), é difícil penetrar plenamente na obra de Shostakovich e descobrir-lhe o sentido profundo. Há mesmo quem diga que uma das razões do sucesso das integrais de orquestras soviéticas, em comparação, por exemplo, com as de Haitink ou a mais recente de Jansons, assenta no facto de os músicos que as interpretavam saberem, por assim dizer, do que falavam. Ou seja, de terem sofrido na carne própria ou de gente chegada as penas infligidas por um regime para quem qualquer indivíduo não passava de uma pequena peça numa monstruosa engrenagem. (Quem se interesse por estas coisas, pode reler Alexandre Soljenitsyne ou, numa narrativa mais objectiva e documentada, mas sem o talento literário do autor do Arquipélago do Goulag, o recente livro de Anne Applebaum, A História do Goulag.)

É evidente que não é necessário ter passado pelas prisões estalinistas para interpretar ou compreender Shostakovich; mas o facto de muitos dos que formavam essas orquestras terem por lá passado – ou por lá terem visto passar família, amigos ou conhecidos (e ninguém, na União Soviética, viveu afastado dessas terríveis experiências) – contribui para dar a essas interpretações uma força emocional que nós, do lado de cá, deste lado do que foi a cortina de ferro ou o muro de Berlim, temos dificuldade em replicar e de que só nos apercebemos quando escutamos essa forma especial de soar que têm essas orquestras russas «da época».

Vale a pena recordar esse misto de medo – de terror – e de desesperança que constituía o quotidiano dos cidadãos ordinários na União Soviética do tempo de Estaline. Não era só a certeza de que todos estavam à mercê do ditador e do aparelho do partido e que este servia tantas vezes de mera correia de transmissão de vinganças mesquinhas. Era ainda a tentativa de impor o desânimo, de obrigar todos a nem sequer poderem imaginar a possibilidade de mudança. Por isso é que a guerra surgiu, paradoxalmente, como uma libertação. O tempo de guerra permitiu aos russos unirem-se em torno da defesa da sua terra e constitui o único intervalo no terror estalinista – que recomeçou logo depois da vitória, com o tratamento bestial reservado aos soldados e oficiais que tinham sido feitos prisioneiros na Alemanha e que seguiram directamente dos campos inimigos para o Goulag, donde nunca mais saíram.

As sinfonias de Shostakovich aproximam-nos do desalento desse povo, entrecortado pelos momentos de exaltação que o regime não conseguia suprimir porque a esperança na desesperança é ainda o último refúgio do humano. Ouvi-las – e ouvi-las assim, todas duma vez – é uma experiência espiritual que não necessita de adjectivos. Para mim, a mais bela é a Sinfonia Nº 7 (dedicada à cidade de Leninegrado), uma profunda meditação em torno da guerra, do sofrimento, da angústia e da amarga vitória. Como disse Oistrach, ao ouvir na telefonia, em Moscovo, a primeira representação desta obra, que ocorria em Leninegrado sitiada a 9 de Agosto de 1942, essa sinfonia representou «a afirmação profética da nossa fé no triunfo eventual da humanidade e da luz.» Na estreia, de acordo com o escritor Alexander Rozen, «muitas pessoas choraram (…) Umas choraram porque essa era a única forma como podiam expressar a sua alegria; outras porque tinham vivido aquilo que a música expressava com essa força enorme; outras de dor pelos que tinham perdido; outras apenas porque os dominava a emoção de ainda estarem vivos.»

Como Akhmatova, a grande poetisa russa (ou a poeta, como Sophia de Mello Breyner preferia chamar-se) que nunca deixou a União Soviética e viveu em Leninegrado durante a guerra, Shostakovich, nesse momento, representava o povo russo: a 7ª sinfonia é o hino ao seu sofrimento na guerra, à sua resistência e à sua força.

segunda-feira, 19 de março de 2007

Férias na neve

Já fomos de férias de neve há quase um mês mas só agora é que chegaram as fotografias. Ficámos numa casa magnífica mas as estrelas da companhia fomos nós. Andámos bem dispostos, divertimo-nos, eles fizeram sky ou snow board, eu passeei e tratei da Teresinha. O único senão foi que a Sofia partiu o braço: prova na segunda fotografia. (Está agora a tratá-lo no Brasil!) No último dia, fomos comer uma «raclette» à moda da montanha, com o queijo a derreter em frente das brasas colocadas num grelha de ferro forjado que é posta em cima da mesa. O único defeito do sistema é o calor que nos obriga a passar: assim, alguns de entre nós confessaram que preferem a «raclette» em casa preparada em simples aparelhos da Tefal. Aqui ficam duas fotografias: da actriz principal e de (quase) toda a companhia (nada mal, a minha descendência!), faltando apenas o Diogo e o João (os acrescentos) porque alguém tinha que se encarregar de tirar o retrato. Espero que a Inês, ao ler esta entrada, mande fotografias dos genros.



sexta-feira, 16 de março de 2007

Falar do que não se sabe - Santana Lopes e Hermínia Silva

O que mais me irrita em Santana Lopes (para além do penteado!), é a total falta de rigor que demonstra mesmo nas coisas mais simples.

Vem isto a propósito duma notícia no Público de hoje. Segundo o jornal, Santana Lopes teria rematado a sua intervenção na reunião do grupo parlamentar com uma directa (sic) a Pacheco Pereira que, na véspera, o desafiara a aliar-se a Paulo Portas para formar um novo partido. Disse Santana: «Havia um fado célebre da Hermínia Silva que tinha uma estrofe permanente que era "Anda, Pacheco!" Em matéria de partidos, podia haver uma "Desanda Pacheco!"»

Se os membros do grupo parlamentar do PSD se riem com graças destas, é lá com eles. Para quem não saiba (e muita gente já não saberá - para esses aqui fica uma fotografia sua, com o cabelo pintado como sempre usava mesmo aos oitenta anos), Hermínia Silva foi considerada durante anos como a segunda fadista portuguesa, só superada por Amália. (Havia quem até costumasse dizer que ela era mesmo melhor que Amália mas, com todo o respeito, essas pessoas não percebiam nada de canto.) Hermínia conseguiu um enorme sucesso alicerçado numa certa forma brejeira de cantar o fado - e não estou a negar a qualidade da sua voz. Em palco, Hermínia demonstrava simpatia e naturalidade e essa era a chave do seu sucesso junto do público popular que aliás gostava imenso dela.

Mas a verdade é que "Anda Pacheco!" não é estrofe de fado nenhum. Pacheco era simplesmente um dos guitarristas de Hermínia (acompanhava-a sempre que a vi cantar, numa altura em que o fado me interessava bastante mais do que me interessa agora) e a fadista incitava-o, lançando-lhe em tom de gozo esse "Anda Pacheco!" Com o tempo (e, sejamos sinceros, com o desgaste da sua voz), essa brincadeira transformou-se numa espécie de ex-libris de Hermínia, a que ela passou a recorrer em todos os seus espectáculos, como forma segura de provocar o riso dos espectadores que acolhiam a velha piada com a cumplicidade com que se aceitam as manias inofensivas duma velha amiga. "Anda Pacheco!" A frase pontuava os fados que Hermínia cantava, pelo menos a partir do quinto ou sexto e principalmente quando tinha bebido uns copos e estava com um grão na asa - o que, ao que parece, era frequente e nem por isso lhe afectava decisivamente a voz.

Nada disto tem imnportância, dir-me-ão. De acordo! Mas serve para recordar que, nem mesmo em coisas de somenos, Santana Lopes consegue falar sem baralhar os pormenores. Para quando uma nova referência aos Concertos para Violino de Chopin?

quinta-feira, 15 de março de 2007

Esta mania portuguesa de perder de cabeça erguida

Título (e imagem) do Público de hoje: Sporting de Braga despede-se da Taçaa UEFA de cabeça erguida...

Mas não seria preferível prosseguir na Taça mesmo de cabeça baixa?

terça-feira, 13 de março de 2007

Chirac tire sa révérence

Sempre considerei Jacques Chirac um político nefasto – e um homem pessoalmente simpático.

Político nefasto, em primeiro lugar para a França (mas podemos dizer que disso cuidem os franceses!) Com efeito, que balanço é o seu? A uma retórica de apoio ao modelo social francês (ou europeu) correspondeu um aumento sem precedentes das desigualdades económicas e dos fenómenos de exclusão e da fractura social. Aos discursos de contenção das despesas do Estado, o crescimento constante do défice e da dívida pública. A um palavreado oco sobre o fomento da inovação e criatividade (ainda assim com melhores resultados do que em Portugal), a estagnação económica e a manutenção de elevados de desemprego. À pretendida reforma da administração pública, uma incapacidade até (certo que partilhada por partidos de esquerda e direita) de introduzir a retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.

Mas Chirac é sobretudo responsável por um extraordinário ambiente de compadrio e até corrupção – pelo assim chamado Estado RPR onde os mais importantes cargos do aparelho político, administrativo, judicial e até, em certos casos, diplomático, foram preenchidos por fiéis. Nesta vasta operação de apropriação do Estado para fins políticos privados – de um homem, de um clã, de um partido – Chirac devorou os seus próprios aliados e, sobretudo, aquele em quem sempre confiou e que considerava o seu herdeiro: Alain Juppé, afastado das presidenciais pela sua condenação num processo relacionado com os empregos fictícios na Mairie de Paris nos anos em que Chirac ocupou o Hotel de Ville.

(Dito isto, os franceses são um povo estranho. Têm um país magnífico e Paris é uma cidade extraordinária, que alia pujança económica a uma beleza incomparável e a uma oferta cultural de altíssimo nível. A economia do país, não obstante certas dificuldades, atravessou o final do século XX e entrou no XXI em muito melhor situação do que a da maioria das restantes economias mundiais. O modelo social funciona ainda bastante bem embora, como noutros países, necessite de ser reestruturado nomeadamente para ter em conta a evolução demográfica. E, com tudo isto, os franceses queixam-se! Para mim, é uma espécie de nostalgia dos tempos de Luís XIV, quando eram o centro do mundo, ou da época em que, sob o estandarte de Napoleão, tentavam exportar uma mistura de liberdade revolucionária e centralismo autoritário. Os franceses não suportam ser considerados como uma simples nação entre muitas outras. La France, oh! la France!)

Em segundo lugar, Chirac foi – e isso já nos afecta a todos – um político nefasto para a Europa. O seu apoio ao projecto europeu foi sempre titubeante, desde os tempos primeiros em que ainda se apoiava em Marie-France Garaud e Pierre Julien, dois conselheiros do Presidente Pompidou que foram os seus primeiros mentores políticos. Hoje, pouca gente se lembra do apelo de Cochin, lançado na altura das primeiras eleições por sufrágio directo para o Parlamento Europeu, denunciando o Presidente Giscard d'Estaing como chefe dum imaginário «partido do estrangeiro» mas, no final dos anos setenta, Chirac assumia-se como um euro céptico avant la lettre. (Marie-France Garaud, aliás uma mulher insuportável, candidatou-se em 1981 à Presidência da República, contra Giscard e Mitterrand, como porta-estandarte candidata da Europa das Nações. A sua carreira política acabou quando obteve apenas 1,33% dos votos.) Mais tarde, por ocasião do referendo sobre o Tratado de Maastricht, Chirac fez, por assim dizer, o pino e, contra muitos dos seus apoiantes, como Philippe Séguin ou Charles Pasqua, apelou ao «sim» ao Tratado. Mas as tergiversações da sua desastrada política interna foram uma das principais causas do voto que, em 2005, recusou o Tratado Constitucional, voto esse que deu um golpe porventura fatal numa certa ideia da Europa e num certo método de a conseguir. O que, poderá dizer-se, nem se traduziu em grande mal porque o método se encontrava claramente esgotado e, para continuar a construir a União Europeia, seria sempre preciso mudar de rumo e, talvez, de barco. Mas uma coisa é perder com convicção depois de apresentarmos com convicção os nossos argumentos, outra é perder apenas porque nem sequer fomos capazes de os defender. No primeiro caso, ainda podemos ter a esperança de vir a pesar sobre futuras discussões. Não foi isso que aconteceu a Chirac que perdeu por incompetente falta de comparência. Daí provavelmente as desculpas que, segundo dizem, apresentou aos restantes Chefes de Estado e de Governo europeus na recente cimeira de Bruxelas. Mas não acredito que eles lhe tivessem perdoado. A ver pela reacção de Durão Barroso...

Dos seus anos como Presidente, ficam apenas, a meu ver, no lado do activo, a sua oposição à guerra no Iraque (mas alguns dirão que se deveu mais a um oportunismo de circunstância, de quem vê nos Estados Unidos uma ameaça para a Europa e para la France) e, principalmente, a sua constante e reiterada oposição à extrema-direita e a Jean-Marie le Pen.

Este é o aspecto mais cativante da sua personalidade – para além duma simpatia natural e dum real interesse pela vida das pessoas com quem se cruza. Aí, nunca houve tergiversação nem sequer hesitação. Chirac é provavelmente o único homem político da direita francesa que considera os emigrantes como uma oportunidade e não um fardo; o único capaz de reconhecer publicamente o papel do Estado francês e as responsabilidades, não apenas do regime de Vichy mas da França, nas perseguições aos judeus durante a II Guerra Mundial; o único, certamente, que considera o liberalismo como um sistema iníquo e que o compara ao marxismo, nos seus efeitos destruidores sobre a estrutura social. O que, não sendo verdade, revela, pelo menos, a enorme distância que o separa de alguns dos seus comparsas. Não é por acaso que Le Pen o considera o seu principal inimigo. E não é por acaso que o seu apoio a Nicolas Sarkozy será, no melhor dos casos, forçado e hesitante. Quem sabe? Se não fosse a antipatia pessoal que, ao que parece, os separa, talvez Chirac pudesse declarar o seu apoio a Bayrou.

Não sinto qualquer nostalgia relativamente aos anos Chirac. Vejo-o sair da política sem tristeza. Mas, ao pensar na possibilidade de Sarkozy como presidente, chego a pensar que ainda podemos vir a recordá-lo com um grão de saudade.

segunda-feira, 12 de março de 2007

Um poema de Jorge de Sena


















Frank Dicksee - Romeo and Juliet (1884)


Fidelidade

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

(In Fidelidade, escrito em 26 de Agosto de 1956)