terça-feira, 19 de outubro de 2010

Conclusão


Sempre fui uma pessoa privada. O meu universo não se resumiu exclusivamente às minhas filhas e ao meu filho, e mais tarde às minhas netas, mas a Sofia, a Inês, a Trezzu e o Dico, e depois a Xá e a Constança, foram sempre a parte mais importante da minha vida. Nunca me impliquei de forma inteira na vida profissional: não me interessava. Concentrei os meus esforços em criar em torno de mim, com as minhas filhas e o meu filho, as minhas netas, e os meus filhos por acrescento, um espaço de amor e de ternura. Dei-lhes o que podia. Fui recompensado: recebi tudo o que dei e muito mais.


Minhas queridas, meu querido: aflige-me não vos encontrar palavras de consolação. Não sou religioso; não acredito que voltemos a encontrar-nos. E sei a dor, a tristeza, imensas, que a minha morte vos deixará. É isto que mais me desola. Não poder ver-vos mais, não ouvir os vossos risos, a vossa voz, as nossas discussões; não reatar esta comunhão que sempre nos uniu. Um universo em que todos cabíamos, e que se abriu, ao longo dos anos, ao Diogo e o João. Posso apenas dizer-vos que nunca perdemos aqueles que amamos. De uma certa forma, estaremos juntos: na vossa memória e, sobretudo, no vosso coração. São bocados de mim que guardarei convosco. Parece pouco mas, em alguns momentos da vossa vida, será muito.


Hoje é dia de tristeza mas não quero esquecer a alegria. Os meus livros, a minha música, o meu i-Pod... Vejo-me, por vezes, já depois dos cinquenta anos, desenhando nas ruas uma figura algo desajustada, com os auscultadores pendurados nas orelhas, um livro nas mãos, a mochila a tiracolo, e, mergulhado na leitura, sucedendo-se os inevitáveis encontrões com quem me cruzava distraído. E o mar, as ondas da Foz do Arelho, a praia, Cascais, a Pérgola, as livrarias, as discotecas... Isto é o que quero que principalmente recordem, os momentos felizes: o nascimento das minhas filhas, do meu filho, das minhas netas, algumas conversas com a minha Mãe, as conversas de sábado com a Xá, o riso da Constança, algumas viagens a Itália, e tantos momentos de tranquila solidão, aquela solidão que se suporta facilmente porque se sabe que o bulício das crianças que entretanto cresceram virá decerto e depressa.


E quero lembrar alguns amigos. O Francisco, meu irmão, que comunga comigo da memória da Mãe, e a Nanuz; o Pedro, primo que se transformou em irmão, com o seu optimismo que tantas vezes me deu forças, e a Ana; o Rui, o mais velho amigo, mais de quarenta anos em cumplicidade, mesmo se às vezes longínqua embora nunca distante, e a Margarida; o Carlos, sem quem estes últimos meses teriam sido muito mais difíceis, e a Prista; e alguns outros.


Sendo eu esta pessoa íntima, privada, sempre pensei o meu futuro com muitos anos mais, rodeado da minha família, filhas, filho, filhos, netas, netos, até bisnetos. É apenas nesta medida que sinto esta partida como uma injustiça: mas a sorte, ou a má sorte, decidiu de outra forma. Não queria ir-me embora tão depressa. Não parto resignado: queria viver. Enraivece-me ter de deixar-vos cedo: queria ficar convosco muito mais tempo.


Mas não tenho medo.


E pronto. Se a minha vida acabou agora, a vossa vida, Sofia, Inês, Trezzu, Dico, Xá e Nini, continua ou começa. Gostaria, depois destes momentos de tristeza, que ela fosse coberta de alegria e, principalmente, de ternura. Porque esta é a mensagem que vos deixo: a ternura que semeei em vós e que quero que continue a crescer, mesmo que eu esteja longe. Esta ternura dar-vos-á o amparo necessário.


Minhas queridas, meu querido: o vosso amor foi o que de mais importante me aconteceu. Despeço-me com as mesmas palavras das minhas mensagens. Um grande beijinho et je vous aime beaucoup.


Poemas

Manhã de Outono num Palácio de Sintra


Um brilho de azulejo e de folhagem

Povoa o palácio que um jovem rei trocou

Pela morte frontal no descampado


Ele não quis ouvir o alaúde dos dias

Seu ombro sacudiu a frescura das salas

Sua mão rejeitou o sussurro das águas


Mas o pequeno palácio é nítido – sem nenhum fantasma –

Sua sombra é clara como a sombra de um palmar

No seu pátio canta um alvoroço de início

Em suas águas brilha a juventude do tempo



Sophia de Mello Breyner

Dual (1972)



Casa


A antiga casa que os ventos rodearam

Com suas noites de espanto e de prodígio

Onde os anjos vermelhos batalharam


A antiga casa de inverno em cujos vidros

Os ramos nus e negros se cruzaram

Sob o íman dum céu lunar e frio


Permanece presente como um reino

E atravessa meus sonhos como um rio



Sophia de Mello Breyner

Geografia (1967)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Respirar, engolir, tiróide e depois, para alegrar, Vargas Llosa e família

Estou a escrever muito cedo. Já estou mesmo farto das minhas insónias e decidi recomeçar a viver como antes do cancro, ou seja, a dormir quando tenho vontade, seja de noite, manhã ou tarde. Assim, acordado por volta das quatro, voltei para a sala e deitei-me no sofá. Dormi alguma coisa. São oito horas agora.


Já disse que a quimioterapia correu de novo bem e, mais uma vez, e pelo menos dois dias já passados, sem efeitos secundários. O que me preocupa agora — porque há sempre qualquer coisa que me preocupa — são os problemas de respiração e deglutição. A zona à volta da tiróide duplicou ou triplicou de volume e faz-me pressão sobre a garganta. Respiro (não tive problemas de asfixia durante a noite e ainda tenho posição sentada e deitada de forma confortável, se bem que não por muito tempo de seguida) e engulo, mas muito mais dificilmente — as minhas refeições agora são sopas. Já tinha chamado a atenção do Dr. Depaus (ortografia corrigida) sobre tudo isto mas é verdade que, na altura em que ele me viu, o inchaço não era tão evidente. Vou falar-lhe logo que ele chegar às nove. Estou mais descansado porque a Sofia, Diogo e crianças chegam esta noite: não vou estar sozinho.


Fiquei muito contente com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Mário Vargas Llosa e estou a preparar o artigo que quero inserir aqui no blogue, possivelmente ainda hoje mas, ao mais tarde, amanhã.


E, Dico, não esqueci do artigo sobre o Lula mas ficará para depois do Vargas Llosa — provavelmente para domingo. Beijinhos para si.


E ainda para a Inês e Trezzu, de quem tenho saudades. Da Sofia et alii de Paris também mas já disse que os verei ainda hoje.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Quimioterapia/3

Mesmo quarto que da última vez – aquele cuja única vantagem era a posição da abertura das janelas que agora não tem nenhuma importância porque está imenso frio no quarto e as janelas ficarão... fechadas. Pelo contrário, o quarto continua feio e desconfortável.


O novo assistente da Maazeo é o Dr. De Pos. (Não sabia que variavam tanto: será que ela é insuportável?) Simpático, ouviu-me com atenção a propósito das insónias e da respiração. Umas gotas para dormir, aerossóis – vamos ver. Já nada me convence. Falou também de fazer um teste (amanhã?) para verificar se tenho uma bronquite crónica. Porque não, se bem que nunca ninguém me tenha falado disso e que o que eu quero é mesmo tratar das insónias? Mas dói-me a garganta. Quando respiro, silvo... Até as enfermeiras notaram e se preocuparam.


Os aerossóis são desagradáveis de utilizar (um tubo parecido com um charuto havana de plástico enfiado na boca pelo qual se inspira e expira; parece que estamos a mastigar um bife duríssimo e os dentes ficam doridos) mas parecem eficazes a limpar a garganta e os brônquios.


Emagreci 4 quilos desde a última sessão. Estou com 82. É natural porque não como bem porque ando sempre exausto e com sono. É o que sempre digo: as insónias estão a prejudicar o tratamento do cancro para além de me deixarem desorientado. Não é saudável.


Para não continuar a emagrecer, deram-me um complemento alimentar com sabor a moka (não é desagradável mas há-os também a saber a chocolate, morangos e baunilha). Foi uma boa ideia porque já quase me tinha esquecido dos wonder jantares aqui do hospital. Hoje, salada de feijão verde cru com uns bocados de fiambre mal cortados e, ao fundo, mas nem investiguei adequadamente, pareceu-me que restos da salada do almoço. Bem hajam os complementos alimentares!



Quimioterapia no centenário da República

Dia da quimioterapia a coincidir com o centenário da I República. Há comemorações em Portugal; por aqui, comemoro, efectuando o meu tratamento.


Disseram-me do hospital que bastava aparecer por volta das duas da tarde. Deito-me a adivinhar: quarto livre só a partir dessa hora? transfusão desnecessária por serem boas as análises do sangue ontem efectuadas? Saberei tudo isto daqui a poucas horas. Estes parágrafos são apenas desperdício de esforços. Mas só tenho tempo livre pela minha frente... Melhor aproveitá-lo.


Voltei a dormir muito pouco mas ocorreu-me a ideia de que tenho encarado o problema das insónias pela via errada. Ou seja que, ao menos desde há algum tempo, não seriam estas mas a falta de ar e as dificuldades de respiração que seriam responsáveis por acordar tão cedo e por não readormecer. Verifico que nos últimos dias tenho adormecido bem mas que acordo invariavelmente três horas depois sem conseguir respirar plenamente e sem posição na cama. Por outro lado, quando desci para a sala ontem e anteontem, também não consegui encontrar posição deitada no sofá e tive, minutos depois, que me sentar direito, encostado às almofadas. Mas tenho sono e, quando, por exemplo, vou buscar um copo de água ou por qualquer razão me levanto, sinto-me como um sonâmbulo. Se tiver razão, então toda a minha estratégia presente está errada e tenho que aproveitar todos os momentos de sono, a qualquer hora do dia, para tentar adormecer – ao contrário do que faço agora, que os evito. Vou falar à Meert hoje e com o Mertens (psiquiatra) amanhã por telefone.


Será que estas dificuldade de respiração acrescidas significam que as coisas, no plano físico, estão a piorar? Não tenho nenhumas outras razões para pensar assim: no máximo, uma correspondente maior dificuldade de engolir que deve ter a mesma origem e ma respiração ruidosa. No resto, tudo continua aparentemente bem: nenhumas dores, náuseas, vómitos, etc.. Estado geral excelente fora algum cansaço à noite, principalmente se me esforço mais do que é hábito. Mobilidade quase perfeita. Um pouco de tosse mas nada que não seja suportáve


O Dico disse-me para escrever um artigo sobre o Lula. Boa ideia. (Este blogue está a transformar-se no diário de uma insónia). Vou alinhavar alguns pensamentos na clínica para tentar terminar antes do fim-de-semana.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Psiquiatra

Fui ao psiquiatra. Falámos sobretudo das insónias mas outros temas, mais sérios, também vieram à baila. Afinal, já o conheço há mais de dez anos.


Quanto às insónias, recomendou-me que juntasse um comprimido de Dominal ao cocktail que já tomo. Ao que parece, este novo medicamento tem efeitos calmantes e contra a angústia. Pediu-me que lhe telefonasse depois de amanhã para saber como correram as coisas. Se o novo tratamento resultar, poderei até encarar a possibilidade de reduzir o Loramet.


O problema é que estou, nestes dias, a tomar cortisona em mais fortes doses. Mas experimentemos.

Noite

Dormi precisamente entre a meia-noite e meia e as duas e meia e depois dormitei na sala até às seis mas com sobressaltos. Três boas horas em suma. Acordei com o nariz tapado.

Hoje, vou ao psiquiatra – consulta prevista há muito tempo – para lhe falar principalmente destas insónias. Preciso de, com ele, adoptar uma forma de as vencer. A minha decisão de reduzir os medicamentos ainda me parece um passo no bom caminho. E qualquer maneira estas três horas dormidas ser-me-ão preciosas nos dias que se avizinham porque a cortisona cujas doses duplicam antes e depois da quimioterapia é tudo menos um calmante.

Prise de sang de manhã para, entre outras coisas, para verificar o estado geral e e a anemia – e saber se devo ou não fazer uma transfusão de sangue por altura da quimio.

domingo, 3 de outubro de 2010

Almoço de ontem, jantar de ante-ontem, sono, Trezzu, Leninha

Ontem, como previsto, fui almoçar a casa do Carlos. Massa (que tipo ele dirá, ou não, em comentário) com bacon e maçãs assadas para a sobremesa – há tempos, anos, que não comia! Agradável o setting, melhor ainda a companhia, com um tempo infecto lá fora – que ainda piorou antes de se acalmar. Depois passámos pela Orfeo para o Carlos comprar os jornais. Eu comprei Os Maias porque alguém (pensava que tinha sido a Trezzu mas ela nega a pés juntos) me tinha pedido emprestado a que tinha, naquela edição conhecidíssima encadernada a vermelho. Estava o Joaquim Pires da Silva, com quem conversei uns minutos. Depois voltei para casa. Estava bastante cansado.

Na noite anterior, a Ana Batalha também me tinha telefonado para ir lá jantar um arroz de pato. Muito bom (Bimbi?) mas também tive que me vir embora cedo. Aliás, o que me cansa mais agora é falar e gritar – mas gritar não consigo. (Tenho a certeza, no entanto, de que, se não grito, quase não me ouvem, ou fingem que não ouvem, a começar pela Kiddie, que dá mostras de uma independência crescente e irritante). Fico com tosse e sinto-me ansioso. O resto passa bem: andar, passear, etc. Mas para mim, é uma verdadeira mudança, esta de não falar alto.

Dormi razoavelmente mas acordei pela uma e meia (já pelo segundo dia) por causa do nariz entupido que me impede de estar deitado – não encontro posição, sento-me na cama com os pés de fora e é apenas assim que suporto a ameaça de falta de ar. Desci por volta das três e meia e ainda consegui adormecer por mais ou menos duas horas. Agora, quando escrevo isto, estou meio ensonado.

Ontem, quando falei com a Trezzu, estava cansado e enervado. Vou falar-lhe hoje para me desculpar. Tinha gostado tanto do seu comentário à minha anterior entrada no blogue. Espero (tenho a certeza) que me desculpe, minha querida.

E termino com um beijinho para a Leninha por razões que ela conhece. Vou tentar telefonar-lhe hoje.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Tempo lento

Começa um novo mês, o terceiro depois de saber que tinha um cancro, e não sinto nenhuma reacção particular... À vezes, mas poucas vezes, interrogo-me se esta minha decisão de provisoriamente não pensar directamente na doença e preferir concentrar os meus esforços no tratamento, deixando algumas perguntas graves, algumas as questões sérias, para outra altura, é a melhor forma de actuar. Provavelmente sim. Começar a cogitar no que aí pode vir seria uma distracção do meu objectivo principal, que é o de completar a quimioterapia nas melhores condições possíveis para que isto evolua depressa e bem. Daí também a minha preocupação com as insónias porque interferem com o tratamento, na medida em que me deixam exausto, enervado e, por isso, menos capaz de reagir.

Hoje voltei a dormir. Mesmo padrão que ontem: quatro horas na cama, quatro horas (ou um pouco mais) no sofá. É que, quando acordo pelas quatro da manhã, tenho o nariz entupido, custa-me respirar e perco a posição na cama. Pelo contrário, na sala, sento-me de forma diferente e consigo descansar.

O tempo custa a passar. Para combater esta angústia difusa de ter as horas pela frente sem maneira de as preencher, saio espaçadamente, passeio o cão, compro revistas, leio os livros acumulados (mas custa-me ler muitas páginas de seguida), navego na Internet e recomecei a organizar a minha biblioteca na iTunes. Mas nada disto significa obrigação a cumprir, é tudo elementar, fragmentário, desestruturado, e por isso há sempre horas que sobram antes de o dia acabar. E se o dia está feio - hoje amanheceu contente mas já se estragou -
ainda é mais difícil suportar o tempo que resta, como se a areia da ampulheta tivesse cessado de correr.

Amanhã, vou almoçar a casa do Carlos, o que me fará bem. Vamos também passar pela MediaMarkt e pela Orfeo, para ele comprar, e eu folhear, os jornais portugueses.

Na próxima semana, recomeço a quimioterapia. Com a mesma esperança de sempre e a mesma resolução, pesem horas perdidas, angústias ou insónias.