segunda-feira, 27 de novembro de 2006

Ternura – Poema de David Mourão-Ferreira

Até a minha filha - que não gosta muito de poesia - gosta deste poema. Para mim, David Mourão-Ferreira é dos maiores poetas portugueses do século XX e Infinito Pessoal um dos mais belos livros de poesia publicados na nossa língua.

(Fotografia – será necessário precisá-lo? – de Robert Doisneau)














TERNURA

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

O ténis mais bonito de sempre?

É a minha opinião. Mas o que pode objectivamente dizer-se é que Roger Federer (suiço, nascido a 8 de Agosto de 1981, em Oberwil) é o tenista mais completo de todos os tempos. E que, a continuar assim, não haverá recorde que fique de pé. Está época, o seu palmarés é extraordinário: 92 vitórias, 5 derrotas, 12 títulos (dos quais três do Grande Cheleme). Como Sampras, a única prova do Grande Cheleme que não ganhou ainda foi Roland Garros onde encontrou a sua única Nemésis: Rafael Nadal. Das suas cinco derrotas, quatro foram ao disputar finais de torneios: uma só vez foi afastado antes da final.

O que mais impressiona, porém, não é esta sucessão inacreditável de vitórias, nem este quadro inigualado de recordes. É o à-vontade do seu ténis: todas as jogadas parecem simples, naturais. A bola limita-se a estar ali, à espera de ser batida, daquela precisa forma e com aquela precisa força. Não admira que o considerem como o maior jogador de todos os tempos. É essa facilidade que o distingue acima de tudo. E, felizmente, ainda está para durar – largos anos. Para nosso prazer e admiração.

(Com uma piscadela de olhos ao Dico, que me sugeriu o tema desta entrada)

Reza matinal





SENHOR, dai-me sabedoria para entender alguns colegas, porque se me dais força, parto-lhes a cara!








(Obrigado à Miana que me mandou este texto)

domingo, 26 de novembro de 2006

Carlos Kleiber - A Elegância dum Maestro

Qual o meu maestro preferido? É difícil dizer. Se tivesse que escolher, «à ponta duma arma», diria possivelmente Claudio Abbado. Abbado é, em particular, um génio do acompanhamento: ninguém se lhe compara quando se trata de concertos, porque ninguém consegue obter essa indispensável comunhão com o solista que determina o sucesso duma interpretação. É com Abbado que dois dos maiores pianistas dos nossos dias, Pollini e Argerich, atingem o sublime. (Veja-se, em particular, a recente gravação dos Concertos para piano e orquestra, nºs 2 e 3, de Beethoven, com Abbado e Argerich). E Abbado consegue também ser extremamente comovente, por exemplo na sua interpretação da Heróica com a Orquestra Filarmónica de Berlim, em DVD, ou ainda quando dirige Mahler.

Mas, se o critério de escolha for a elegância, então conheço poucos maestros que se aproximem sequer de Carlos Kleiber. Aceito que esta ideia de elegância seja difícil de definir: para mim, ela significa sobretudo que cada gesto decorre imediatamente do gesto anterior, sem descontinuidade ou sobressalto; e que a música flui como se fosse naturalmente assim que devia soar, como quando o compositor, pela primeira vez, a ouviu. Esta elegância representa assim, ao mesmo tempo, a expressão duma férrea vontade, quanto à concepção da obra, e duma clara espontaneidade do movimento, na sua execução.

Kleiber, no pódio, comporta-se como um dançarino. Os seus gestos são largos e lentos. O corpo acompanha o braço, o olhar e o sorriso. Por vezes, deixa-se repousar, encostando-se à balaustrada do pódio como se estivesse simplesmente à espera do som que vem da orquestra. Os seus olhos, no entanto, sempre vigilantes, desmentem essa postura expectante: pelo contrário, a atitude de Kleiber é sempre activa e determinada. Não resta dúvida sobre quem é «maitre à bord». Mas, depois, quando o som soa como ele o ouviu, o maestro sorri e as mãos desenham, no ar, formas fluidas como barcos que se deixam arrastar numa corrente calma.

Carlos Kleiber era filho de outro grande maestro, Erich Keliber, a quem devemos algumas das mais extraordinárias gravações da Pastoral de Beethoven. Os seus pais fugiram da Alemanha Nazi para a Argentina e foi lá que o nome do jovem Karl se transformou neste Carlos que soava a uma certa forma de liberdade, a uma espécie de emancipação da rigidez germânica. Provavelmente, foi de Erich Kleiber que lhe veio uma extraordinária meticulosidade na preparação da orquestra. Conta-se que o seu pai, depois da guerra e do seu regressado à Europa, foi contratado para uma interpretação da Heróica, tendo exigido, para aceitar, seis sessões de ensaio com a orquestra. O director do teatro, preocupado com os custos, ter-lhe-ia dito que a orquestra conhecia bem a obra, que, na verdade, já a teria executado «milhares de vezes». Ao que Kleiber pai, sem sequer vacilar, lhe terá volvido: nesse caso, precisarei não de seis mas de oito ensaios. Queria dizer que os hábitos e erros acumulados e inconscientes exigiam correcção mais precisa. Do filho, diz-se que, em 1974, antes duma récita em Covent Garden, passou três horas a ensaiar 80 segundos do Prelúdio do Cavaleiro da Rosa de Richard Strauss.

Gravou poucas obras, deu poucos concertos. Há quem o tenha considerado um génio da evasão e do desaparecimento. Como disse um crítico descrente: o maior não maestro que alguma vez existiu. Há muitos anos, num ensaio célebre sobre Tolstoi e Dostoievsky, Isaiah Berlin distribuia os intelectuais por dois conjuntos: o das raposas que sabem muitas coisas e o dos ouriços que sabem apenas uma (grande, importante) coisa: "The fox knows many things, but the hedgehog knows one big thing". Talvez Carlos Kleiber fosse, nesta classificação, um ouriço. Decerto, nunca se aventurou para além de caminhos conhecidos: ainda hoje não compreendo porque não gravou a Heróica (parece que apenas porque não gostava desta sinfonia que é a minha preferida entre todas, aquela que eu levaria para uma ilha deserta.) Mas mesmo os seus críticos não conseguem deixar de espantar-se diante do rigor e da beleza das suas interpretações, e da sua elegância e força no pódio.

sábado, 25 de novembro de 2006

Philippe Noiret – Uma homenagem (2)

Uma bela fotografia, de alguém que se despede com alegria e confiança, para assinalar um artigo no Le Monde (disponível aqui: http://www.lemonde.fr/web/article/0,1-0,36-838210,0.html) que fala, a propósito do actor, de «la gueule, la voix, le ventre».

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Philippe Noiret – Uma homenagem

Estava em casa, à espera que me passasse a gripe para poder ir amanhã para Paris, quando o telejornal francês me trouxe a notícia da morte de Philippe Noiret. E, confesso (deve ser da febre – ou da idade), deixei-me vencer pela emoção! Não tenho a certeza de que isto seja compreensível para quem não faz parte da minha geração, da geração dum português de cinquenta anos para quem a cultura francesa, e o cinema francês, ainda significavam alguma coisa. Para os mais novos, Philippe Noiret era conhecido sobretudo pelo seu papel em Cinema Paradiso. Mas, para mim, para tantos outros que nasceram mais ou menos na mesma altura, ele foi um dos participantes na Grande Bouffe, com Mastroianni, Tognazzi et Piccoli, e sobretudo com Andréa Ferréol, e sobretudo sob a direcção de Marco Ferreri. O filme foi vaiado em Cannes em 1973 mas, aí como mais tarde em Portugal, na altura em que o pudemos ver, ele soou como um grito de liberdade. Depois (e porque não?) Cinema Paradiso mostra-o no seu amor do cinema, do teatro, da arte de representar. Muitos dos jovens da idade das minhas filhas mais velhas despertaram para o cinema através desse filme em que se celebra o encanto, a magia, da sétima arte - sétima arte era o nome do cinema, nessa altura. Que melhor testamento podia ele desejar, actor e cavalheiro? Era um senhor, no palco, no ecrã e na vida. Era um homem elegante que associo, sem saber porquê, ao discreto charme da burguesia (mesmo se não ignoro que foi Fernando Rey o actor de Buñuel), e que, nessa elegância e nesse encanto, não escondia a angústia e o remorso dos personagens que representava.

Jean Rochefort, amigo de cinquenta anos, soube encontrar as palavras adequadas para contar como, cinco dias antes da sua morte, lhe perguntou se tinha medo. «C’est déjà emmerdant comme ça», respondeu-lhe Noiret. «Alors, si tu y ajoutes la peur»... E ali ficaram, de mãos dadas, até que entrou um jovem médico que os viu assim e sorriu.

Provavelmente, esta incredulidade que me assalta tem a ver com o facto de, na Grande Bouffe, ele ser o sobrevivente: e de eu pensar por isso que seria imortal. E provavelmente (gosto de pensá-lo), este desgosto que sinto seria a homenagem que ele desejaria: a homenagem de quem apenas o conhecia pelos seus filmes e pela sua carreira de actor. A sua morte doeu-me muito. Muito mesmo. Sinal de velhice? Talvez. Mas ele também envelhecera. Mesmo assim, faz-me falta.

Blogue aos altos e baixos

Este blogue anda aos altos e baixos - com mais baixos do que altos - mas isto não significa menos interesse: apenas menos tempo. Esta semana, estive em formação de segunda a quarta, e depois ocupado com um documento em que ando a trabalhar há vários dias e que chega agora a fase de conclusão. Este fim-de-semana, vai ser difícil ocupar-me do blogue porque vou visitar a minha neta
(que já está bastante maior do que nesta fotografia lindíssima), a minha filha e o meu genro (por esta ordem?) e aproveito ainda para ir ver a exposição dos retratos de Ticiano. Assim, até segunda-feira.

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Ségolène Royal

Eu teria votado em Strauss-Kahn (embora ninguém me tenha pedido parecer) mas o resultado é sem apelo. Ségolène Royal será a candidata socialista às eleições presidencias de Maio próximo. Laurent Fabius paga o preço da incoerência: o seu volte-face em relação à Europa no último referendo desqualificou-o aos olhos de uma grande parte do partido. Strauss-Kehn não conseguiu impor uma visão resolutamente social-democrata da esquerda mas reafirmou uma imagem de competência, moderação e modernidade (palavra-chave que esconde normalmente um agitado vazio - mas nem é o seu caso) que o transformam em possível primeiro-ministro de uma Ségolène vitoriosa. Claro que, para isso, é preciso derrotar Sarkozy, se este conseguir escapar, como parece, às várias armadilhas que Chirac vai colocando no seu caminho, com a tenacidade de uma velha, muito velha, tartaruga. Desafio que, para a agora candidata oficial do PSF, será francamente mais árduo do que esta promenade de santé que foi a corrida à investidura socialista. É claro que, entre os dois, Ségolène e Sarkozy, eu sempre votaria Ségolène: mas, mais uma vez, não me parece que os franceses estejam particularmente interessados na minha opinião.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Deu-me Deus este gládio...











Nada tem a ver mas a referência de Grossman a «glaive» fez-me lembrar este poema de Fernando Pessoa, incluído na Mensagem, e dedicado a D. Fernando, o Infante filho de D. João I, morto em Tânger, que, no nosso tempo de escola primária, conhecíamos por Infante Santo, nessa mistura de registos entre Estado e Igreja em que o salazarismo se deleitava. Há quem diga que o poema tem uma significação oculta e sabe-se que Fernando Pessoa acreditava, duma forma estranha, em fenómenos esotéricos e em especulações astrológicas: mas tudo se perdoa ao poeta genial.

D. Fernando, Infante de Portugal

Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro de mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.

David Grossman no aniversário da morte de Rabin

David Grossman é um escritor israelita, nascido em 1954, autor de uma série de romances, de que o mais recente é um livro composto de duas novelas sob o título O seu corpo sabe: dois contos ou (se atendermos à tradução francesa) Escuto-te com o meu corpo: dois contos, e de várias obras de análise política e de intervenção, entre as quais vale a pena citar A morte como modo de vida: Israel dez anos depois de Oslo. No início de Agosto, Grossman, acompanhado de Amos Oz e de A.B. Yehoshua, dois outros grandes escritores de Israel, publicaram no jornal Haaretz um apelo à paz e a um cessar-fogo imediato no Líbano. Dias depois, o filho de Grossman, Uri (na fotografia, ao lado do pai) morreu quando o tanque em que seguia foi abatido por um míssil do Hezbollah.

(De Amos Oz, há dois livros extraordinários, que aqui ficam com os seus títulos em francês porque não conheço tradução portuguesa: Seule la mer, um magnífico poema em prosa em torno da solidão e do luto; e Une histoire d'amour et de ténèbres, que é uma autobiografia centrada sobre os anos da sua infância e da construção do Estado judeu. De A.B. Yehoshua, li, este Verão, um romance excelente com um título francês impossível, que nos faz hesitar em comprá-lo: Le Responsable des Ressources Humaines, um romance iniciático que acompanha um funcionário de uma empresa na busca do passado duma empregada vítima dum atentado em Jerusalém, no que vem a verificar-se ser uma viagem em torno de uma possível identidade nacional israelita).

O que une Grossman, Oz e Yehoshua, é a crença destes espíritos laicos naquilo que Grossman chama o «milagre político, nacional e humano» da criação – e até da existência – do Estado de Israel. Mas isto não os impede de lançar um olhar crítico, e muitas vezes acerbo, sobre as decisões políticas dos governos de Israel.

No passado dia 4 de Novembro (que é também o dia de anos do meu irmão Francisco – que deixei esquecido neste blogue porque me são difíceis estes primeiros anos em que a Mãe já não está connosco), realizou-se em Israel uma cerimónia em homenagem de Itzhak Rabin. David Grossman pronunciou um extraordinário discurso (disponível aqui: http://www.lapaixmaintenant.org/article1430). Algumas passagens, comoventes e lúcidas, do que deveria ser uma tomada de consciência, por parte do povo de Israel, de que não é possível viver em guerra permanente e que a legitimidade do seu Estado apenas será incontestável no momento em que for também resolvido o drama do povo palestiniano. Custa a compreender que um povo para quem a palavra gueto traz memórias de horror e destruição se feche agora, de modo quase voluntário, num gueto defendido por um muro que traça uma fronteira de separação e apartheid.

Eis alguns trechos do discurso de Grossman que deveríamos meditar comovidamente.

«Je m’exprime ici ce soir en tant qu’homme pour qui l’amour pour ce pays est difficile et complexe, mais en même temps sans aucune équivoque, et pour qui le pacte qu’il a toujours eu avec Israël est devenu, sur le plan personnel, un pacte de sang. Je suis un homme totalement laïque, et malgré cela, la création de l’Etat d’Israël est à mes yeux une sorte de miracle qui nous est arrivé en tant que peuple, un miracle politique, national et humain. Je ne l’oublie jamais, même un instant. Quand bien même de nombreuses choses me révoltent et me dépriment dans la situation que nous vivons, même quand le miracle devient routine et abandon, corruption et cynisme, même quand la réalité paraît une mauvaise parodie de ce miracle, je m’en souviens toujours. Je pars de ce sentiment-là pour vous parler ce soir.

“Regarde la terre, car nous l’avons gâchée”, écrivait le poète Shaul Tchernikhovski à Tel-Aviv en 1938. Il voulait dire par là que dans le sol d’Israël, nous déposons sans cesse de jeunes gens dans la fleur de l’âge. La mort de jeunes gens est un gâchis épouvantable, et elle hurle. Mais pas moins terrible est le sentiment que depuis de nombreuses années, l’Etat d’Israël gâche non seulement les vies de ses fils, mais aussi le miracle qu’il a connu : cette occasion immense et rare que lui a donnée l’Histoire, l’occasion de créer ici un Etat juste, éclairé, démocratique, qui respecterait les valeurs juives et universelles. Un Etat qui serait un foyer national et un refuge, et pas seulement un refuge, mais un endroit qui donnerait un sens nouveau à l’existence juive. Un Etat où une partie essentielle de l’identité, de l’éthos juif, serait un rapport de pleine égalité et de respect à l’égard de ses citoyens non-juifs.

Et voyez ce qui est arrivé. Ce qui est arrivé à ce pays jeune, audacieux et plein d’enthousiasme, et comment, comme par un processus de vieillissement accéléré, il est passé directement de l’enfance et de l’adolescence au stade du vieillard acariâtre, mou et aigri.

(…) Nos dirigeants, militaires et politiques, sont creux. Je ne parle même pas des fautes évidentes commises dans la gestion de cette guerre, de l’abandon de l’arrière, et même pas de la corruption, petite et grande. Je parle du fait que les gens qui dirigent aujourd’hui le pays sont incapables de relier les Israéliens à leur identité. Encore moins à la partie saine, vivante et féconde de cette identité, à ces parties de notre identité, de notre mémoire et de nos valeurs qui nous donneraient l’espoir et la force, qui nous vaccineraient contre l’affaiblissement de la solidarité, de l’amour du pays, qui donneraient un sens quelconque à notre lutte usante et désespérante pour la survie.

(…) Je ne dis pas cela par colère ou par esprit de vengeance. J’ai assez attendu pour ne pas réagir sous l’impulsion de l’instant. Vous ne pourrez pas faire fi de mes paroles sous prétexte qu’un homme n’est pas responsable quand il est sous l’emprise du chagrin. Bien sûr, j’ai du chagrin, mais par-dessus tout, ce n’est pas tant la colère qui m’anime que la douleur : j’ai mal à ce pays, et à ce que vous et vos collègues lui faites subir.

(…) Itzhak Rabin a pris le chemin de la paix avec les Palestiniens, non par amour pour eux ou pour leur dirigeant. En ce temps-là aussi, souvenons-nous en, l’opinion générale était que nous n’avions pas de partenaire et que nous ne pouvions discuter de rien avec eux. Rabin a décidé d’agir, car il avait compris, avec une grande intelligence et bien avant beaucoup d’autres, que la société israélienne ne pourrait continuer à subsister sur le long terme dans une situation de conflit insoluble. Il avait compris que vivre dans un climat de violence, d’occupation, de terreur, d’angoisse et de manque d’espoir exige davantage que ce qu’Israël était capable de supporter. Ceci est aussi valable aujourd’hui, avec encore plus d’acuité.

(…) Par le glaive nous vivrons, par le glaive nous périrons, et le glaive nous dévorera pour toujours. Peut-être cela explique-t-il l’indifférence avec laquelle nous acceptons l’échec total du processus de paix, échec qui dure depuis des années et fait de plus en plus de victimes. (…) Et tout cela est en partie la cause de cette dérive rapide d’Israël en direction d’un traitement brutal des pauvres et de ceux qui souffrent. Cette indifférence au sort de ceux qui ont faim, des personnes âgées, des malades et des handicapés, des faibles, cette équanimité de l’Etat d’Israël face au trafic d’êtres humains, ou aux conditions de travail insupportables de ses travailleurs étrangers, qui frisent l’esclavage, au racisme enraciné, institutionnalisé, à l’égard de la minorité arabe.

(…) La calamité qui a frappé ma famille et moi-même avec la mort de notre fils Uri ne me donne aucun droit particulier à tenir un discours public, mais je crois que l’expérience de la mort et de la perte apporte avec elle la lucidité, et au moins la faculté de distinguer l’important de ce qui ne l’est pas, ce qui peut être atteint de ce qui ne le peut pas.

(…) De là où je me trouve en cet instant, je lance un appel. J’appelle tous ceux qui m’écoutent, les jeunes qui sont revenus de la guerre et qui savent que ce seront eux qui seront appelés pour la prochaine guerre, les citoyens, juifs et arabes, de droite et de gauche, religieux et laïques : arrêtez-vous un moment et jetez un coup d’oeil à l’abîme. Pensez à combien nous sommes proches de perdre tout ce que nous avons créé ici. Demandez-vous s’il n’est pas temps de prendre les choses en main, de sortir de cette paralysie, et de réclamer, enfin, la vie qui nous est dûe.

Tristonho


O tempo está tristonho e pesado e o céu cobre-se dum manto cinzento e distante. É sempre assim em Novembro, mês que me traz tristes recordações: mas deve ser por causa delas que associo Novembro a estas imagens desoladas. Amanhã, faz trinta e dois anos que morreu o meu Pai; e três anos que morreu a Clara, com apenas quarenta anos. E é a primeira vez que, neste dia, não telefono à minha Mãe. Nada disto contribui para ajudar a suportar os dias escuros...

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Bush depois da derrota





Sugestão do meu filho Diogo para uma nova entrada neste blogue: uma fotografia de Bush que mostrasse a importância da sua derrota nas eleições da semana passada. Ou seja: Bush sozinho, com cara de parvo...

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Bush - Derrota, derrota, derrota

Não é que os democratas tenham demonstrado uma especial capacidade de liderança (na verdade, muitos democratas eleitos não se distinguem dos republicanos mas felizmente e por exemplo, isto não se aplica, entre outros, a Hillary Clinton), mas uma bofetada a Bush é algo que não consigo deixar de assinalar ruidosamente – e aplaudir. Para além disso, no momento em que escrevo, chega a notícia da demissão de Rumsfeld. Diz-se que uma desgraça nunca vem só. Provavelmente, acontece o mesmo com as boas notícias.
(Na imagem, Nacy Pelosi, a nova speaker da Câmara dos Representantes)

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Fernando Pessoa - Aniversário



















Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a inteligência de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!...
(Nem o eco…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
E terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Para uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! …

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! ...

Bridge ontem












Como o jogo de ontem não foi propriamente um sucesso, ficam escondidas - vergonha! - as caras dos jogadores.

sábado, 4 de novembro de 2006

Minhana - e breve digressão pelas férias covilhanenses

Logo nas primeiras páginas da biografia de D. Sancho I, escrita por Maria João Violante Branco e publicada pelo Círculo de Leitores (numa iniciativa editorial – a publicação das biografias de todos os reis de Portugal – que deveria ser suficiente para atribuir a esta casa editora uma condecoração por serviços prestados), encontrei uma referência à Minhana D. Teresa Afonso, segunda mulher e viúva do famosíssimo Egas Moniz (de Riba Douro), a quem foi confiada a educação («criação» é o termo utilizado por Violante Branco, no sentido de educação e sustento) do infante Sancho.

Há muito que não encontrava a palavra «minhana». Mas, para quem frequentou a escola Avé-Maria, se bem que por pouco tempo porque os meus pais partiram para o Funchal quando eu tinha seis anos e só voltámos a Lisboa depois de terminada a minha instrução primária, este nome não pode deixar de despertar emocionadas recordações. (Que serão ainda maiores no caso do meu irmão Francisco, que lá estudou até ao antigo segundo ano do liceu.)

Acresce que a Minhana, como todos a chamavam, fundadora da Escola em 1945 e sua directora até à sua morte (de que não consegui descobrir a data exacta mas que penso ter sido posterior à minha vinda para Bruxelas, em 1986), era prima direita da minha avó. Com efeito, o seu nome era Maria Alexandra Ranito de Almeida Eusébio (a minha avó chamava-se Maria Helena Ranito Pessoa.) Eram ambas netas do velho Ranito, de que tantas vezes ouvi falar, nestes precisos termos, e de que conheci a casa mas sobre quem, para além disso, nada sei. Tantas vezes, nas minhas férias na Covilhã, entre 10 de Junho (fim das aulas) até que acabava a Feira de São João, visitei o seu irmão, o primo José de Almeida Eusébio, e convivi com os seus filhos que depois reencontrei em Lisboa, em casa de António Alçada Baptista, o António Alfredo de que me falavam os meus pais, ainda debaixo do encantamento provocado pelo extraordinário talento de contador de histórias que nunca perdeu e que foi por eles primeiro experimentado nos serões das Penhas da Saúde, no Verão, em casa do tio Chico Cruz, casado com uma irmã do meu avô, a tia Lucinda (que ficava mesmo em frente deste hotel.) Ligados aos Almeida Eusébio, estavam os Fiadeiros e, mais tarde, os Mesquitas (entre Fiadeiros e Mesquitas houve vários casamentos cruzados mas, nessa altura, depois da morte da avó, já eu me tinha afastado da Covilhã), e todos eles foram meus companheiros dessas férias covilhanenses. A verdade é que aprendi a nadar na piscina que os Mesquitas tinham construído na sua fábrica: a «Cristiano Cabral Nunes e Co. Lda.» Os Mesquita viviam no rés-do-chão e cave (com um magnífico terraço onde, às vezes, jogávamos futebol) do prédio de que a minha avó ocupava o primeiro e segundo andares, e onde instalara a Residencial Costa, que abrira depois da morte do marido. Esta casa que a avó arrendara ao seu irmão António (Ranito Pessoa) e, por morte deste, à sua cunhada, a tia Maria Helena (Maria Helena era nome muito frequente na minha família) tinha, por isso, por não lhe pertencer, escapado ao arresto dos bens consecutivo à falência do avô Costa. O segundo andar, composto de salas e quartos com as paredes inclinadas em forma de águas-furtadas, correspondia aos aposentos familiares, embora os meus tios e os meus pais, quando iam à Covilhã, ocupassem no andar de baixo quartos em princípio destinados aos hóspedes. Os meus pais, por exemplo, ficavam sempre no quarto nº 5 (e foi nesse quarto que o Pai morreu). Era nas varandas desse último andar, e principalmente no telhado que ia duma a outra fachada, a primeira dando para a Igreja de Santiago, a segunda par o vale, com uma vista que se prolongava até à Serra de Alpedrinha, que eu me passeava sem que ninguém desconfiasse, escapando-me pelas janelas que davam para os estreitos beirais, às escondidas da avó e das criadas. Passados muitos anos, quando voltei a uma casa que infelizmente já nada tinha da casa em que vivera, e ao olhar para esses beirais, meros patamares inclinados, com menos de um metro de largura e com os seus tijolos alaranjados a mais de trinta ou quarenta metros da rua, apanhei o maior susto retrospectivo de toda a minha vida.

Não conhecia o verdadeiro sentido da palavra «minhana», que encarei apressadamente como uma alcunha sem particular significado. Mas a referência de Violante Branco levou-me a procurá-lo. E, com efeito, existiu no antigo galaico-português a forma miona usada como título honorífico dado às senhoras que, por nascimento ou casamento, pertenciam à mais alta nobreza. Esta forma miona, que resulta (como madame ou madonna) da aglutinação do pronome possessivo feminino da primeira pessoa e do substantivo latino domina, foi pouco frequente, tendo sido (segundo Clarinda de Azevedo Maia, da Universidade de Coimbra, in «Ona. Um arcaísmo galaico-português») possivelmente «deslocada pelas formas secundárias delas resultantes meana, miana e minhana.» (Assim, este artigo constitui também um piscar de olhos à Miana, que visita este blogue com alguma frequência e cá deixa os seus comentários).

Enfim, uma digressão que me permitiu voltar, por uns breves momentos, ao um tempo em que «eu era feliz e ninguém estava morto», como diz Álvaro de Campos, no seu poema que parece descrever-me: «Aniversário».

Festa Trezzu e Céline





É JÁ ESTA NOITE. A partir das nove e até às três da marugada, espectáculo de luz e som no Parque de Rodebeek aqui em Bruxelas, com 80 a 100 convidados. A Trezzu anda, desde ontem, numa roda viva: boutiques e cabeleireiro, manicure, pedicure, e que mais?... E eu, esta manhã, lenatei-me cedo e pus-me a arrastar mesas e cadeiras, grades de cerveja e garrafas de coca-cola. Filha contente (e enervada). Pai sofre. Adequada distribuição de tarefas por uma boa causa.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Um racismo pouco ordinário - uma notícia e um artigo

Uma notícia e um artigo que, à primeira vista, nada liga mas que, num plano mais profundo, se entrecruzam.

A notícia é a da morte de PW Botha, que foi, cronologicamente, o penúltimo primeiro-ministro do regime do apartheid mas, na realidade, o último que acreditou nas suas premissas de separação das raças e de dominação branca: Botha dizia que não fora o apartheid que separara as raças mas Deus. FW De Klerk, que veio depois, iniciou o desmantelamento dessa infâmia, libertando Nelson Mandela e dando origem ao processo que culminaria na sua eleição como primeiro Presidente de uma Africa do Sul na qual a esmagadora maioria da população acedia finalmente à liberdade. (É aliás difícil encontrar palavras adequadas para descrever a extraordinária generosidade de um homem que passou 27 anos na prisão e dela saiu para dirigir um regime de reconciliação.)

O artigo foi publicado na última edição da New York Review of Books, sob o título: «Blacks: Damned by the Bible». Assinado por David Brion Davis, é um comentário fascinante a um livro que não o deve ser menos, «The Curse of Ham: Race and Slavery in Early Judaism, Christianity and Islam», de David M. Goldenberg, no qual se analisa a «maldição ancestral» que Noé lançou sobre os descendentes do seu filho Ham e, especificamente, sobre o seu neto Canaan. Ao longo dos anos, assumiu-se que esta maldição se dirigia à raça negra e esta conclusão constituiu, em particular no século XIX, uma justificação religiosa da escravatura.

PW Botha não merece senão uma referência negativa. Durante os onze anos do seu governo, convencido de que defendia a civilização ocidental contra as hordas marxistas (argumentos que, substituindo marxistas por islamistas, parecem estar de novo na moda), prosseguiu uma política de repressão implacável dos activistas anti-apartheid e chegou a organizar uma campanha de assassinatos conduzidos por grupos armados ilegais que criou e financiou. Que o Congresso Nacional Africano (ANC) e Nelson Mandela tenham dirigido condolências à família de Botha demonstra uma grandeza que, apesar das suas pretensões de superioridade, lhe era totalmente estranha e é o sinal do orgulho e da confiança da maioria negra sul-africana, à frente dum regime de liberdade e de colaboração conseguido à custa de grande dor e sacrifício, em parte imputáveis às acções do homem, velho e amargo mas não arrependido, que agora morreu.

O artigo de David Brion Davis (que os assinantes da revista podem ler aqui: http://www.nybooks.com/articles/19600) é magnífico principalmente porque, seguindo Goldenberg, demonstra com abundância de provas este facto notável: nada na Bíblia permite concluir que a descendência de Ham e Canaan fosse de raça negra. Ou seja: não foi um texto bíblico de carácter racista que conduziu à escravatura dos descendentes de Ham mas precisamente o facto de a escravatura dos negros se ter entretanto generalizado que conduziu a uma reinterpretação da maldição de Noé e à atribuição dessa raça aos filhos de Ham. Assim, como todos os argumentos que pretendem justificar o racismo, também este apresenta um carácter circular. Define-se uma raça como «inferior» e as explicações vêm a posteriori. Acresce que, mesmo nos casos em que a Bíblia considera a cor (negra) da pele como uma punição – num mundo principalmente povoado de brancos uma cor diferente aparecia objectivamente como um castigo tal como, em histórias semelhantes de outras paragens, num mundo de negros é o ser branco que constitui a sanção – nada, no chamado texto sagrado, permite concluir que a escravatura lhe estivesse necessariamente associada.

Hoje, vivemos num mundo que presta menos atenção às histórias bíblicas (excepto entre a direito religiosa americana e esse é outro motivo da actualidade deste livro e deste artigo) e o argumento religioso em favor do racismo não tem a força dos argumentos pseudo-científicos de inferioridade física ou psicológica, baseados num suposto carácter (preguiçoso, indolente, de inteligência limitada) das raças não brancas. Mas é importante verificar que, quando o argumento colhia, foi brandido mesmo se, para tanto, foi necessário forjar interpretações e inventar palavras.

Como costumo dizer, qualquer argumento em favor do racismo cede perante a consideração dos indivíduos concretos – e é isso que demonstra a sua irrecuperável falsidade. Mesmo se fosse possível aceitar que uma raça tivesse sido amaldiçoada por Deus (e já isso representaria um formidável esforço mental), que tem isso a ver com a pessoa negra que é meu vizinho, meu colega de trabalho, minha amiga, minha amante, meu neto?... Dizer que essa pessoa é maldita é um passo que alguns poderão dar mas que ninguém – ninguém! – pode moralmente justificar.