domingo, 26 de novembro de 2006

Carlos Kleiber - A Elegância dum Maestro

Qual o meu maestro preferido? É difícil dizer. Se tivesse que escolher, «à ponta duma arma», diria possivelmente Claudio Abbado. Abbado é, em particular, um génio do acompanhamento: ninguém se lhe compara quando se trata de concertos, porque ninguém consegue obter essa indispensável comunhão com o solista que determina o sucesso duma interpretação. É com Abbado que dois dos maiores pianistas dos nossos dias, Pollini e Argerich, atingem o sublime. (Veja-se, em particular, a recente gravação dos Concertos para piano e orquestra, nºs 2 e 3, de Beethoven, com Abbado e Argerich). E Abbado consegue também ser extremamente comovente, por exemplo na sua interpretação da Heróica com a Orquestra Filarmónica de Berlim, em DVD, ou ainda quando dirige Mahler.

Mas, se o critério de escolha for a elegância, então conheço poucos maestros que se aproximem sequer de Carlos Kleiber. Aceito que esta ideia de elegância seja difícil de definir: para mim, ela significa sobretudo que cada gesto decorre imediatamente do gesto anterior, sem descontinuidade ou sobressalto; e que a música flui como se fosse naturalmente assim que devia soar, como quando o compositor, pela primeira vez, a ouviu. Esta elegância representa assim, ao mesmo tempo, a expressão duma férrea vontade, quanto à concepção da obra, e duma clara espontaneidade do movimento, na sua execução.

Kleiber, no pódio, comporta-se como um dançarino. Os seus gestos são largos e lentos. O corpo acompanha o braço, o olhar e o sorriso. Por vezes, deixa-se repousar, encostando-se à balaustrada do pódio como se estivesse simplesmente à espera do som que vem da orquestra. Os seus olhos, no entanto, sempre vigilantes, desmentem essa postura expectante: pelo contrário, a atitude de Kleiber é sempre activa e determinada. Não resta dúvida sobre quem é «maitre à bord». Mas, depois, quando o som soa como ele o ouviu, o maestro sorri e as mãos desenham, no ar, formas fluidas como barcos que se deixam arrastar numa corrente calma.

Carlos Kleiber era filho de outro grande maestro, Erich Keliber, a quem devemos algumas das mais extraordinárias gravações da Pastoral de Beethoven. Os seus pais fugiram da Alemanha Nazi para a Argentina e foi lá que o nome do jovem Karl se transformou neste Carlos que soava a uma certa forma de liberdade, a uma espécie de emancipação da rigidez germânica. Provavelmente, foi de Erich Kleiber que lhe veio uma extraordinária meticulosidade na preparação da orquestra. Conta-se que o seu pai, depois da guerra e do seu regressado à Europa, foi contratado para uma interpretação da Heróica, tendo exigido, para aceitar, seis sessões de ensaio com a orquestra. O director do teatro, preocupado com os custos, ter-lhe-ia dito que a orquestra conhecia bem a obra, que, na verdade, já a teria executado «milhares de vezes». Ao que Kleiber pai, sem sequer vacilar, lhe terá volvido: nesse caso, precisarei não de seis mas de oito ensaios. Queria dizer que os hábitos e erros acumulados e inconscientes exigiam correcção mais precisa. Do filho, diz-se que, em 1974, antes duma récita em Covent Garden, passou três horas a ensaiar 80 segundos do Prelúdio do Cavaleiro da Rosa de Richard Strauss.

Gravou poucas obras, deu poucos concertos. Há quem o tenha considerado um génio da evasão e do desaparecimento. Como disse um crítico descrente: o maior não maestro que alguma vez existiu. Há muitos anos, num ensaio célebre sobre Tolstoi e Dostoievsky, Isaiah Berlin distribuia os intelectuais por dois conjuntos: o das raposas que sabem muitas coisas e o dos ouriços que sabem apenas uma (grande, importante) coisa: "The fox knows many things, but the hedgehog knows one big thing". Talvez Carlos Kleiber fosse, nesta classificação, um ouriço. Decerto, nunca se aventurou para além de caminhos conhecidos: ainda hoje não compreendo porque não gravou a Heróica (parece que apenas porque não gostava desta sinfonia que é a minha preferida entre todas, aquela que eu levaria para uma ilha deserta.) Mas mesmo os seus críticos não conseguem deixar de espantar-se diante do rigor e da beleza das suas interpretações, e da sua elegância e força no pódio.