quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Um racismo pouco ordinário - uma notícia e um artigo

Uma notícia e um artigo que, à primeira vista, nada liga mas que, num plano mais profundo, se entrecruzam.

A notícia é a da morte de PW Botha, que foi, cronologicamente, o penúltimo primeiro-ministro do regime do apartheid mas, na realidade, o último que acreditou nas suas premissas de separação das raças e de dominação branca: Botha dizia que não fora o apartheid que separara as raças mas Deus. FW De Klerk, que veio depois, iniciou o desmantelamento dessa infâmia, libertando Nelson Mandela e dando origem ao processo que culminaria na sua eleição como primeiro Presidente de uma Africa do Sul na qual a esmagadora maioria da população acedia finalmente à liberdade. (É aliás difícil encontrar palavras adequadas para descrever a extraordinária generosidade de um homem que passou 27 anos na prisão e dela saiu para dirigir um regime de reconciliação.)

O artigo foi publicado na última edição da New York Review of Books, sob o título: «Blacks: Damned by the Bible». Assinado por David Brion Davis, é um comentário fascinante a um livro que não o deve ser menos, «The Curse of Ham: Race and Slavery in Early Judaism, Christianity and Islam», de David M. Goldenberg, no qual se analisa a «maldição ancestral» que Noé lançou sobre os descendentes do seu filho Ham e, especificamente, sobre o seu neto Canaan. Ao longo dos anos, assumiu-se que esta maldição se dirigia à raça negra e esta conclusão constituiu, em particular no século XIX, uma justificação religiosa da escravatura.

PW Botha não merece senão uma referência negativa. Durante os onze anos do seu governo, convencido de que defendia a civilização ocidental contra as hordas marxistas (argumentos que, substituindo marxistas por islamistas, parecem estar de novo na moda), prosseguiu uma política de repressão implacável dos activistas anti-apartheid e chegou a organizar uma campanha de assassinatos conduzidos por grupos armados ilegais que criou e financiou. Que o Congresso Nacional Africano (ANC) e Nelson Mandela tenham dirigido condolências à família de Botha demonstra uma grandeza que, apesar das suas pretensões de superioridade, lhe era totalmente estranha e é o sinal do orgulho e da confiança da maioria negra sul-africana, à frente dum regime de liberdade e de colaboração conseguido à custa de grande dor e sacrifício, em parte imputáveis às acções do homem, velho e amargo mas não arrependido, que agora morreu.

O artigo de David Brion Davis (que os assinantes da revista podem ler aqui: http://www.nybooks.com/articles/19600) é magnífico principalmente porque, seguindo Goldenberg, demonstra com abundância de provas este facto notável: nada na Bíblia permite concluir que a descendência de Ham e Canaan fosse de raça negra. Ou seja: não foi um texto bíblico de carácter racista que conduziu à escravatura dos descendentes de Ham mas precisamente o facto de a escravatura dos negros se ter entretanto generalizado que conduziu a uma reinterpretação da maldição de Noé e à atribuição dessa raça aos filhos de Ham. Assim, como todos os argumentos que pretendem justificar o racismo, também este apresenta um carácter circular. Define-se uma raça como «inferior» e as explicações vêm a posteriori. Acresce que, mesmo nos casos em que a Bíblia considera a cor (negra) da pele como uma punição – num mundo principalmente povoado de brancos uma cor diferente aparecia objectivamente como um castigo tal como, em histórias semelhantes de outras paragens, num mundo de negros é o ser branco que constitui a sanção – nada, no chamado texto sagrado, permite concluir que a escravatura lhe estivesse necessariamente associada.

Hoje, vivemos num mundo que presta menos atenção às histórias bíblicas (excepto entre a direito religiosa americana e esse é outro motivo da actualidade deste livro e deste artigo) e o argumento religioso em favor do racismo não tem a força dos argumentos pseudo-científicos de inferioridade física ou psicológica, baseados num suposto carácter (preguiçoso, indolente, de inteligência limitada) das raças não brancas. Mas é importante verificar que, quando o argumento colhia, foi brandido mesmo se, para tanto, foi necessário forjar interpretações e inventar palavras.

Como costumo dizer, qualquer argumento em favor do racismo cede perante a consideração dos indivíduos concretos – e é isso que demonstra a sua irrecuperável falsidade. Mesmo se fosse possível aceitar que uma raça tivesse sido amaldiçoada por Deus (e já isso representaria um formidável esforço mental), que tem isso a ver com a pessoa negra que é meu vizinho, meu colega de trabalho, minha amiga, minha amante, meu neto?... Dizer que essa pessoa é maldita é um passo que alguns poderão dar mas que ninguém – ninguém! – pode moralmente justificar.