terça-feira, 31 de outubro de 2006

Diogo - Parabéns





Mesmo de longe, festejamos assim! Muitos parabéns ao Diogo - genro. Primeiro ano que passa com a filha: muitos virão. Um abraço.

Trezzu - Piercing




Ontem, a Trezzu foi fazer um piercing na orelha. Será que me vai aparecer assim em casa?

Comentário irritado a algumas críticas à educação dos meus filhos

E entretanto, em dia em que deviam estar chez Vanda, o Diogo e o seu amigo Arthur vêm dormir cá em casa: estou certo que para desespero de um grupo de certas mães convencidas de que o meu filho é, como dizem, «demasiado livre». Pela minha parte, é sabido que nunca há problemas, mesmo quando, como foi o caso, apenas me previnem à última da hora. E esta nota só aqui fica porque tais mães (que profundamente me irritam) ainda não perceberam que o Diogo, ao contrário dos filhos delas, estuda e trabalha sem que eu tenha sequer que insistir com ele. (Poderia dizer o mesmo da Teresa mas há que reconhecer que as mães e pais das amigas e amigos dela são mais razoáveis.) Resta-me acrescentar que deve ser por isto, por esta forma de os educar, que não há chumbos cá em casa. Vantagens da liberdade! (É difícil de entender para quem não a pratica...) Só quero ser avaliado em função de resultados. Se as coisas correrem mal, assumirei as consequências. Mas, por enquanto...

(Esta capa da revista MAD fez-me lembrar o Zé Maria, que a comprava desde miúdo e a conhecia de cor.)

Bridge esta noite

Com o Nuno a jogar muitíssimo bem, deixámos os segundos a 10 pontos de distância e ganhámos uma garrafa como esta (Château de Fongaban, Côtes de Costillon), só que dum ano mais recente: 2003.

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Dieta - amanhã!

Amanhã recomeço a dieta: a custo, sem vontade, devagarinho. Desta vez, não será sopa de couves mas muita sopa e pouca comida da outra. Espero não acabar como na anedota contada pelo meu avô: um homem que escrevera no quadro «amanhã, jejuo» e todos os dias, ao acordar, dizia para os seus botões: «ainda bem que não é hoje!» O meu avô, que era, ainda mais que boa pessoa, uma pessoa boa, contava isto de forma diferente, com laivos racistas, mas a referência a pessoas de cor não aumenta o riso ou o sorriso. Por isso, aqui fica a piada corrigida.

Lula reeleito - Teste esquerda ou direita

Eis um teste para aqueles que dizem que esquerda e direita já não importam. Por quem votaríamos nestas eleições? Não tenho dúvidas em dizer que, apesar de todas as acusações dirigidas contra Lula, e mesmo que algumas sejam fundamentadas, nunca me passaria pela cabeça, fosse eu brasileiro, votar noutro candidato. Lula, ao longo da sua vida e no seu primeiro mandato (mas nesta ordem), nunca renegou as suas origens e os pobres do Brasil, de que há milhões, beneficiaram com a sua presidência. Um país onde as desigualdades sociais atingem níveis inimagináveis nesta Europa pobre do seu Estado Social (ou seja, onde alguns de nós teimam em negar o extraordinário progresso social que representa a nossa forma de vida) reelege um Presidente que se preocupa com a sorte daqueles que sofrem, que têm fome, que não têm terra. Lula é, ainda, um desses poucos homens que, chegados ao poder, não se esqueceram de quem os lá levou. Só por isso merece a sua reeleição, que chegou hoje, com mais de 60% dos votos.

domingo, 29 de outubro de 2006

A Sinfonia Patética de Tchaikovsky

Uma emissão da «Arte» sobre a 6ª Sinfonia – a Patética – de Tchaikovsky. Ouvi depois a interpretação e, principalmente, os comentários de Bernstein, num álbum que reúne cinco grandes sinfonias: a Heróica de Beethoven, a Novo Mundo de Dvořák, e as 4ªs de Brahms e Schumman. Ouvir Bernstein é voltar ao tempo em que, a preto e branco, assistíamos aos seus concertos para jovens. As suas explicações são luminosas e acessíveis mesmo a quem tenha apenas conhecimentos rudimentares de música.

Sobre a Patética, algumas notas:

1. Uma mistura de temas e de melodias belíssimas, como o célebre segundo tema do primeiro andamento, que Bernstein considera o exemplo mesmo de uma melodia cantabile.
2. O terceiro andamento, uma marcha que parece militar, foi recuperado no tempo de Estaline e «servido» como modelo do optimismo que andava ligado à Revolução bolchevista e aos sucessos do povo soviético.
3. O quarto e último andamento, um adagio, constituiu uma revolução formal no final do século XIX: tradicionalmente, as sinfonias, como os concertos para piano ou violino, acabam normalmente com andamentos rápidos, allegro, allegro cantabile, rondo ou allegro assai. É, aliás, o carácter grave e triste deste andamento que dá o título à sinfonia. E é também por isso que foi frequentemente utilizado como marcha fúnebre, por exemplo no enterro de Eisenstein (e penso que também foi tocada no enterro de Estaline, mas não consegui confirmar esta informação).
4. As melhores gravações são de Mravinsky, com a sua orquestra, a Orquestra Filarmónica de Leninegrado. Há várias versões, duas das quais, uma mono, de 1956, outra stereo, de 1960, são as mais conhecidas. Esta última (num disco que reúne, como quase todas, as 4ª, 5ª e 6ª sinfonias, numa fórmula repetidamente irritante que nos obriga a mudar de CD a meio da 5ª) acaba de ser editada na colecção «The Originals». Vale a pena comprá-la. Mravinsky dirige a orquestra com a sua tradicional «mão de ferro» e se, por vezes, parece que nos encontramos numa parada militar, há poucas ou nenhumas interpretações que atinjam a mesma tensão dramática.

Tia Vicas
















A Tia Vicas morreu na terça-feira e, assim, é toda a geração dos meus pais que deixa de existir. Como estava em Lisboa, fui vê-la ao hospital no sábado passado e pude dar-lhe um beijo de despedida. Era uma grande senhora que, com o tio Carlos e ao longo de tantos anos, me deu amizade e ternura. A sua morte doeu-me, num ano em que me faltam as lágrimas para chorar tantas partidas. A tia era profundamente religiosa e, por isso, julgo que este quadro de Giotto constitui um acompanhamento adequado dessa tristeza. Ao João, Rui e Pedro, meus primos, meus irmãos, a comunhão numa dor - a dor da morte dos nossos pais - que se diz apenas com palavras contidas. Logo que puder, porei aqui uma fotografia tirada no seu casamento em que se vê o tio Carlos a oferecer-me (eu, com menos de um ano!) à tia, sentada na relva em vestido de noiva.

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Parabéns antecipados





À Inês, pelos seus 26 anos, que passaremos todos juntos. Seguirá fotografia da família inteira para que o Carlos possa voltar a pôr aqui o seu simpático comentário: «Lamento dizer-te mas és, de todos, o mais feio.»

Fim-de-semana












Vou de avião para Lisboa passar o fim-de-semana. Estou contente.

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Javier Cercas - À Velocidade da Luz (2)







Nestas coisas de crítica, esforço-me por manter uma certa modéstia. O mundo está cheio de gente com imensas certezas e, felizmente, não me conto entre elas. Mas, por isso mesmo, é gratificante verificar que, às vezes, a minha opinião é partilhada por outras pessoas.

Assim, foi com algum agrado que li o artigo que apareceu hoje no Nouvel Observateur, assinado por Frédéric Vitoux, sobre o romance À Velocidade da Luz, de Javier Cercas, que aqui comentei há alguns dias. Ele diz que este livro «confirma o talento de Cercas como narrador. Mas «quelque chose lui manque tout de même». Cercas é um universitário e esse é precisamente o problema. «Pour un universitaire, l'inteligence est un devoir. Pour un romancier, une option» (a frase é bonita, a mensagem esperada). Mas o que é importante do ponto de vista da análise do livro e em certa medida correspondendo ao que escrevi é que Vitoux reconhece que a intriga é demasiado artificial e construída: uma tese (ligeira) mais do que um romance.

Aqui fica a parte mais importante deste texto (em francês, que me faltam tempo e paciência – é meia-noite, amanhã vou de viagem, ainda tenho que fazer as malas, minhas e destes dois adolescentes que vivem cá em casa):

«A la vitesse de la lumière» confirme le talent de narrateur de Cercas. Quelque chose lui manque tout de même. On a dit qu'il était universitaire. Tout est là. Ce n'est pas un reproche – à condition toutefois de ne pas sacrifier l'émotion à l'analyse, le tremblé (sic) des personnages à la cohérence abstraite de leurs caractères, le naturel d'une intrigue à la symétrie d'une démonstration. Pour un universitaire, l'inteligence est un devoir. Pour un romancier, une option. (...) Le parallèle entre le destin de Rodney (o americano que parte para o Vietnam), les atrocités trop prévisibles qu'il accomplit au Vietnam, sa culpabilité qui le pousse au suicide, et celui du narrateur, qui se croit responsable de la mort de sa femme et de son fils dans un accident, est bien trop artificiel pour être pertinent.»

Resta-me observar, mesmo concordando com ele no essencial, que o crítico não evita uma armadilha em que Cercas, mesmo assim, não cai: a pecha dos lugares comuns e das frases feitas. Uma pena!

Semana que passou


















Muito e chato trabalho, dieta rigorosa baseada num verdadeiro néctar: a famosa «soupe aux choux». Mas ando bem disposto. Como?
Deve ser pelo fim-de-semana que se aproxima – Lisboa e anos da Inês.

Prémio Nobel da Paz - Muhammad Yunus e Grameen Bank

Educamos as nossas crianças e garantimos que ganhem dinheiro para a sua educação










Não aceitamos dote para os nossos filhos nem oferecemos dote às nossas filhas. Na nossa aldeia não haverá dote – o dote é uma maldição. Não praticamos casamentos de crianças.










(Estas duas imagens, retiradas do site Grameen (http://www.grameen-info.org/) ilustram duas das dezasseis decisões colectivas que, segundo a organização, podem contribuir para o desenvolvimento.)

Para quem trabalha, de perto ou de longe (e, aqui na Comissão, é geralmente de muito longe que se trabalha) com os problemas do desenvolvimento, a decisão do Prémio Nobel da Paz deste ano não pode deixar de constituir motivo de satisfação. Com efeito, ao atribuí-lo ao economista do Bangladesh Muhammad Yunus e ao banco por ele criado, o Grameen Bank, o comité de Oslo (este é o único Prémio Nobel que não é decidido na Suécia mas, segundo a vontade de Alfred Nobel, por uma comissão nomeada pelo Parlamento norueguês) recompensa um esforço original e notável de promover o desenvolvimento numa perspectiva de baixo para cima.

Yunus (fotografia ao lado) desenvolveu e aplicou na prática o conceito do micro crédito, ou seja, da concessão de muito pequenos empréstimos a empresários demasiado pobres para poderem ter acesso aos empréstimos bancários tradicionais – considerando que os pobres e as restantes pessoas de menos recursos dispõem de competências não utilizadas e que, se desenvolvidas, se traduzirão em benefícios para os próprios e para as comunidades em que se integram. Em 1976, fundou o Grameen Bank (Grammen significa «áreas rurais» ou «aldeias» – um verdadeiro Banco das Aldeias) e, desde então, o banco concedeu mais de 5,1 biliões de dólares a mais de 5,3 biliões de beneficiários. O problema, neste tipo de iniciativas, é o de assegurar o reembolso porque, pela sua natureza mesmo, muito dos beneficiários dos créditos podem enfrentar grandes dificuldades. Assim, o banco utiliza um sistema de garantia baseado em «grupos de solidariedade», pequenos grupos informalmente constituídos que solicitam em conjunto um empréstimo global ou colectivo e que funcionam, por um lado, como garantes perante o banco e, por outro lado, como sistemas de apoio aos beneficiários individuais. Quanto ao resto, o banco funciona como qualquer outro: aceita depósitos, concede créditos hipotecários, oferece serviços financeiros. Um dado à primeira vista extraordinário é que mais de 96% dos créditos do Grameen foram distribuídos a mulheres; mas os que trabalham neste domínio sabem que o desenvolvimento das comunidades tradicionais e das aldeias depende essencialmente das mulheres que, por um lado, sofrem directamente, e sem escapatória, os efeitos da pobreza, sobre elas e sobre os filhos, e, por outro, investem directamente na melhoria das condições de vida da família o dinheiro recebido. O banco cobre, neste momento, 72.096 aldeias, correspondendo a 86% de todas as aldeias do Bangladesh.

Uma nota final para dizer que nada impede, em teoria, que o exemplo Grameen seja transplantado para sociedades mais desenvolvidas, podendo, por exemplo, ajudar na recuperação de áreas afectadas pela reconversão industrial ou na recuperação da actividade nos centros urbanos em declínio. Mas, na prática, é relativamente mais difícil encontrar nestes casos os famosos «grupos de solidariedade». O que não devia deixar de nos interpelar.

domingo, 15 de outubro de 2006

Javier Cercas - À Velocidade da Luz

Acabei de ler este livro, de Javier Cercas, um autor espanhol que se deu a conhecer, há alguns anos, com um primeiro sucesso chamado Os Soldados de Salamina, adaptado ao cinema por David Trueba, num filme selecccionado para o Festival de Cannes, em 2003, na secção «Un certain regard». Quanto a este novo livro, a história de um jovem espanhol (futuro escritor) que parte ensinar para uma universidade americana e aí encontra um veterano do Vietname, já o vi descrito como um «grande romance sobre as origens do mal e o poder da literatura». Esta frase mereceria, só por si, um comentário profuso (e um olhar crítico sobre esta mania de ver, nas coisas mais banais, exemplos sublimes) mas limito-me a dizer que considerei À Velocidade da Luz como uma obra algo convencional, embora muito bem escrita, sobre o tema da culpabilidade associada aos massacres prepetrados no Vietnam (e sobre essa culpabilidade, ou sobre o sentimento absurdo dessa guerra, alguns filmes, entre os quais Apocalypse Now e O Caçador, já nos disseram muito mais.) Se o talento de escritor de Cercas se espalha pelas páginas deste seu novo livro, resta-me pegar no primeiro para ver se encontro também aquela espécie de grandeza, ou fôlego, que define um grande escritor. Mas isto terá que ficar para depois porque - prometido é devido - comecei The Inheritance of Loss (o Booker deste ano): e, até agora, trata-se duma agradável surpresa. Ao mesmo tempo, e para descansar a cabeça, leio uma biografia de Paracelso, sábio e mágico da Renascença: The Devil's Doctor - Paracelsus and the World of Renaissance Magic and Science. Autor: Philip Bail. Muito interessante - uma investigação centrada nos laços entre ciência e magia no período da Renascença, entre um pensamento científico incipiente e um espírito de magia que se apagaria em face da nova visão do mundo que o primeiro viria a impor, e levada a cabo através da história dum homem controverso, genial ou charlatão, que era afinal o produto do seu tempo e que, ao olhar o mundo simultaneamente sob o prisma da biologia e da alquimia, abriu as portas às novas formas de reflexão que conduzem à ciência moderna.

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Três livros de Pamuk

Neve

Considerado por Pamuk como o seu primeiro livro especificamente político (mas não o são todos?), Neve conta o confronto entre dois grupos (ou mundos) antagonistas – de um lado, os nacionalistas turcos partidários de um laicismo integral e, do outro, os fundamentalistas islâmicos – tal como visto por Ka, jornalista e poeta turco que regressa ao seu país depois de doze anos passados na Alemanha. Ka é encarregado de efectuar uma reportagem sobre uma vaga de suicídios de jovens adolescentes (na maioria dos casos veladas) e, com esse objectivo, parte para Kars, cidade da Anatólia que, durante o tempo do romance, se encontra isolada do mundo por fortes nevões. Aí, Ka encontra Ipek, que conhecera quando adolescente e que está agora casada com Muhtar, ex-marxista, agora candidato às eleições pelo Partido de Deus. Pamuk faz crescer a tensão até que estala uma manifestação sangrenta que se transforma em carnificina. Ka acaba por morrer assassinado, incapaz de encontrar um caminho por entre as contradições de um país dilacerado entre grupos incapazes de se compreenderem e aceitarem.



O Meu Nome é Vermelho

A história, contada em cinquenta e nove curtos capítulos por doze narradores – entre os quais duas vítimas de assassinato e vários objectos inanimados – desenrola-se em Istambul, no século XVI. Para celebrar o milénio da Hégira, o Sultão Morad III encomenda um manuscrito, ordenando que seja ilustrado por vários famosos iluministas. Mas estamos num tempo em que a arte da iluminura persa (celebrada por Behzad, cuja lenda afirma que, depois de realizada a sua obra-prima, vazou os seus olhos para não contemplar obras menores) começa a sofrer a influência da arte ocidental, que vai introduzir a perspectiva e o retrato. Duas personagens são assassinadas e Black, apaixonado por Shekure, vai tentar descobrir o ou os assassinos. Mas estamos longe de uma história linear e o romance desenvolve-se através de diferentes temas e em diferentes níveis: evocação poderosa da cidade, referências à história da pintura, oriental e ocidental, enigma policial.



O Livro Negro

A neve de Istambul apaga os passos de Galip da mesma forma que o tempo varre a memória de sua mulher, Ruya, que partiu abruptamente – partida ou desaparecimento? – deixando atrás de si dezanove palavras que nada dizem. As recordações de Galip traça-nos, de Ruya, um retrato impreciso: sabemos que falava pouco, vivia quase reclusa no pequeno apartamento que ambos partilhavam e lia livros policiais; mas a sua personalidade dissipa-se por sobre a bruma e no frio dos dias de Istambul. Com Ruya, desapareceu o seu primo Djélâl, jornalista anti conformista que escrevia uma coluna original num quotidiano da capital (os textos de Djélâl, que formam capítulos dispersos ao longo do livro, constituem verdadeiras obras-primas que Galip relê para procurar indícios que lhe permitam descobrir o seu paradeiro.) Perdido no labirinto da grande cidade, a busca de Galip é uma percurso iniciático, em busca de uma impossível compreensão.

Margaret Atwood sobre Pamuk

Margaret Atwwod é uma escritora canadiana, cujo livro The Blind Assassin, a que já me referi neste blogue, ganhou o Booker Prize em 2000. Publica hoje no Guardian um breve artigo sobre o novo Prémio Nobel, de que traduzo algumas frases.

«Por vezes, as suas personagens são quase literalmente dilaceradas pelas escolhas que são forçadas a fazer sem saber como fazê-las. A sua força, como romancista, decorre em parte da sua recusa em julgar essas decisões: a tragédia das suas personagens é que, seja qual for o rumo que tomem, não conseguirão alívio; e, pior, que é irremediável que sejam condenados por algum outro membro da sociedade em que vivem. (…)

Assim, os heróis de Pamuk (tipicamente heróis, não heroínas) vagueiam através dos enredos dos seus livros como se estivessem presos nas malhas de um sonho particularmente angustiante e ameaçador. (…) Não é raro que os protagonistas de Pamuk morram às mãos de desconhecidos. (…)

Pamuk dá-nos o que os melhores romancistas nos dão: a verdade. Não a verdade das estatísticas mas a verdade da experiência humana num lugar particular, num tempo particular. Como em toda a grande literatura, sentimos, por momentos, que não somos nós que observamos o autor, mas que é ele que nos observa. «Ninguém consegue compreender-nos a olhar-nos de tão longe» diz uma das personagens de Neve

E provavelmente para reduzir essa distância que Pamuk escreveu os seus livros.

quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Kit «mãos livres» da Trezzu





Vale a pena comentar?

Nobel de Literatura para Orhan Pamuk

Orhan Pamuk, escritor turco de 54 anos de idade, ganhou o Prémio Nobel de Literatura de 2006.

De acordo com o comunicado da Academia de Estocolmo, e numa linguagem algo críptica, Pamuk, «na sua procura da alma melancólica da sua cidade natal (Istambul), descobriu novos símbolos para o choque e cruzamento das culturas.» Como a Academia depois realça (e de forma mais clara), o facto de o romancista ter experimentado, ao longo da sua infância e adolescência e no interior da sua própria casa, a substituição do modelo familiar otomano tradicional por um estilo de vida ocidental constituiu uma influência poderosa na sua obra.

Esta decisão era de certo modo esperada, não somente por causa do enorme talento literário de Pamuk, mas ainda porque, recentemente, o escritor se viu envolvido em controvérsia no seu país, em razão das suas corajosas tomadas de posição no que respeita ao genocídio arménio e ao problema curdo. Por essas declarações, feitas em 2005, chegou a ser perseguido judicialmente – mas as acusações foram mais tarde retiradas.

Aliás, é curioso verificar que a atribuição do Nobel a Pamuk ocorre no mesmo dia em que, em França, numa decisão contestável, a Assembleia Nacional aprova uma lei que transforma em crime a negação do genocídio arménio, perpetrado em 1915 pelos «Jovens Turcos», um movimento revolucionário que depusera o califa e constituiria o berço da revolução de Ataturk, um homem implacavelmente laico e ocidental, considerado o pai da Turquia moderna. Embora a realidade do genocídio não ofereça historicamente dúvidas, a Turquia, como país, e uma grande parte da sua população, recusam-se ainda a admiti-lo.

Das novelas de Pamuk que li, O Livro Negro é a história de um marido que procura a sua mulher desaparecida, numa busca estranha, complicada, com passagens geniais; O Meu nome é Vermelho é um romance histórico que lida com um assasinato motivado por querelas ligadas à representação da figura humana no Islão e, por esta via, com os contactos entre civilizações diferentes e as suas influências recíprocas; e Neve, o último a ser publicado, conta o regresso ao país (e a uma cidade em particular, isolada por enormes nevões) dum poeta turco exilado na Alemanha, numa altura em que estalam conflitos entre islamistas e laicos – que não são, aliás, tão simples de resolver como pensam alguns apressados comentadores ocidentais.

Eu definiria Pamuk como um escritor de espaços fechados e angustiantes, cujas obras parecem envoltas em bruma e nos deixam uma sensação de amargura e de incompletude. Mas é um grande escritor que conheço relativamente bem e de que gosto muito e, por isso, é com imenso agrado que o vejo consagrado pelo Nobel.

A passagem dos dias






Eis (salvo seja!) o que me acontece na Comissão...

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Kiran Desai vence o Booker Prize



















A mais jovem mulher a ganhar o Man Booker Prize com «The Inheritance of Loss». Nascida em 1971, na India, Kiran Desai é filha de Anita Desai - uma escritora que tem uma relação antiga com o Booker: chegou por três vezes à fase final (shorlist) mas nunca venceu. Agora, pronto para ler o livro! O primeiro passo está dado: comprei-o!

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Scrapbooking




Sabem o que é o «scrapbooking»? Não? Eu também não sabia, até à semana passada.

Numa palavra, o «scrapbooking» é a arte de conceber álbuns originais que realçam o valor das vossas (nossas) fotografias.



A minha amiga Nucha organizou este fim-de-semana, na Orfeu – Livraria Portuguesa uma «Journée Portes Ouvertes» sobre este tema. (Para não me culparem pelo atraso desta informação, digo-vos que, não obstante insistências repetidas, estas fotografias só me chegaram hoje de manhã.)

Podem, no entanto, obter mais informações e inscrever-se nos ateliers que serão organizados durante o Inverno, também na Orfeu e em horário pós-laboral, enviando uma mensagem electrónica para nucha@azza-pt.com ou visitar o site www.azzascrap.com.

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Orquestras europeias














Num artigo anterior neste blogue, disse que a Orquestra Filarmónica de Viena tinha sido recentemente considerada pelos críticos da especialidade como a melhor orquestra do mundo. Corrijo: tratava-se de escolher a melhor orquestra europeia e não mundial. Se é verdade que, na actualidade, nenhuma formação americana se pode comparar aos maiores conjuntos europeus, não o é menos que, do palmarés a que me referi, as primeiras estavam excluídas.

Participaram no voto as seguintes revistas ou rádios musicais:

- Crescendo – Bélgica (www.crescendo.magazine.be)
- Fono Fórum – Alemanha (www.fonoforum.de)
- Gramophone – Reino Unido (www.gramophone.co.uk)
- MDR-Figaro – Alemanha (www.mdr.de)
- Le Monde de la Musique – França
- Musica – Italia (www.rivistamusica.com)
- Pizzicato – Luxemburgo (www.pizzicato.lu)
- Rádio Classique – França (www.radioclassique.fr)
- Scherzo – Espanha (www.scherzo.es)
- La Tribune de Genève – Suiça (www.tdg.ch)

(Entre parênteses, saliente-se que apenas uma revista francesa (!) não tem site Internet)

O resultado da votação (cada revista atribuiu pontos, de 10 a 1, às dez orquestras escolhidas) foi o seguinte:

- Orquestra Filarmónica de Viena (86 pontos)
- Orquestra do Concertgebouw de Amesterdão (85)
- Orquestra Filarmónica de Berlim (79)
- Orquestra Sinfónica de Londres (55)
- Orquestra da Staatskapelle de Dresde (48)
- Orquestra Sinfónica da Rádio da Baviera (47)
- Orquestra do Gewandhaus de Leipzig (37)
- Orquestra Filarmónica de S. Petersburgo (31)
- Filarmónica Checa (12)
- Filarmónica de Londres (9)

Como se vê, unanimidade quase absoluta relativamente a um trio composto por Viena, Amesterdão e Berlim, cujos resultados as colocam, como dizem os franceses, «dans un mouchoir de poche».

As cinco principais orquestras americanas (tradicionalmente chamadas «The Big Five»: Orquestra Filarmónica de New York, Orquestras Sinfónicas de Boston e Chicago, Orquestras de Philadelphia e Cleveland) situar-se-iam, quando muito, na metade inferior desta tabela, depois de Londres, Dresden e Baviera. Não era assim nos anos cinquenta e sessenta quando grandes maestros europeus tomaram conta dessas formações americanas e lhes deram prestígio e renome (Fritz Reiner em Chicago, Georg Szell em Cleveland). Mas as coisas mudam, e nem sempre em favor dos americanos. O que nos dá algum ânimo.

quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Livros

No chão, em prateleiras, em cima dos móveis, em cada um dos cantos da sala, debaixo dos sofás, amontoados nas cadeiras escondidas por debaixo da mesa de jantar e arrumados à pressa quando há convidados, deixados nos degraus das escadas que vão para o primeiro andar, para o segundo andar, para o sótão... Falta-me uma estante na sala, faltam-me estantes no corredor do primeiro andar, faltam estantes no meu escritório - faltam-me estantes, sobram-me livros. Não me interessam primeiras edições, não gosto de livros de bolso e já pensei em encadernar alguns. Perguntam-me se li todos os livros que tenho: claro que não! Mas tenho-os ali, à mão de semear, para quando me apetecer pegar-lhes. Tenho os livros porque gosto deles e para os ler - um dia. Sem livros, não me reconheceria a mim próprio.

Booker Prize

Foram recentemente anunciados os seis livros que formam a shortlist do Man Booker Prize deste ano.

Estabelecido em 1969, o Man Booker Prize, ou simplesmente Booker Prize, que foi o seu primeiro nome, é o principal prémio literário para os romances publicados por autores originários da Commonwealth e República da Irlanda, não abrangendo apenas, entre os escritores de língua inglesa, os autores americanos. O palmarés do prémio lê-se como um «who's who» da literatura anglo-saxónica. Entre os vencedores, com efeito, encontramos desde logo quatro prémios Nobel: VS Naipaul (Prémio Nobel em 2001, Booker em 1971 com In a Free State); JM Coetze (PN em 2003), Nadine Gordimer (PN em 1991, laureada em 1974 com The Conservationist) e William Golding (PN em 1983 e vencedor do Booker com Rites of Passage em 1980). Coetze é, aliás, um dos apenas dois autores que ganhou o prémio por duas vezes, a primeira em 1983, com The Life and Times of Michael K e a segunda em 1999, com esse extraordinário livro que é Disgrace. O outro é Peter Carey: 1988 - Oscar and Lucinda e 2001 - The True History of the Kelly Gang.

Mas, em matéria de autores, a procissão ainda vai no adro. Temos ainda, por exemplo, John Banville (2005) e Alan Hollinghurst (2004), respectivamente, com The Sea e The Line of Beauty que cito por ter gostado de ambos, embora imensamente diferentes, e por terem sido recentemente traduzidos para português; Margaret Atwood (2000 - The Blind Assassin, que me encantou mesmo se o comprei, um pouco por acaso, no aeroporto de Londres), Ian MacEwan (1998 - Amsterdam, provavelmente não o seu melhor romance), Arundhati Roy (1997 – com o famoso The God of Small Things), AS Byatt (1990 - Possession, adaptado ao cinema, num filme que se esquece facilmente), Kingsley Amis, glória da literatura inglesa, pai de Martin Amis (1986 - The Old Devils, que não li nem tenho) e Anita Brookner (1984 - Hotel du Lac, que não li mas tenho). A título de curiosidade refiro o nome do primeiro premiado, que não conheço: PH Newby com Something to Answer for.

Salman Rushdie ganhou o prémio em 1983 com Midnight’s Children. Merece uma referência especial porque, numa votação realizada em 1993, por ocasião da entrega do 25º Booker, este romance foi considerado o melhor de todos os laureados: uma espécie de Booker dos Bookers. Aliás, desde então, e em minha opinião, apenas um livro poderá disputar-lhe essa honra: Disgrace.

Dois outros autores de que gosto particularmente foram também premiados, em anos curiosamente seguidos: Iris Murdoch, em 1978, com uma novela que fez sensação na altura e que é ainda hoje considerada como uma obra emblemática dos anos 70 (The Sea, the Sea, que faz parte dos meus projectos de leitura para este ano); e, um ano antes, Paul Scott com Staying On. Paul Scott é o autor dos quatro romances que compõem The Jewel in the Crown, espécie de grande ópera organizada à maneira de Wagner em torno dos últimos anos da presença britânica na Índia, que foi magnificamente adaptada para televisão há aproximadamente vinte anos, com a extraordinária Peggy Ashcroft como protagonista (Entre parênteses, digo-vos que Peggy Ashcroft ganhou o óscar para a melhor actriz secundária em 1984, pelo seu papel em A Passage to Índia, dirigido por David Lean e adaptado do romance homónimo de EM Forster – precisamente no ano em que o Óscar de melhor filme foi ganho por Amadeus, de Milos Forman. Um dia, contar-vos-ei uma história engraçada a respeito da minha reacção a estes dois filmes.)

Contrariamente ao Goncourt francês, o prestígio do Booker mantém-se intacto. Com efeito, os pequenos negócios entre editoras que contribuíram para destruir a imagem do Goncourt estão ausente do prémio atribuído além Mancha.

Este ano, a longlist foi anunciada a 14 de Agosto. Nela encontravam-se os seguintes livros:

Peter Carey - Theft: A Love Story
Kiran Desai - The Inheritance of Loss
Robert Edric - Gathering the Water
Nadine Gordimer - Get a Life
Kate Grenville - The Secret River
MJ Hyland - Carry Me Down
Howard Jacobson - Kalooki Nights
James Lasdun - Seven Lies
Mary Lawson - The Other Side of the Bridge
Jon McGregor - So Many Ways to Begin
Hisham Matar - In the Country of Men
Claire Messud - The Emperor’s Children
David Mitchell - Black Swan Green
Naeem Murr - The Perfect Man
Andrew O’Hagan - Be Near Me
James Robertson - The Testament of Gideon Mack
Edward St Aubyn - Mother’s Milk
Barry Unsworth - The Ruby in her Navel
Sarah Waters - The Night Watch

Excusez du peu: um Prémio Nobel, dois antigos vencedores, e um conjunto de autores que são do que melhor se faz pelas bandas da literatura de língua inglesa – e, dada a sua extraordinária vitalidade, isto praticamente equivale a dizer literatura do mundo.

Um comentário breve sobre esta longlist para assinalar o belo livro de Claire Messud, The Emperor’s Children, que acabei de ler domingo passado. Já tenho quase pronto um comentário que porei aqui no blogue (mas trata-se de um livro complexo, debaixo de uma aparência extrema e enganosamente simples e, por isso, a crítica demora mais tempo a estruturar.)

Mas já terão adivinhado que este romance não passou à fase seguinte. Com efeito, a shortlist foi anunciada a 14 de Setembro, é a seguinte:

Kiran Desai - The Inheritance of Loss
Kate Grenville - The Secret River
MJ Hyland - Carry Me Down
Hisham Matar - In the Country of Men
Edward St Aubyn - Mother’s Milk
Sarah Waters - The Night Watch

Algumas notas breves:

1) O grande favorito, David Mitchell, foi eliminado. Não é, do meu ponto de vista, grande perda. Li Cloud Atlas, que me deixou frio. Não me apeteceu pegar neste novo livro.

2) Ao ver o seu novo romance Theft: a Love Story eliminado este ano, Peter Carey perde a possibilidade de se tornar imediatamente no único autor a ganhar o prémio por três vezes.

3) Se têm seguido este blogue, já conhecem o meu entusiasmo pelo romance de Sarah Waters, que é, aliás, o favorito dos apostadores britânicos – gente que aposta por tudo e por nada. Mas reconheço que não li nenhum dos outros: trata-se, assim, no máximo, de uma ínvia preferência. E garanto-vos que lerei o premiado, seja ele qual for.

O vencedor será anunciado a 10 de Outubro. Marcamos encontro para essa altura, com as novidades?

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Bridge ontem




O Nuno e eu temos andado a jogar mais bem que mal e, por isso (e tendo em conta o nível fraquinho do nosso clube comunitário), mais uma garrafa para a minha cave. Como o rótulo se vê mal na fotografia, concretizo:

Château de Brousteras 2003
Médoc
(Medalha de prata do Concurso Mundial de Bruxelas - 2005)

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Dois concertos de Mozart por Maurizio Pollini

Qualquer disco de Maurizio Pollini é um acontecimento. Eu sei que alguns críticos dizem que Pollini só foi grande quando era novo mas não me conto entre essa gente. Não conheço quem modernamente toque Schumann de maneira igual (talvez Marta Argerich) e as sonatas de Beethoven que gravou nos últimos tempos parecem-me, em geral, superiores às dos outros pianistas modernos (com a possível excepção de Stephen Kovacevich no que respeita às sonatas nºs 21 «Waldstein» e 32 - a última de todas, considerada uma espécie de testamento espiritual de Beethoven.)

Nestes concertos para piano e orquestra de Mozart (nºs 17 e 21), Pollini dirige do piano a Filarmónica de Viena. Esta orquestra foi recentemente considerada, numa votação das revistas francesas e inglesas de música clássica, como a melhor do mundo, à frente do Concertgebouw de Amesterdão e da Filarmónica de Berlin (a formação dirigida por Karajan, se bem se lembram). A Filarmónica de Viena é um caso particular entre as orquestras actuais por ser uma das únicas (e a única entre as melhores) que não tem maestro titular.

Nesta gravação, o som dos músicos de Viena é magnífico, íntimo e preciso. E Pollini, ao piano, dá às obras de Mozart uma espécie de serenidade poética, discreta e tocante. No caso do concerto nº 21, esta opção é inatacável. No caso do concerto nº 17, podia pedir-se uma maior leveza, um sinal de maior alegria, uma ideia de que pianista e orquestra estivessem predispostos a brincar. Mas é uma crítica menor diante da arte de Maurizio Pollini, artista e cidadão.

O Perfume













Saiu há pouco tempo o filme de Tom Tykwer «O Perfume: História de um Assassino», baseado no romance de Patrick Süskind que teve enorme sucesso quando da sua publicação, em 1985. O papel principal, a personagem de Jean-Baptiste Grenouille, é desempenhado por Ben Whishaw (que aparece na fotografia), que é acompanhado, entre muitos outros, por Dustin Hoffman.


A figura ao lado representa, segundo a Google-imagens, Jean-Baptiste Grenouille: acredito sem ficar plenamente convencido. Quanto ao livro, li-o quando saiu e preparo-me para relê-lo agora. Lembro-me que fiquei deslumbrado pela capacidade evocativa de um autor que consegue trazer até nós o cheiro de Paris no século XVIII a ponto de quase nos fazer vomitar. O melhor exemplo vem logo na primeira página:

«Na época de que falamos, reinava nas cidades uma pestilência praticamente inimaginável para os homens modernos que somos. As ruas exalavam odores de estrume, os pátios cheiravam a urina, as escadas cheiravam a madeira húmida e a caganitas de rato, as cozinhas a couve podre e a gordura de carneiro; as salas mal arejadas cheiravam a bolor, mofo e a bafio, os quartos de dormir cheiravam a lençóis gordurosos e a cobertas ensopadas e eram invadidos pelo aroma ácido dos penicos não despejados. As chaminés cuspiam um fedor de enxofre, as cordoarias o fedor dos banhos corrosivos, os matadouros o fedor do sangue coagulado. Das pessoas soltava-se um cheiro nauseabundo, a suor e roupas sujas, as bocas cheiravam a dentes podres, os estômagos a sumo de cebolas e os corpos dos que já não eram jovens cheiravam a queijo decomposto e leite azedo e a tumores eruptivos. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, cheirava mal debaixo das pontes e nos palácios. Fedia o camponês tal como o padre, fedia o aprendiz como a mulher do seu mestre artesão, a nobreza fedia de alto a baixo, e mesmo o rei fedia como uma fera selvagem, e a rainha como uma cabra velha, no verão e no inverno.»

Com os nossos narizes sensíveis, como teríamos vivido nesse tempo? Como todos os outros, é claro: habituados. Mas, com o nosso conhecimento retrospectivo das coisas, ainda bem que fomos poupados a isso.