sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Outro poema - desta vez, Alexandre O'Neill






















Já que estamos em fase de poesia, aqui fica um dos mais bonitos poemas (eu diria, de amor, se não achasse que O'Neill se riria de mim) de Alexandre O'Neill, publicado em No Reino da Dinamarca


Um Adeus Português
In No Reino da Dinamarca, 1958

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Um pouco de poesia - Ruy Belo

E, depois desta diatribe contra os senhores da finança, o melhor é voltar à poesia. Embora, se bem lermos o poema que aqui deixo, não é difícil verificar que não estamos a falar de coisas muito diferentes.

Nunca aqui transcrevi um poema de Ruy Belo, a quem João Bénard da Costa, no Público (há coisas boas mesmo no Público de José Manuel Fernandes) dedicou um artigo que não era só comovente mas representava, como seria de esperar do seu autor, uma verdadeiro preito intelectual - que é, afinal, o que há de mais importante quando se fala de alguém que foi grande. Lembro-me, a propósito do meu sogro, na homenagem que lhe prestou a Ordem dos Advogados quando lhe concedeu a sua medalha de ouro (poucos advogados em Portugal ou fora dele a receberam, seis portugueses, dois brasileiros e um espanhol. Fui ver à Internet para não me enganar e encontrei os seguintes: Mário Soares (1989), Adelino da Palma Carlos (1991), Ângelo d'Almeida Ribeiro (1993), Francisco Salgado Zenha (1998), Reginaldo Óscar de Castro (brasileiro) e Luís Martíns Mingarro (espanhol) (2001), Rubens Approbato Machado (brasileiro) e Jorge Sampaio (2004), e Francisco de Sá-Carneiro, a título póstumo, em 2006) - lembro-me que, nessa sessão solene, o bastonário Júlio Castro Caldas (não tenho a certeza de que já tivesse tomado posse e que a bastonária não fosse ainda Maria de Jesus Serra Lopes, que também disse algumas palavras na altura), produziu uma notável peça oratória, que foi muito além do panegírico pessoal ou profissional. O que ele fez foi pegar no discurso pronunciado por Ângelo d'Almeida Ribeiro (era assim que ele escrevia o seu nome) quando inaugurou o Primeiro Congresso dos Advogados, nos últimos tempos do Marcelismo e, tomando-o como base, mostrar a consistência do pensamento dum homem que sempre considerou a advocacia como um magistério e dedicou a sua vida à defesa dos direitos humanos e da liberdade religiosa. Tratou-se, verdadeiramente, duma homenagem intelectual, duma demonstração do respeito que os advogados portugueses dedicavam a Almeida Ribeiro (a minha filha Teresa, que vai seguir advocacia, faria bem em inspirar-se no exemplo do avô).

Mas isto são considerações pessoais que me afastam de Ruy Belo. E, afinal, se comecei esta entrada no meu blogue, foi para transcrever o seguinte poema:

Morte ao meio-dia
In País Possível, Madrid, 1973

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopre e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se e mais nada
A boca é pra comer ou pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido a praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

O mundo do «faz de conta»

Chegámos, como num comboio atrasado, ao século do «faz de conta». Assim, na América dos nossos dias, faz de conta que somos capitalistas - mas, em boa verdade, não sejamos bem isso. Não concordam? Então vejamos:

O capitalismo não é o sistema económico que, premiando aqueles que correm riscos de forma razoável e economicamente sólida e punindo os que, particulares ou empresas, agem sem atenção a critérios de prudência, contribui para uma adequada regulação da actividade económica? A acreditar na administração Bush, as coisas não se passam de forma tão clara. A recente decisão do Presidente, apoiado pelo seu Secretário de Estado do Tesouro (um verdadeiro insider, Henry Paulson, ex-presidente da Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo, cujas acções sofreram, aliás, uma enorme queda no final do ano passado) e pelo Presidente da Reserva Federal, de assumir a responsabilidade do chamado crédito malparado («bad debts») dos bancos e instituições financeiras americanas, é a prova, se necessidade houvesse, de que há necessidade de corrigir os erros da iniciativa privada, da famosa mão invisível que, ao que parece, garantia a estabilidade dos mercados. E como? É fácil: lança-se despudoradamente sobre o contribuinte a factura de anos de má gestão ou, melhor dizendo, de gestão pura e simplesmente ignorante, porque ninguém, dos administradores dos bancos aos traders e dealers e mesmo, e sobretudo, às autoridades de supervisão, conhecia efectivamente os riscos dos chamados (para nos sossegar com esta ideia de que a novidade é a mãe de todas as virtudes: mudança, mudança, inovação, inovação!) novos instrumentos financeiros. Mais, todos elogiavam os seus méritos, afirmando que garantiam uma maior flexibilidade do sistema financeiro e permitiam alargar o horizonte da sua intervenção, e chegando ao ponto de sustentar, sem nenhuma prova e, como provaram os factos, fraudulentamente, que eram benéficos para a economia no seu conjunto (cujos «fundamentals» eram de betão)!

E bem podem vir agora dizer os liberais, como Rui Ramos, em recente artigo no Público, que a intervenção do Estado apenas agrava as coisas por promover o chamado moral hazard. Balelas! Toda a gente que trabalhava nas instituições hoje em perigo sabia que, se alguma das mais poderosas se encontrasse em perigo, o Estado interviria. O moral hazard, a protecção dos que agem de forma negligente ou culpada, faz parte do sistema! E quem dirige as instituições que nos põem em risco, sabe-o perfeitamente.

Porque a intervenção do Estado, para além das razões eleitorais que toda a gente conhece, tem uma justificação mais profunda que é a de evitar que aqueles a quem nunca foi permitida uma palavra sequer durante estes anos de gestão delirante venham a ser os mais prejudicados na selva criada pelos tecnocratas da finança, que se passeavam em Porsches, Ferraris e Maseratis, dispunham de aviões privados e se garantiam, na reforma, como Jardim Gonçalves, em Portugal, o direito de utilizar os aviões das empresas que, para mais, deviam pagar-lhes férias e actividades de lazer. Como é evidente, essa gente (com excepção de uns poucos que a justiça americana se encarregará de enviar para a prisão, se um procurador considerar que essa atitude é eleitoralmente benéfica, mas que os tribunais de quase todos os outros países do mundo deixarão impunes) agia dentro da legalidade - da legalidade que eles próprios criaram com o big bang financeiro da praça de Londres e a desregulamentação a trouxe-mouxe. Os verdadeiros responsáveis deste estado de coisas, que vai traduzir-se em anos de baixo crescimento, de aumento da inflação e do desemprego, vão safar-se sem grandes problemas. Estou já a ouvir a sua justificação: a necessidade de tomar difíceis decisões de gestão que, por falta de sorte, por um conjunto de circunstâncias desfavoráveis, não correram como era previsto! E o pior de tudo isto é que tais decisões, mesmo se tivéssemos talvez o direito de esperar que gestores pagos de forma escandalosamente rica não cometessem tantos erros, nem sequer se traduzem em reduções nos bónus que recebem. O Presidente da Lehman Brothers, que a levou à falência, foi-se embora, ou ainda nem foi, com o seu milhão e tal de euros de bónus! E, como ele, quase todos os outros.

Quem perdeu? Os empregados dessas empresas, os pensionistas cujos fundos de pensão se desvaneceram na estratosfera financeira, os compradores de casas com hipotecas desfavoráveis (como no chamado mercado do sub prime imobiliário): esses perdem a casa, a reforma, o salário.

Que não me venham dizer que tudo isto é a consequência do normal funcionamento da economia! Que se trata duma espécie de auto-correcção que nos levará a um futuro melhor . Se isto fosse verdade, seria tempo de mudar de economia! Não é preciso ser comunista (nunca o fui, ao contrário de muitos daqueles que hoje defendem o mercado a todo o custo) para clamar, para gritar de todos os telhados de todas as cidades de todos os países, que a situação que vivemos nada tem de normal! Tratou-se apenas duma forma de ganância organizada, acompanhada da penosa aceitação da situação de maior desigualdade social desde os tempos anteriores à 2ª Guerra Mundial, sem que ninguém, ou quase ninguém, se insurgisse contra ela, esmagados, os poucos que tentaram fazê-lo, sob o pretexto dum progresso económico, financeiro, tecnológico, científico, etc., que, afinal, não passava de mentira. O que é ainda mais difícil de compreender é que, sob essa pretensa originalidade da Terceira Via, os socialistas e sociais-democratas europeus e os liberais americanos, que deviam ter aprendido a sua lição com Keynes, embarcaram neste engano despudorado, que começou com Reagan, continuou com Thatcher e, para vergonha de alguns de nós, culminou com Tony Blair.

O drama de tudo isto é que as classes mais desfavorecidas, que actualmente abrangem toda a gente que não faz parte, duma ou doutra forma, do compadrio que dirige os nossos países, esses que não têm amigos influentes, nem cunhas, nem beneficiam da protecção de alguém bem colocado, se encontram num beco sem saída e algum dia se cansarão de serem tratados de forma tão injusta. E, como nenhuma outra via se abre para que a sua voz seja ouvida, terão tendência a recorrer aos extremos, de esquerda ou de direita, mas, nos tempos que correm, quase invariavelmente de direita. Este é o risco que corremos! Assim eu me engane. Mas não o creio!

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Ainda a Sonata «Waldstein» e, desta vez, Solomon

Há imensas e estupendas gravações da Sonata Waldstein. Entre as que me deixam relativamente frio, contam-se a de Brendel e mesmo a de Pollini (e eu criticar Pollini é verdadeiramente muito raro). Arrau é demasiado solene para meu gosto. Kovacevich sai-se bastante bem na sua recente integral das sonatas de Beethove mas é preciso recuar no tempo, a Schnabel ou, numa das melhores interpretações de sempre, a Serkin, para encontrarmos algo que se compare a Gilels. Richter, o outro grande pianista russo da sua geração, nunca gravou esta sonata que, aliás, não lhe assentaria bem. Mas, se quiserem esquecer o som mais ou menos desagradável, tentem escutar aquela que é, para mim, a melhor interpretação de todas: a de Solomon Cutner. Mas afinal, como qualquer pessoa menos atenta a estas coisas da música perguntará, quem é, quem foi, Solomon?

Solomon Cutner, que sempre usou apenas o seu primeiro nome, Solomon, nasceu em 1902 e morreu, aos 86 anos, em 1988. Fez parte do grande conjunto de pianistas ingleses, relativamente menos célebres do que russos e americanos, que incluía, entre outros, Myra Hess e Clifford Curzon. Mas é desconhecido do grande público (e mesmo do mais pequeno público que acompanha a música clássica) principalmente porque a sua carreira terminou muito antes da sua morte, mais precisamente, em 1956, quando sofreu uma trombose massiva. Tinham-se notado sinais prenunciadores desse acidente vascular cerebral quando, a partir de alguns meses antes, em concertos e sessões de gravação, alguns dos seus dedos deixaram de obedecer ao que o seu cérebro lhes exigia: notam-se perfeitamente, em alguns dos seus discos tardios, o que os ingleses chamam (mas apenas porque falam inglês!) finger slips. E sabe-se que ele, sem compreender exactamente o que lhe acontecia, pedia desculpa aos maestros ou aos seus acompanhantes por essas falhas inexplicáveis.

Quando sobreveio o desastre final, foi devastador. Uma parte do seu corpo ficou para sempre inteiramente paralisada. Nunca mais pôde tocar em público ou gravar, embora tenha continuado a ensinar e a escrever. Bem pode-se imaginar o drama pessoal de um homem que, se tivesse continuado a sua carreira, teria obtido certamente a reputação dum Richter, dum Horowitz (que estranhamente o considerava «chato», o que só mostra que nem sempre os génios, ou mesmo os homens de talento, são capazes de apreciar os seus congéneres) ou dum Serkin, para não falar de tantos outros, colado numa cadeira, impossibilitado de exprimir a sua arte senão através de conselhos dados a alunos escolhidos.

Existe agora uma compilação de uma boa parte da sua obra gravada (faltam, pelo menos, algumas sonatas de Beethoven) neste álbum que vêem aqui ao lado. Solomon era um especialista (embora eu tenha a certeza de que esta designação lhe desagradaria profundamente) de Beethoven. Melhor dizendo, era um beethoviano (perdoem o neologismo) de corpo e alma, compreendendo como poucos outros a música do compositor de Bona. Existem gravações estupendas dos concertos Nos. 3 e 5, mas onde ele se excedia era nas suas interpretações das suas sonatas para piano. Há uma espécie de consenso (embora os críticos franceses estejam geralmente em desacordo) em considerar a sua interpretação da Sonata No. 29, Op.106, a célebre Hammerklavier, como um marco quase impossível de ultrapassar. A sua Clair de Lune é também um exemplo de clareza e poesia. E, na minha opinião, a sua Waldstein é a melhor de todas (seguida de perto da de Gilels – ver artigo anterior neste blogue), se bem que, aqui e ali, uma nota lhe falhe (mas falha a quase todos, até a Gilels, quando toca em público).

Há muito tempo, comprei um DVD dedicado a Claudio Arrau (ver fotografia ao lado) em que aparecia, como simples bónus sem direito sequer a menção na capa, uma interpretação da Appassionata, Sonata No. 23, Op. 57, de Beethoven, precisamente por Solomon. Lembro-me de ter ficado absolutamente deslumbrado com a sua interpretação e também de que a minha Mãe, quando lha mostrei (e a Mãe tinha formação de piano, embora antiga e algo esquecida), ficou também maravilhada. Foi um DVD que vimos juntos muitas vezes, o que contribui sem dúvida para a minha predilecção por ele. Trata-se duma gravação dos anos cinquenta, a preto e branco, com a câmara centrada sobre as mãos do pianista e não, como é habitual actualmente, sobre a sua face, dando-nos o desagradável prazer de poder ver todo o suor que lhes cai da testa e alguns dispensáveis esgares. Mas, para além da técnica espectacular de Solomon, o que nos encanta, o que nos deslumbra, é o som bendito que ele consegue tirar do seu piano.

Solomon, um enorme artista, colhido cedo pela foice da vida. Um desperdício, um desconsolo. A quantidade de obras que nunca ouviremos, que nunca veremos, por um homem que, até ao fim da sua vida, se sabia capaz de no-las oferecer, não tivesse sido esse horrível desastre que lhe destruiu a arte. Por isso, há algo de muito comovente nesta vida, algo que nos permite perguntarmo-nos - mas é apenas uma questão retórica, porque as fontes que consultei nada indicam nesse sentido - se não teria sido preferível, para ele, morrer no momento em que deixou de poder tocar.

Boxers à mostra

Pode-se discutir se esta moda de deixar os boxers à mostra é agradável ou desagradável, bonita ou feia. Agora, o ponto a que chegou o Estado da Florida é que não é admissível sob qualquer ponto de vista que seja.

Imagine-se que. com base numa lei votada no Congresso desse estado americano, um rapaz de dezassete anos, Julius Hart, foi preso e passou uma noite na cadeia por expor 10 centímetros dos seus boxers. Por essa ordem de ideias, o meu filho Diogo já teria ido parar à prisão algumas vezes!

Felizmente que, tempos depois (mas só tempos depois), imperou o bom senso, com um juiz a declarar ilegal essa prisão por se basear numa lei que considerou inconstitucional. O advogado de defesa ter-se-á insurgido contra esta espécie de criação duma polícia da moda e o juiz seguiu a sua argumentação, embora (não se sabe porquê!) se tivesse sentido obrigar a esclarecer que não se tratava de alguém que estivesse a expor as suas «nádegas» mas apenas dum jovem cujas «cuecas» feriram o olhar de um polícia que se sentiu assim autorizado a prendê-lo.

O que nos deixa mais desconsolados em tudo isto - vindo da América - é que, segundo a CNN, movimentos para proibir o que eles chamam baggy ou saggy jeans parecem estar a ganhar popularidade em várias partes do país. Assim, Dallas, no Texas e Atlanta, na Geórgia, fazem parte de um grupo de grandes cidades americanas que consideram essa eventualidade.

Como é possível? Ao que chegamos? Ou, mais exactamente, onde quer essa gente voltar? A qualidade dum jovem não se mede certamente pela altura a que põe o cinto nas calças... Mas, segundo os novos conservadores americanos (aliás, bastante cordatos na forma como trataram a gravidez da filha da candidata republicana à vice-presidência: assim o fossem com todas as mães solteiras, nomeadamente as negras!), parece que esta moda é indecente. Não se apercebem, porém, que, dentro de algum tempo, ninguém lhes ligará. Já agiram assim, em tempos idos, a propósito do biquini e da mini-saia. E lembro-me duma amiga da minha mãe, minha madrinha, que, vinda de Paris, se atreveu a usar um biquini na Foz do Arelho, só para se ver chamada à ordem pelo «cabo do mar», que a intimou a cobrir-se. Mas estávamos, ainda, no tempo de Salazar!

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Emil Gilels e a Sonata «Waldstein» de Beethoven

Comprei hoje este DVD dum concerto de Emil Gilels, de 1971. Gilels era um dos magníficos pianistas da escola russa, aliás habituados a tocar em circunstâncias quase impossíveis (pianos desafinados, público barulhento) até chegarem às salas assépticas dos grandes teatros ocidentais (Contou-me o Tito Celestino da Costa que Elisa Wirssaladze, quando foi a Portugal pela primeira vez, lhe pediu para se treinar antes do concerto. Ele ficou aflito porque, à última da hora, não pensava conseguir encontrar um piano de qualidade suficiente. Mas Wirssaladze logo lhe explicou que um qualquer, mesmo piano velho e desafinado, lhe serviria: era aquilo a que estava habituada quando se exibia fora de Moscovo!).

Na primeira vez que se tocou fora da cortina de ferro (num concerto nos Estados Unidos, se a memória não me falha), e perante o aplauso entusiástico, Gilels disse aos espectadores que teriam que esperar por Richter para saber como se tocava verdadeiramente piano na Rússia (Richter, filho de pai alemão, considerado traidor à Pátria, só mais tarde foi autorizado a sair da União Soviética, para concertos no estrangeiro).

Modéstia muito exagerada, de um homem que, segundo sei, até era relativamente arrogante... Morreu cedo demais, em 1985, com apenas 69 anos. Ao que me contou uma pessoa conhecida, tratou-se dum engano médico ou de enfermagem: num hospital de Moscovo em que tinha sido internado para uma intervenção sem gravidade, esqueceram-se (!) de que era diabético. Uma das grandes «não-gravações» da música de Beethoven será sempre a sua «não-interpretação» da sua última sonata para piano, a Sonata No.32, Op.111. Preparava-se para a gravar quando a morte interveio. Entretanto, gravou quase todas as restantes. (Que eu saiba, na quase integral da Deutsche Gramophon, faltam apenas as Nos. 1, 9 e 32). E gravou também as «Variações Eroica», na melhor interpretação de sempre, na minha modesta opinião pessoal.

De qualquer maneira, neste DVD, vemo-lo em peças de Mozart e de Beethoven e ainda de Schumann e de Mendelssohn (estas duas últimas, como «encore»). Gostaria de salientar a sua interpretação da Sonata No.21, Op. 53 “Waldstein”, de Beethoven. Li, há muito tempo e em qualquer lado, que esta sonata tinha constituído o toque de finados das interpretações amadoras: a partir daí, só os pianistas profissionais podiam ultrapassar as dificuldades técnicas das obras escritas para piano. Não sei se a frase é verdadeira (quase tremo ao pensar o que seria uma interpretação «amadora» das sonatas anteriores de Beethoven: por exemplo, a Pathétique ou a Clair de Lune). Mas é verdade, quando se vê – e muito mais do que quando apenas se ouve – Gilels a interpretar a Waldstein, se percebe a intenção de quem disse, ou não disse, aquelas palavras. Porque nada daquilo pode ser feito por quem não se dedique ao piano de corpo e alma, por quem não treine cinco, seis, sete horas por dia. Ou seja, por grandes, grandes pianistas.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Carta d'Orfeo - Actvidades da Livraria Portuguesa de Bruxelas

Da saudar o trabalho do Joaquim Pinto da Silva, que apresenta, para a sua livraria, um notável conjunto de actividades daqui até ao fim do ano.

Assim, aqui fica o texto da da Carta d'Orfeu 34a, de 4 de Setembro:













Informações

António Carmo - Inauguração, a 5 de Setembro, sexta-feira, pelas 18 horas, da sua exposição 40 anos de Pintura, na Galeria Albert I, 45, rue de la Madeleine, 1000 Bruxelles (http://www.artsite.be/albert1).

José Morais – 19 e 20 de Setembro - Conferência Psychology: Scenes of tomorrow, em honra deste professor da Universidade Livre de Bruxelas (http://www.ulb.ac.be/carnets-ulb/30jours.html) e http://edsmed.umh.ac.be/Neuro/web/DocEtImages/ColloqueJM.pdf) aquando da sua aposentação (informações: vborguet@ulb.ac.be).


Actividades

12 de Setembro, sexta-feira, às 18,30 horas – António Carmo que expõe até 26 de Setembro na Galeria Albert I, vem até nós para conversar sobre o seu percurso de 40 anos. Serão projectadas imagens da sua obra e fixaremos, se nos acordar, uma visita guiada por ele à galeria.

4 de Outubro, sábado, às 18 horasHumberto Delgado, o General Sem Medo. A biografia de Humberto Delgado, pelo seu neto, Frederico Delgado Rosa, será apresentada pelo autor. O povo português está a viver uma mentira fabricada deliberadamente pelos juízes de Santa Clara, diz-nos o autor.

7 de Outubro, terça-feira, às 19,30 horas – Por ocasião da sua participação nos Open Days da Comissão Europeia, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo organiza uma recepção (a seu convite) na Orfeu (cedência graciosa). Alguns Amigos d’Orfeu poderão ser convidados caso se manifestem.

8 de Outubro, quarta-feira, às 18,30 horas – 50 contos para crianças escritos por políticos, jogadores de futebol e outras figuras públicas. A nossa apoiante BluStamp tomou a iniciativa, a editora é a Girassol com o apoio dos Rotários de Lisboa. O produto da venda destina-se a beneficência.

18 de Outubro, sábado, às 18 horas - Les Marques du Feu et Autres Nouvelles de Bahia nous sera presentée par Dominique Stoenesco, o tradutor. O seu autor, Aleilton Fonseca (http://www.jornaldepoesia.jor.br/alei.html), aproveita a sua presença para nos falar de João Guimarães Rosa.

25 de Outubro, sábado, às 14,30 horas – Encontro com os escritores de língua portuguesa participantes nas jornadas literárias (de 23 a 25.10) organizadas pelo Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões (integrado no Instituto Superior de Tradutores e Intérpretes de Antuérpia). Programa a pedir a: jcnobredasilveira@instituto-camoes.pt.

13 de Novembro, quinta-feira, às 18 horas – No Hôtel de Ville de Bruxelas, Mário Cláudio falar-nos-á de literatura portuguesa contemporânea. José Carlos Nobre da Silveira, leitor de português em Antuérpia, fará a apresentação do escritor.

15 de Novembro, sábado, às 18 horas – Na Orfeu, conversa informal e sessão de autógrafos com Mário Cláudio.

29 de Novembro, sábado, às 18 horas – Apresentação do livro Viagens na Minha Infância – Lembranças Romanescas de Joaquim Tenreira Martins. O autor, funcionário da Embaixada de Portugal na Bélgica, viaja pela sua memória trazendo-nos de volta um mundo que muitos desconheceram e outros sabem perdido.

7 de Dezembro, sábado, às 18 horas – Apresentação do Atlas Histórico da Galiza (http://www.youtube.com/watch?v=BydgNhJWYIk), um documento de estudo e análise fundamental para galegos e portugueses, realizado por J.M. Barbosa e J.M. Ribeira e editado pela Polifona Edicions.


Actividades em data ainda a fixar (a anunciar na próxima Carta d’Orfeu 34b)

Projecção do filme A Grande Aventura, um documentário sobre a pesca do bacalhau e a memória dos portugueses na Terra Nova. Realização de Francisco Manso e guião de Álvaro Garrido. Uma co-produção Francisco Manso e RTP2 com a duração de 52m.

Edite Estrela faz uma nova leitura de E O Chão Aqui Tao Perto, de Rui Cunha. Este livro é «um documento humano e literário incomum. Este livro fala da vida e da morte, do espanto e da ruína, da fragilidade do homem e da força impetuosa que reside no esconderijo mais secreto desse homem» (Baptista Bastos).

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ainda as «Variações Goldberg» - Um poema de Jorge de Sena

Jorge de Sena tinha uma educação musical apuradíssima que lhe permitia uma prodigiosa compreensão da música e lhe dava um olhar particular das maiores obras do património musical da humanidade. No seu livro Arte da Música, há um poema dedicado às Variações Goldberg. Ei-lo, com o aviso de que se trata dum poema que não é simples e que, como os restantes desse livro, não pouco terá contribuído para a fama de Sena como poeta intelectual, em oposição a poeta sensível – o que é, aliás, um enorme disparate. A imagem que escolhi é uma colagem efectuado por Virginia Naughton, com o título Goldberg Variations).




BACH: VARIAÇÕES GOLDBERG

A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto uma única vez.
Vejamo-lo, bem si, calados, vendo. E se a música
for música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,
nenhum silêncio recolhido nos persiste além
de alguns minutos. E não dura na memória com
silêncio. Ou se dura, esse silêncio cala
a própria música que adora. Porque a música
não é silêncio mas silêncio que
anuncia ou prenuncia o som e o ritmo.
Se os sons, porém, não são de devaneio,
e sim a inteligência que no abstracto busca
ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se tudo se organiza como a variada imagem
de uma ideia despojada de sentido;
se tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem necessários; se tudo repercute como
em cânones cada vez mais complexos que não desenvol-
vem um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;
se tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas em volutas brancas e douradas cujos
recantos de sombra são um trompe-l’œil
para que elas mais sejam em paredes curvas ;
se uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater nas teclas em cascatas de ordem;
e se tudo existiu na música para que tal triunfo
e dele descende tudo o que de arquitectura
possa existir em notas sem sentido – COMO
não proclamar que essa grandeza imensa
não se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que não haja segredo em nada que se faça
a não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior do que si mesmo. E que nada no mundo,
ainda que volte ao tema inicial, repete
o que foi proposto como tema para
se transformar no tempo que contém. Quando, no fim,
aquele tema torna não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos ante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção.
Nem a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não porque o tempo passe ou porque a cúpula se erga,
para sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque
o virtual de um pensamento, se tornou ali
uma evidência: se tornou concreto.
Um concreto de coisas exteriores – e o espanto é esse –
igual ao que de abstracto têm as interiores que o sejam.
Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem ouve, mas quem é? A ponto de
nós termos sido música somente.

(9 de Janeiro de 1966)

Uma nova interpretação das «Variações Goldberg» de Bach

Comprei recentemente o disco aqui ao lado: as «Variações Goldberg» de Bach, tocadas por Simone Dinnerstein, uma pianista relativamente desconhecida que, ao que parece, teve, que publicar a sua versão das Goldberg em edição de autor. O sucesso desta nova interpretação tem sido enorme. A Classica-Répertoire, revista em que costumo confiar, atribui-lhe a sua nota máxima (Referência: 10). As apreciações críticas no site britânico da Amazon são também extremamente favoráveis: dois 5 (a maior pontuação) e um 4 (e mesmo este é acompanhado de comentários muito lisonjeiros). E também parece que a Gramophone se lhe referiu em termos elogiosos.

Quem sou eu então para dizer que a escuta deste disco me deixou quase gelado? Não vejo nele nenhum entusiasmo, garra nenhuma: tudo me parece plat, ajuizado, certinho. Até a a interpretação de Murray Perahia, que me cansou, mas apenas depois de a ouvir mais de vinte vezes, me parece preferível, pese embora ter sido recebida com apreciável frieza por muitos críticos (os mesmos, certamente, que preferem Kovacevich a Pollini nas Sonatas de Beethoven. Por mim, com excepção da última sonata, Op.111, que Kovacevich gravou duas vezes em edições que me parecem quase impossíveis de igualar, considero Pollini superior na quase totalidade do ciclo, mas reconheço que esta é uma opinião minoritária.)

Assim, erro meu, certamente, nesta apreciação de Dinnerstein. Mas nem por isso deixei de recordar a história de Joyce Hatto, que constituiu a maior mistificação no mundo da música clássica em que assistimos à generalidade dos críticos musicais de todo o mundo a aplaudir e aceitar como originais interpretações já anteriormente gravadas por diferentes pianistas e, na altura, tinham sido recebidas com enormes reservas. (Estou a preparar um artigo sobre Joyce Hatto, que espero aqui colocar dentro dos próximos dias – mas isto não é uma promessa, apenas uma intenção.)



Quanto às Goldberg, continuarei a ouvir esta interpretação de Rosalyn Tureck, que descobri há pouco e que considero extraordinária embora o som deixe a desejar (há uma outra versão, gravada ao vivo, em 1993, que já encomendei mas ainda não ouvi.) Considero este disco um daqueles que gostaria de levar uma ilha deserta. Talvez não seja o mais puro, do ponto de vista dum musicólogo. Mas é uma beleza. Nele, a cumplicidade de anos sem conta entre a pianista e a música de Bach é posta em relevo, através de tempos próprios e duma notável mestria. Esta gravação data de 1958/59.




Ou então, virar-me-ei para as duas, controversas mas não menos magníficas, versões de Glenn Gould (1955 e 1981), facilmente disponíveis (e de que podem ouvir-se excertos no filme que foi dedicado ao pianista por Bruno Monsaingeon - «Glenn Gould: Au-delà du temps»). Já agora, aqui fica esta frase de Gould, que bem define a sua arte: «The purpose of art is not the release of a momentary ejection of adrenaline but rather the gradual, lifelong construction of a state of wonder and serenity." A State of Wonder foi, aliás, o título escolhido para, já depois da sua morte, reunir em disco as suas duas versões das Variações Goldberg. Mais do que apropriado, não somente pela intepretação mas sobretudo pela obra de Bach: genial!

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Sarah Palin

Como reagirá a maioria dos comentadores portugueses, tão contentes com as sondagens que davam empate entre Obama e McCain, a estas novas notícias, segundo as quais o candidato democrata passou a barra dos 50 % nas intenções de voto dos eleitores americanos, o que lhe dá uma clara vantagem sobre o seu adversário?

Esta mudança deve-se, segundo os institutos de sondagens, a um discurso de investidura bastante acima da média, em que Barack Obama foi muito preciso em relação ao programa que tenciona aplicar se for eleito Presidente, e à relativa desilusão do eleitorado independente face à escolha de Sarah Palin como candidata a vice-presidente de John McCain. Resta saber qual o efeito da convenção republicana, com os discursos, hoje, de Palin, e amanhã de McCain, nestas mesmas sondagens.

Por mim, não faço predições. Mas a ideia de que a escolha de Palin (anti-aborto, pró armas, mais conservadora do que o mais conservador dos apoiantes do Partido Republicano, e que até chegou a defender a independência do Alaska) pode levar os (as) apoiantes de Hillary Clinton, eventualmente descontentes com Obama, a votar no Partido Republicano parece-me um claro disparate. E, como tantos outros, permito-me duvidar da sua capacidade para assumir o cargo de vice-presidente e, dada a idade de McCain e o seu estado de saúde, para vir eventualmente a tornar-se Presidente dos Estados Unidos.

Dois comentários ainda, um sério, o outro vagamente snob.

O primeiro tem a ver com a clara precipitação de McCain quando teve que decidir perante uma escolha difícil e delicada. Optar por Palin simplesmente para tentar contrariar o efeito do discurso de Obama e tentar cativar os eleitores de Clinton não parece muito inteligente e não pressagia nada de bom para a forma como resolverá os muito mais graves problemas que enfrentaria como futuro Presidente dos Estados Unidos.

O segundo é que a candidata a vice-presidente é verdadeiramente muito possidónia. Dito duma forma mais suave: muito provinciana. Basta olhar para a fotografia.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Nelson Évora e os meus erros

Há duas razões para este post. A primeira é uma simples homenagem, atrasada por motivo de férias, ao homem que conseguiu a única medalha de ouro portuguesa dos Jogos Olímpicos deste ano (evito chamar-lhes de «Pequim» por causa do Tibete, no que é certamente uma atitude sem quaisquer consequências.) Nunca duvidei que o conseguisse. Não sei porquê mas Nelson Évora já de há muito tinha despertado a minha simpatia depois de ler umas entrevistas em que surgia como muito mais modesto do que os jornalistas que lhe colocavam as perguntas. Isso transmitiu-me uma enorme confiança nele e, no dia da eliminação de Naide Gomes, de que só soube porque estávamos a falar destas coisas no almoço de anos da Trezzu, do João genro (e do Mehdi, que já não estava lá), continuei a assegurar que Évora venceria a prova do triplo salto e nos traria a medalha sem a qual Portugal teria entrado numa situação de angústia da qual não se sabe como recuperaria e que constituiria um problema para a reeleição de Sócrates. (A prova é que o Presidente do Comité Olímpico Nacional mudou radicalmente de opinião porque, tendo antes anunciado a sua demissão em face dos maus resultados obtidos, veio logo dizer, em atitude que não o honra, que se encontrava disponível para continuar, se as federações, isto é, os outros, o povo, os «de baixo», uma «vaga de fundo», lho solicitassem.)

A segunda razão tem a ver com os meus enganos. Durante essas (e outras) conversas, insisti em que as distâncias a considerar, quer no salto em comprimento quer no triplo salto, eram medidas desde a chamada até ao lugar onde os pés do atleta tocavam o solo. Não é verdade. As regras do salto em comprimento aplicam-se no triplo salto e determinam que o final do salto é definido pelo lugar mais perto do seu início onde qualquer parte do corpo do atleta toca o chão. Assim, se um saltador deixar uma mão tocar a areia atrás dos pés ou do rabo, é esse ponto que é considerado. Na prática, a diferença não é enorme (mas deve existir quase sempre) porque os atletas, conhecendo a regra, tentam cair para a frente (fall forward, como diz a Enciclopédia Britânica, onde encontrei respostas para as minha dúvidas - a Wikipédia nem sequer mencionava este ponto, talvez por o considerar demasiado evidente, embora nos desse uma descrição pormenorizada das regras técnicas do triplo salto.) Aqui ficam, assim, as minhas desculpas pela errada insistência.