Ainda as «Variações Goldberg» - Um poema de Jorge de Sena
Jorge de Sena tinha uma educação musical apuradíssima que lhe permitia uma prodigiosa compreensão da música e lhe dava um olhar particular das maiores obras do património musical da humanidade. No seu livro Arte da Música, há um poema dedicado às Variações Goldberg. Ei-lo, com o aviso de que se trata dum poema que não é simples e que, como os restantes desse livro, não pouco terá contribuído para a fama de Sena como poeta intelectual, em oposição a poeta sensível – o que é, aliás, um enorme disparate. A imagem que escolhi é uma colagem efectuado por Virginia Naughton, com o título Goldberg Variations).
BACH: VARIAÇÕES GOLDBERG
A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto uma única vez.
Vejamo-lo, bem si, calados, vendo. E se a música
for música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,
nenhum silêncio recolhido nos persiste além
de alguns minutos. E não dura na memória com
silêncio. Ou se dura, esse silêncio cala
a própria música que adora. Porque a música
não é silêncio mas silêncio que
anuncia ou prenuncia o som e o ritmo.
Se os sons, porém, não são de devaneio,
e sim a inteligência que no abstracto busca
ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se tudo se organiza como a variada imagem
de uma ideia despojada de sentido;
se tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem necessários; se tudo repercute como
em cânones cada vez mais complexos que não desenvol-
vem um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;
se tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas em volutas brancas e douradas cujos
recantos de sombra são um trompe-l’œil
para que elas mais sejam em paredes curvas ;
se uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater nas teclas em cascatas de ordem;
e se tudo existiu na música para que tal triunfo
e dele descende tudo o que de arquitectura
possa existir em notas sem sentido – COMO
não proclamar que essa grandeza imensa
não se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que não haja segredo em nada que se faça
a não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior do que si mesmo. E que nada no mundo,
ainda que volte ao tema inicial, repete
o que foi proposto como tema para
se transformar no tempo que contém. Quando, no fim,
aquele tema torna não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos ante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção.
Nem a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não porque o tempo passe ou porque a cúpula se erga,
para sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque
o virtual de um pensamento, se tornou ali
uma evidência: se tornou concreto.
Um concreto de coisas exteriores – e o espanto é esse –
igual ao que de abstracto têm as interiores que o sejam.
Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem ouve, mas quem é? A ponto de
nós termos sido música somente.
(9 de Janeiro de 1966)
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