O Vaticano e a censura
Esta escultura é uma obra dum artista alemão, Martin Kippenberger, morto em 1997. Entitula-se Zuerst die Füsse, que o Guardian traduz como Feet first (aliás, um título que me parece vagamente absurdo). O autor considerava-a um auto-retrato que podia ilustrar a angústia ou ansiedade humanas. A obra devia ser mostrada em Bolzano mas o Presidente do respectivo Governo Regional considerou-a uma blasfémia e «a disgusting piece of trash that upsets many people». Por isso, e para convencer o Conselho Regional a impedir a exposição da escultura, entrou em greve da fome. Devo dizer que não a acho bonita nem sequer particularmente inspirada. Mas não me passaria pela cabeça proibir a sua exibição.
Ao que parece, o Papa também considera a peça insultuosa e o Vaticano chegou a publicar um comunicado declarando que ela fere «os sentimentos religiosos da muita gente que vê na cruz o símbolo do amor de Deus». O Papa apoia o pobre Presidente regional - promete-lhe certamente o céu em troca de alguns quilinhos.
Agora, pergunto eu, onde andam aqueles que criticaram acerbamente as reacções do mundo muçulmano às caricaturas dinamarquesas de Maomé? Dois pesos, duas medidas, esta convicção de que a (nossa mas não minha) velha religião católica é superior às restantes e que, por isso, pode condenar quando as outras não. Como compatibilizar, aliás, esta declaração pontifical com as célebres palavras de Bento XVI, segundo a qual existiria, no Catolicismo, uma complementaridade entre a fé e a razão que a diferenciaria das restantes religiões?
Sinto-me particularmente à vontade porque, secular, laico, ateu que sou, critico os excessos de todos os fundamentalistas, católicos e muçulmanos, mas ainda porque sempre me chocou esta pretensão à superioridade intelectual e de valores da religião católica em face da religião muçulmana. Gostaria assim de ouvir as opiniões de alguns dos nossos comentadores attitrés (Pulido Valente, Filomena Mónica, a pobre da Helena Matos, e até, para desgraça do pensamento português, António Barreto), sempre prontos a glosar o tema da guerra das civilizações e a elogiar uma pretensa superioridade da nossa cultura católica e ocidental, a referirem-se a este assunto. Aposto, contudo, que, nos jornais portugueses, ele vai cair num pacato esquecimento.
É que o que de bom veio ao mundo dessa civilização ocidental – os conceitos de liberdade individual, de autonomia pessoal e o direito a uma parte de nós independente de poderes externos, políticos ou religiosos – foi sempre conseguido contra a Igreja Católica Apostólica Romana, e não por ela. Esta é uma realidade que hoje alguns pretendem esquecer – mas ao arrepio da verdade histórica. Esta nova proibição, orquestrada pelo Vaticano, assumida por um débil mental, apenas nos recorda o que foi a política constante dessa Igreja nos séculos XVIII e XIX – que infelizmente prosseguiu, embora de forma mais disfarçada, no século XX e se prepara, ao que tudo indica, em nome de pretensos eternos valores, a continuar no século XXI. E depois admiram-se que não haja vocações!
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