terça-feira, 5 de agosto de 2008

Soljenitsine

É, para mim, muito difícil escrever sobre Soljenitsine. Tantas memórias, tantas recordações! Ainda guardo a primeira edição portuguesa do Arquipélago de Gulag (GULAG é um acrónimo representando o departamento encarregado da administração dos campos soviéticos e deriva de Glavnoye Upravleniye Ispravitel'no-Trudovykh Lagerey i koloniy), de 1975, com a sua capa entre azulada e cinzenta com um círculo amarelo a meio. As páginas já estão escuras, nessa cor de amarelo-torrado que tem o papel de má qualidade dos livros velhos…

Nunca fui comunista. Nem marxista-leninista, trotskista, maoista, ou coisa parecida. Nem aos dezassete, nem aos dezoito, nem aos vinte, nem depois, nem agora. E não concordo com a frase infeliz dum homem que muito admiro (Willy Brandt) segundo a qual para se ser bom social-democrata aos quarenta anos seria necessário ser comunista aos vinte. Na altura em que quase todos os da minha idade andavam à procura, ou duma estranha forma de socialismo sem preocupações de liberdade, mera revolta infantil de adolescentes bem nascidos contra os pais endinheirados; ou de recuperar a calma e os tons cinzentos do salazarismo perdido ou, como aqui ao lado, na Espanha dos nossos sonhos e pesadelos, do franquismo que já se adivinhava também agonizante – eu limitava-me a ser, mas ferozmente, social-democrata. Nessa altura, situavam-me à direita… Sem ter mudado muito as minhas ideias, hoje dizem-me que sou de esquerda – e é verdade que sou, pelo menos, muito mais de esquerda do que quase todos aqueles que, em 1975, me chamavam fascista ou social-fascista.

Nesse ano, a leitura do Arquipélago de Gulag veio confirmar o que eu adivinhava e que outra gente, mais velha, mais informada, já sabia: que o estalinismo era o arremedo de um ideal extraviado e Estaline um criminoso que escapara à justiça porque, no mundo irreal dos estados totalitários, como Orwell (e, já antes, Viktor Klemperer, a propósito da Alemanha nazi) nunca se cansou de afirmar, os carrascos eram os juízes e o que era crime e castigo, direito e recompensa, era decidido pelos próprios criminosos. A linguagem e os conceitos e mecanismos do pensamento não tinham existência autónoma: eram meros instrumentos ao serviço da política e da propaganda. Ninguém tinha direito a uma vida íntima: nada havia nada que se pudesse qualificar como esfera privada; a delação era encorajada, a desconfiança constante. O medo insinuava-se nos espíritos… Por um nada, uma anedota suspeita, um sorriso no mau momento, um aplauso (ou a falta de aplauso) fora de ordem, era a casa ou o quarto que se perdia, o direito de viver numa cidade, a liberdade, a vida...

Tudo isto era conhecido. Hannah Arendt já tinha publicado os seus três livros sobre o sistema totalitário, Boris Souvarine acabara, antes mesmo da guerra, em 1935, uma biografia de Estaline de onde já constava tudo o que era importante. Aconteceu, aliás, o mesmo com Hitler e um dos seus primeiros biógrafos, Konrad Heiden, cujo livro foi publicado em 1936-37. Para além duma melhor informação sobre factos – desenterrados de arquivos a que Souvarine e Heiden não podiam ter acesso – pode dizer-se que as biografias posteriores pouco acrescentaram em relação aos aspectos da personalidade de Staline e Hitler que eles não tivessem compreendido e explicado: a sua análise já dizia quase tudo. Como Arendt sempre defendeu, os traços essenciais dos regimes totalitários foram sempre conhecidos: no caso do nazismo (menos, no caso do estalinismo) foram mesmo propalados aos quatro ventos.

Qual foi, então, a importância de Soljenitsine? Pelo menos no que toca ao Arquipélago de Goulag, é, por um lado, o seu carácter de testemunho directo e de denúncia, e, por outro, a sua extraordinária força e convicção morais, que o tornam uma obra única. É que, para Soljenitsine, o regime comunista era uma manifestação do mal (mas não do mal de Reagan e Bush, mero artifício de propaganda!). Não é preciso ser-se religioso nem ter do mal a concepção sagrada que animava Soljenitsine para aceitar a sua conclusão: pode mesmo dizer-se que basta sermos humanos! Havia, no sistema soviético, um espezinhar da condição humana (que outros autores, de forma muito diferente, nunca deixaram de denunciar: estou a pensar, particularmente, em Mikhaïl Boulgakov e no seu fabuloso O Mestre e Margarida) que ainda hoje nos deixa estonteados.

Num livro extraordinário, O Mal no Pensamento Moderno, Susan Neimann explica que Auschwitz definiu um novo paradigma do mal porque tornou impossível a própria esperança. Isto, em parte, porque o mal deixou de depender da intenção humana – numa referência à ideia da banalidade do mal que Arendt referiu na sua cobertura do julgamento de Eichmann; mas sobretudo porque, a partir da experiência dos campos nazis, deixou de ser imaginável um mundo em que o mal possa fazer parte, de qualquer forma que seja, da ordem das coisas. No sentido religioso tradicional, a teodiceia permite ao crente manter a sua fé em Deus apesar da existência do mal. Se o mal é infligido ou permitido por Deus, então é um elemento do plano divino. Segundo Neimann, esta forma de pensar tornou-se impossível a partir do século XVIII e, em particular, depois de os espíritos se terem apercebido das reais consequências filosóficas do terramoto de Lisboa. Em suma, se Deus permitia estas coisas (e outras parecidas ou mais graves), então era Deus que necessitava de remendo. Num sentido moderno, a teodiceia é qualquer forma de dar sentido ao mal que nos ajude a não desesperar da nossa condição de humanos. Idealmente, a teodiceia moderna deve reconciliar-nos com o mal passado e dar-nos a possibilidade de o prevenir. Auschwitz terá mostrado que até este sóbrio conforto, esta leve consolação, não passava duma mentira. A forma do mal que os campos representaram põe ao homem moderno interrogações e dúvidas a que a sua consciência não pode nem sabe responder.

Deste ponto de vista, como qualificar um sistema que se baseia na ausência de qualquer responsabilidade individual, mesmo presumida, nos homens e mulheres enviados para os campos de morte ou de trabalho? Esta era a questão de Soljenitsine e ele nunca vacilou na resposta.

A impressão que me ficou da leitura do Arquipélago de Gulag foi a de uma obra imensa e, por isso, necessariamente excessiva: a de uma denúncia que não conhecia limites. Como disse alguém, o livro descrevia simplesmente uma fábrica – a fábrica! – de produzir o inumano. A referência ao arquipélago transportava-nos para a Grécia, berço da civilização. Com o novo arquipélago, era também uma civilização que começava, mas caracterizada por ser a negação de tudo aquilo em que, a partir dos gregos, tínhamos começado a acreditar: uma civilização caracterizada pela inexistência de valores, ou seja, de certa forma, uma civilização que era a negação da própria ideia de civilização, porque nela tudo era moldável à vontade do tirano. Na altura da publicação do livro, houve muita gente que, sem negar o que Soljenitsine afirmava, considerou no entanto que a crítica do regime soviético tinha como efeito encorajar os Estados Unidos e o imperialismo. (Os intelectuais franceses de esquerda, com Sartre à frente, foram particularmente inventivos a este propósito.) Soljenitsine não tinha paciência para estes partidários dum estranho realismo que era a exacta imagem no espelho do realismo americano, o de Kisinger e apaniguados... Para ele, no combate à tirania, não havia lugar nem tempo para hesitações tácticas: apenas luta, batalha, oposição feroz… Para ele, contra o Diabo, Deus. Para nós, que não queremos o conforto ilusório da religião, contra o totalitarismo, a defesa da liberdade. Mas ambos sacrificando a própria vida, se necessário.

Em face disso, os seus defeitos, a sua concepção da «Rússia eterna», o seu tradicionalismo político e económico, a sua intransigência religiosa, o seu reaccionarismo, o seu nacionalismo impenitente, a sua incapacidade de aceitar a modernidade, se não me deixam indiferente, pesam, para mim, menos do eu próprio esperaria. Soljenitsine não foi uma personalidade incontroversa. Não se trata dum Nelson Mandela, que todos concordamos em dar como exemplo, nem teve a grandeza deste, uma grandeza que vem sobretudo da capacidade de perdoar. Mas a sua revolta e a sua denúncia da tirania e da opressão trouxeram ao seu país e ao mundo uma dimensão trágica e uma dignidade quase altaneira («Eu sou a Rússia») que, na altura em que surgiram, representaram o que de melhor há na ideia de ser homem.