Nicolau II - A pretensa oportunidade perdida
No dia 17 de Julho, passaram noventa anos sobre o assassínio, ordenado pelos bolcheviques com o acordo do próprio Lenine, de Nicolau II, último czar de todas as Rússias, e de toda a sua família. Não faltaram nessa altura muitos a pretenderem que, se a revolução de Outubro não tivesse ocorrido, o regime czarista teria evoluído para uma democracia moderna e a Rússia teria sido poupada aos setenta anos do regime comunista. Em França, a principal defensora desta ideia é Hélène Carrère d’Encausse, de ascendência russa (entre os seus antepassados contam-se grandes servidores da autocracia russa e também, pelo menos, três regicidas), secretária perpétua da Academia Francesa e historiadora de renome. Em 1978, Carrère d’Encausse anunciou, com alguma presciência, o fim da União Soviética, embora, na sua opinião, em resultado da sua incapacidade em resistir à pressão demográfica das repúblicas muçulmanas da Ásia Central (que faziam parte do país artificial criado pela Revolução de 1917 e, principalmente, em 1921, pela afirmação do poder central russo após a Guerra Civil que culminou na vitória das forças bolchevistas), e não como consequência duma qualquer influência dos Estados Unidos liderados por Reagan. Carrère d’Encausse foi ainda autora de várias biografias de figuras históricas russas (como o próprio Nicolau II e Lenine), a última das quais, consagrada à vida de Alexandre II, o chamado czar liberal, avô de Nicolau II, foi há pouco tempo publicada em França.
Em oposição a Carrère d’Encausse e aos que pensam como ela, convém repor a verdade histórica e afirmar que o regime czarista, sobretudo sob Nicolau II, não tinha nenhuma possibilidade de evoluir para qualquer forma de democracia nem de se modernizar no plano económico ou social, pelo menos se considerarmos esta modernização na perspectiva liberal e ocidental. Basta atentar nas palavras de um dos maiores historiadores da Revolução Russa, Orland Figes, que nem sequer é suspeito de particulares simpatias para com o regime comunista: a prová-lo está o título da sua obra principal, magnífica, essencial e que, o que não é de menosprezar, se lê como um romance, sobre este período histórico: «A People’s Tragedy». Considerando aquilo que chama o «desmoronamento» da dinastia, Figes afirma que o regime dos Romanov caiu sob o peso das suas contradições internas. Os espíritos mais atentos da época não desconheciam a necessidade de profundas reformas, no plano político, económico e social. Só que aí residia a principal, e inultrapassável, dificuldade. Os dois últimos czares e as suas camarilhas reaccionárias eram avessos a toda e qualquer reforma. Para eles, a autocracia era a forma de regime natural, o poder do autocrata vinha directamente de Deus e, se bem que compreendessem, em teoria, a necessidade de uma economia industrial moderna que lhes permitisse rivalizar com as outras potências europeias e mundiais, recusavam-se, na pratica, a dar os passos necessários para permitir o desenvolvimento das forças produtivas nacionais. As reformas eram impossíveis pela razão simples que os czares as recusavam. Por isso, a mudança de regime, que era indispensável mesmo do ponto de vista da manutenção do poder externo do Estado, exigia a revolução (embora, como é evidente, não necessariamente uma revolução bolchevista).
A humilhante derrota contra o Japão e a revolução de 1905 que se lhe seguiu constituíram o golpe final nas pretensões duma dinastia que considerava que o povo, o verdadeiro povo russo, o bom povo russo, olhava para ao czar como se este fosse um pai misericordioso – e o anúncio antecipado do fim do regime. A ordem de disparar sobre a população que se tinha juntado em frente do Palácio de Inverno para pedir pão e alimento (a fotografia que aqui coloquei retrata esses acontecimentos) constituiu, pelo seu significado mais ainda do que pela sua dureza (até porque o número de vítimas foi relativamente baixo), um momento simbólico fundamental, porque quebrou irremediavelmente a própria pretensão da existência dum laço privilegiado entre o czar e o povo. Em 1917, numa coda longínqua desses acontecimentos, as tropas recusaram-se a disparar sobre a multidão e o czar abdicou.
Para o imperador e os seus homens de mão, como também, mais tarde, para os comunistas, esse bom povo não passava duma abstracção. Nunca passaria pela cabeça do czar interessar-se verdadeiramente pelos seus sofrimentos, pelas dificuldades da sua existência quotidiana, e a ideia de apertar a mão dum mujique ou de entrar em sua casa despertar-lhe-ia uma indizível repugnância se, por acaso, alguma vez a considerasse. (E nem sequer os camponeses russos, ao contrário do que pretendia uma idealização em que colaboraram forças de direita e de esquerda, eram esse conjunto de homens e mulheres puros e altruístas que levou a geração de 1860 e 1870 do movimento Narodnichestvo – ou
Narodismo – a participar
na célebre campanha do «ir para o povo». Quando Tchekov publicou a sua novela O Mujique, que dava uma imagem realista da vida nas aldeias russas e estilhaçava o mito do bom selvagem caro a Rousseau, Alexandre Herzen e a maioria dos intelectuais russos, o escândalo foi considerável!)
O certo é que, depois de 1905, a dinastia estava condenada. Essa era, aliás, a opinião da maioria dos homens políticos europeus, mesmo nos países de que a Rússia era aliada. A notícia da abdicação de Nicolau II, em Fevereiro de 1917, foi recebida com alívio universal. Todos sabiam que o regime tinha caído de podre e, para os observadores contemporâneos, a Rússia podia finalmente modernizar-se e juntar-se ao concerto das nações desenvolvidas. Tudo isto era uma ilusão mas, na altura, quase ninguém se apercebeu de que o mal era muito mais profundo do que se sabia e de que as forças liberais não tinham qualquer apoio popular, em grande parte por culpa dum regime impedira o seu desenvolvimento e afirmação. Assim, a liberdade, a democracia, o progresso e a modernização não estavam realmente na ordem do dia embora quase todos pensassem que sim. Foi só mais tarde que esta opinião generalizada começou a matizar-se e, mesmo assim, apenas como forma de negar a legitimidade do regime comunista.
A morte do czar era evitável? Talvez! Digamos que da mesma forma que o era (ou não era) a morte de Luís XVI ou a de Alexandre Ilitch Ulianov, irmão de Lenine, condenado à morte por ter participado na preparação duma tentativa de assassinato de Alexandre III... Mas, mesmo que o nosso juízo sobre a sua morte seja, por razões morais ou outras, negativo, isso não significa que Nicolau II mereça um qualquer lugar particular na história do seu país ou da humanidade e, muito menos, que possa ser considerado o símbolo duma oportunidade perdida.
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