sábado, 19 de julho de 2008

Robert Murat, notícias e indemnizações

No âmbito dum processo num tribunal inglês, Robert Murat conseguiu uma importante indemnização dos principais tablóides britânicos (mais de 700 mil euros) para compensar os prejuízos que sofreu em virtude das notícias que o acusavam, de forma manifestamente infundada, de um possível envolvimento no rapto de Madeleine McCann.

Em minha opinião, isto deveria equivaler a uma «non-new» e nem sequer teria aqui mencionado esta informação se não fosse o facto de ter lido, há poucos dias, um editorial de José Manuel Fernandes, no Público, louvando a liberdade de imprensa existente nos Estados Unidos e lamentando as (em sua opinião) exageradas limitações impostas ao trabalho dos jornalistas na Europa, precisamente em virtude duma muito estrita aplicação das normas que protegem a integridade da vida privada e proíbem a difamação. Na opinião de José Manuel Fernandes, a Europa devia seguir os passos dos Estados Unidos e inverter o ónus da prova: não seria o jornal a dever provar que as suas alegações são verdadeiras mas os acusados nas suas páginas a dever provar que elas são falsas.


Como tantas outras vezes, José Manuel Fernandes não tem razão nenhuma. Não só é o jornal (ou a rádio ou a televisão) que inicia o processo ao publicar a notícia – e é razoável exigir que apenas o faça na convicção fundada (e não meramente subjectiva) de que ela é verdadeira – como é evidentemente mais difícil provar uma situação «negativa», ou seja, provar que algo não existe, do que o contrário (o que é ensinado nos primeiros anos do curso de Direito). O caso de Robert Murat é disto um bom exemplo. Ele foi acusado publicamente e, depois, constituído arguido, apenas porque uma jornalista inglesa considerou suspeito o seu comportamento quando se prontificou a ajudar os representantes da imprensa britânica, nomeadamente como tradutor. Essa atitude, segundo a jornalista (que devia, aliás, ser pessoalmente responsabilizada, senão por Murat, ao menos pelos jornais, por ter agido com evidente imprudência), era suficiente para o condenar, já que «o criminoso volta sempre ao lugar do crime» e havia, noutros casos conhecidos, exemplos de pedófilos a tentar colaborar com a imprensa e as autoridades.

Os prejuízos causados a Murat foram obviamente incalculáveis. E, no entanto, ele não teria nenhuma possibilidade de provar que não estava envolvido no rapto de Madeleine. Suponhamos que as investigações se arrastavam por mais alguns anos (o que sempre seria possível embora pareça que a polícia e o Ministério Público portugueses se preparam para pôr termo a este processo, sem deduzir acusação nem descobrir o que realmente se passou por falta de indícios suficientes). De que meios poderia Murat servir-se para evidenciar a sua inocência? Se continuasse como arguido
no processo, isso seria pura e simplesmente impossível. E, no entanto, ninguém pode conscientemente defender a atitude da imprensa, cujos únicos objectivos foram aumentar as vendas e conseguir importantes lucros imediatos.

Há uma responsabilidade dos jornais e meios de comunicação que não pode ser escamoteada. Impor o ónus da prova a quem é objecto das notícias que um jornal, a rádio ou a televisão decidem divulgar é apenas uma forma corporativa de defender uma classe à qual, pelo poder de que dispõe, se exigem particulares responsabilidades. José Manuel Fernandes, que está sempre pronto a denunciar os corporativismos dos outros (professores, médicos, funcionários, etc.) devia procurar-se em varrer primeiro diante da sua própria porta.