As eleições americanas e o Supreme Court
Um aspecto que não tem sido suficientemente considerado quando se trata das eleições presidenciais americanas tem a ver com a composição do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos – o US Supreme Court –, cuja posição, no edifício institucional americano, está longe de ser desprezível.
De há muito que os conservadores americanos, incluindo particularmente aqueles que fazem parte da «religious right» (fundamentalistas protestantes e católicos que consideram que tudo o que importa ao mundo tem solução na Bíblia e fazem desta uma interpretação literal), decidiram esforçar-se por conseguir a nomeação para este tribunal de juízes que, de forma equívoca ou inequívoca, professassem posições claramente conservadoras. Um dos seus principais objectivos é destruir a célebre decisão Roe vs Wade que institui o direito à interrupção voluntária da gravidez. Estou de acordo em temas como este não devem ser deixados à decisão dum grupo de juízes, cuja composição pode variar, se bem que lentamente, de acordo com o Presidente em funções. Com efeito, é ao Presidente que incumbe a proposta de nomeação dos juízes do Supreme Court e é muito difícil (embora não impossível – recorde-se a recusa senatorial que a maioria democrática conseguiu impor a Reagan quando este tentou nomear o arqui-conservador Robert Bork) que o Senado consiga a maioria necessária para se opor à decisão presidencial.
Por um conjunto de circunstâncias que aqui não posso enumerar (mas recomendo a leitura de The Nine – Inside the Secret World of the Supreme Court, de Jeffrey Tobin, um livro excelente que nos dá uma ideia vívida e precisa de como aquela instituição funciona intra muros), o Supremo Tribunal encontra-se praticamente dividido entre dois blocos, conservador e liberal. Para isto, muito contribuiu, como seria de esperar, Georges Bush filho, quer ao nomear John Roberts (sentado, ao meio, na fotografia ao lado) para Chief Justice – ou seja, em termos europeus, Presidente do Tribunal –, quer ao escolher um dos juízes mais reaccionários que alguma vez ocuparam um lugar na hierarquia judicial americana, Samuel Alito (em pé, adequadamente, na extrema-direita da fotografia). Georges Bush pai, quando Presidente, também tem uma grande quota-parte de responsabilidade pelo actual estado de coisas. Com efeito, quando Thurgood Marshall, o primeiro juiz negro, o homem que, enquanto advogado, apresentou as alegações no célebre processo Brown v. Board, em cuja decisão o Supreme Court que declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas, pondo fim à hipocrisia do separate but equal (que, em nota de pé de página, a África do Sul, nos tempos do apartheid, também mentirosamente proclamava), o primeiro dos Bush propôs para o substituir Clarence Thomas (fácil de identificar na fotografia), cuja única qualificação para o posto era a de ser o negro mais conservador do sistema judicial – porque, para substituir Marshall, era politicamente necessário nomear um afro-americano embora o próprio Marshall tivesse afirmado, quando se reformou, que a cor da pele era menos importante do que a orientação política e judicial. A confirmação de Thomas pelo Congresso foi, aliás, rodeada por um enorme escândalo quando Anita Hill, uma sua antiga colaboradora, o acusou de assédio sexual (diga-se porém, em abono da verdade, que estas acusações nunca foram provadas e que, no livro de Toobin, este juíz aparece sob uma luz mais simpática do que é habitual.) O último elemento da ala conservadora é, talvez, o mais formidável de todos, pelo menos do ponto de vista intelectual (a sua arrogância e o seu carácter de «cavaleiro solitário» têm-no, ainda segundo Toobin, impedido de desempenhar um papel mais importante no funcionamento do Tribunal): trata-se de Antonin Scalia (sentado à esquerda de Roberts, à direita na fotografia), que defende uma interpretação estritamente historicista da Constituição.
(Em termos políticos, esta é a interpretação favorita dos conservadores, dado que se recusa a deduzir da Constituição direitos que os founding fathers não tivessem considerado no momento em que a escreveram: assim, por exemplo, o direito à interrupção voluntária da gravidez, que nunca teria passado pela cabeça dos autores da Constituição! Mas a interpretação literal de Scalia vai muito mais longe: assim, por exemplo, ele votou contra a recente decisão do Supremo Tribunal que permite aos estrangeiros (aliens), presos em Guantanamo como combatentes inimigos, o recurso aos tribunais americanos ordinários para contestarem os motivos da sua detenção. De acordo com Scalia, nunca os autores da Constituição pretenderiam alargar este direito a não-americanos (e este era, aliás, o consenso - errado, ao que parece - da maioria dos constitucionalistas americanos.) E segundo McCain, o candidato presidencial republicano, esta decisão, que é o resultado da mais elementar aplicação dos princípios de justiça e de direito que aprendi na Universidade e que, na altura, eram considerados tão evidentes que mesmo os professores salazaristas os não contestavam em teoria, se bem que recusassem a sua aplicação prática, constitui uma das piores decisões judiciais na história dos Estados Unidos.)
Do outro lado da bancada, estão quatro juízes liberais: David Souter (sentado, na extrema-direita da fotografia), Ruth Ginsburg (actualmente a única mulher, após o pedido de reforma de Sandra Day O’Connor), John Paul Stevens (sentado ao lado direito de Roberts) e Stephen Breyer (de pé, à extrema-esquerda). Pouco dados a controversas, a sua biografia é comparativamente menos interessante do que a dos juízes conservadores. Mas têm incarnado a resistência do tribunal à sua transformação numa máquina política ao serviço dos ideais conservadores.
Entre estes dois grupos, o juiz Anthony Kennedy (sentado, primeiro a contar da esquerda) é o voto decisivo na maioria das sentenças controversas que são actualmente decididas invariavelmente por uma maioria 5 contra 4, dependendo do lado donde sopra o vento no que se refere a Kennedy. Por isso se diz que este é, na verdade, «The Kennedy Court» e parece que a maioria dos advogados que litigam perante o tribunal constroem os seus argumentos de maneira a convencê-lo. Kennedy é uma personalidade ambígua, inequivocamente conservadora, mas com um conhecimento do mundo e uma capacidade de se deixar influenciar por uma espécie de consciência jurídica comum da humanidade, patente na sua atenção à evolução jurídica noutros países, que o tornam especial entre os juízes dos Estados Unidos, normalmente mais preocupados em olhar para o seu próprio umbigo, ou seja, para a tradição judicial norte-americana. Assim, por exemplo, ao considerar, numa decisão recente, que a pena de morte não podia ser aplicada a menores de 18 anos ou para crimes diferentes do homicídio, Kennedy apelou expressamente para esse consenso internacional, o que lhe valeu as condescendentes, mas nem por isso menos brutais, considerações de Scalia, embora ambos tenham a mesma idade e sejam aparentemente amigos. Para dar dois outros exemplos, de sinais contrários, Kennedy votou com os conservadores numa decisão que reduzia em parte o alcance da decisão Roe vs Wade, estabelecendo limites para procedimentos médicos particulares de interrupção voluntária da gravidez, mas com os liberais (e foi ele mesmo que escreveu o acórdão) na decisão relativa à pena de morte e aos detidos de Guantanamo que já mencionei.
Qual é a importância de tudo isto, do ponto de vista das eleições presidenciais? É simples. John Paul Stevens tem já 88 anos e, embora continue a desempenhar um papel fundamental no tribunal e seja geralmente considerado como o líder intelectual do grupo mais liberal, é muito provável que, pela ordem natural das coisas, o próximo Presidente seja chamado a designar-lhe um sucessor (Diz-se, aliás, que ele ainda não se retirou por saber que seria Bush a fazê-lo. Sandra Day O'Connor continua aparentemente a lamentar a sua decisão de se demitir, tomada principalmente por motivos pessoais mas que abriu a porta à nomeação de Alito, um homem que ela parece desprezar.) McCain já afirmou que nomeará juízes como Alito e Roberts: Assim, com ele, o Tribunal será colectivamente o mais reaccionário de toda a história dos Estados Unidos e capaz de ultrapassar precedentes e regras estabelecidas apenas para impor a agenda religiosa e conservadora. Pelo contrário, é seguro que Obama nomeará alguém diferente. Isto é muito mais importante do que se pensa! Trata-se duma decisão fundamental e seria, fosse eu cidadão americano ou pudessem os cidadãos do mundo votar nas eleições americanas que os afectam tanto, mais uma razão para votar em Obama.
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