Soljenitsine - O debate no Público
A morte de Soljenitsine emocionou-me. Mas as declarações que o Público decidiu inserir na sua edição on-line para a comentar, de dois dissidentes comunistas, Carlos Brito e Zita Seabra, indignaram-me. Ou seja, melhor dizendo, indignou-me a indigência do debate! (A comparar por exemplo com os artigos publicados no Le Monde. No texto que se segue, os comentários entre parênteses e em itálico são meus.)
Carlos Brito recusou uma “avaliação positiva” a Soljenitsine devido às suas posições sobre ditaduras fascistas, mas enalteceu a denúncia que fez dos campos de concentração soviéticos. “Sempre que uma pessoa morre, e uma pessoa com uma projecção pública tão grande, nós lamentamos. (Não é verdade: por exemplo, eu não lamentei nem um bocadinho a morte de Pinochet que também tinha grande “projecção pública”, seja lá o que for que isso signifique.) Mas achei-o sempre uma figura muito controversa. Por um lado era um autor importante, mas por outro sempre achei que fazia afirmações que eu, de todo, não apreciava”. (Há aqui demasiados «acho que»!)
Mas (valha-nos a ressalva!) “apesar de tudo, a importância dele como autor e como escritor não me fazia tomar em grande peso essas afirmações (...) em relação aos regimes fascistas que vigoravam na altura no mundo”. Sobre o papel de Soljenitsine na denúncia dos campos de trabalhos forçados na antiga União Soviética, Carlos Brito reconheceu a importância do autor russo. “Nesse aspecto não recuso...” (Seria difícil!) Contudo, “no balanço de tudo, em relação ao seu papel, a minha avaliação não é positiva. Embora tenha esse lado positivo, no balanço de tudo a minha avaliação não é positiva. (...) A (sua) literatura tem aspectos positivos, como autor, como criador, como original, com uma obra importante. A denúncia também é importante. Mas por outro lado, as posições públicas que assumia levam a que não tenha, sobre a figura, uma avaliação positiva”, concretizou (ou melhor, repetiu.).
Por seu lado, a ex-dirigente comunista Zita Seabra disse que o escritor russo que ontem morreu “contribuiu como ninguém para a queda do comunismo ao denunciar a existência dos campos de concentração soviéticos.” (Contribuiu como ninguém é um claro exagero, mas pode perdoar-se porque sempre é verdade que Soljenitsine contribuiu em muito para o fim do regime sociético.) Acrescentou que “perdemos (Quem? Ela? Eu? O mundo? A Rússia? Poutine?) um grande escritor, que era simultaneamente um grande intelectual e um grande político” («Grande político» não seria, de certeza, a forma como Soljenitsine gostaria de ser lembrado.).
Zita Seabra acrescentou que o contributo de Soljenitsine para a queda do comunismo foi enorme “exactamente por a denúncia dos gulag (Só para informação: os gulag, no plural, nunca existiram. GULAG é um acrónimo que não é sinónimo de campos soviéticos.) ter sido feita na primeira pessoa”. Na opinião da responsável pela editora Alêtheia, os livros do “dissidente russo (...) têm a força (que têm) por serem autobiográficos”. “Ele esteve no gulag. (...) Ele esteve lá”, reforçou Zita Seabra. (O sublinhado, a repetição. a ênfase devem ter como objectivo evitar as dúvidas que ninguém teve sobre a passagem de Soljenitsine pelos campos soviéticos!)
Zita Seabra disse ainda que a “história fez justiça a Soljenitsyne porque, depois do sofrimento e de lhe terem tirado a nacionalidade russa, pôde morrer em solo russo”. (Frase bonita. Quase me vieram as lágrimas aos olhos.)
É isto o que dois dissidentes comunistas do nosso país têm a dizer sobre Alexandre Soljenitsine, mostrando afinal e apenas a (falta de) qualidade de qualquer debate intelectual em Portugal. Em boa verdade, a culpa nem sequer é deles. Esta forma de interrogar pessoas escolhidas à pressa corresponde, na imprensa escrita, à reportagem televisiva em directo. Alguém, no Público, que necessitava de escrever rapidamente uma notícia e não sabia bem o que dizer – exactamente como se passa na televisão – contactou os dois primeiros nomes que lhe vieram à cabeça e disparou a pergunta: o que pensa de Soljenitsine, que acabou de morrer em Moscovo! O resultado só podia ser neste conjunto de inanidades.
Na edição impressa de hoje, a discussão é um pouco (mas apenas um pouco) melhor. O título é um exemplo de baixa propaganda, aproximativa e superficial: com um livro matou a ilusão soviética... E do texto parece resultar que o que sobretudo interessa aos críticos portugueses é discutir se Soljenitsine foi ou não um grande escritor ou apenas (?) um homem de intervenção política. No caso de alguém que já foi comparado a Tolstoi, esta é certamente uma questão interessante.
(A fotografia que escolhi para ilustrar este artigo – e que é quase mal empregada atendendo às opiniões aqui referidas – vem do caderno de esboços de Eufrosinia Kersnovskaya, que passou 14 anos no Gulag. No fim de contas, deve ser a coisa mais importante que fica dfestas minhas referências às lusas discussões a propósito da morte de alguém que, com as suas qualidades e os seus defeitos, marcou o século XX!)
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