quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Emil Gilels e a Sonata «Waldstein» de Beethoven

Comprei hoje este DVD dum concerto de Emil Gilels, de 1971. Gilels era um dos magníficos pianistas da escola russa, aliás habituados a tocar em circunstâncias quase impossíveis (pianos desafinados, público barulhento) até chegarem às salas assépticas dos grandes teatros ocidentais (Contou-me o Tito Celestino da Costa que Elisa Wirssaladze, quando foi a Portugal pela primeira vez, lhe pediu para se treinar antes do concerto. Ele ficou aflito porque, à última da hora, não pensava conseguir encontrar um piano de qualidade suficiente. Mas Wirssaladze logo lhe explicou que um qualquer, mesmo piano velho e desafinado, lhe serviria: era aquilo a que estava habituada quando se exibia fora de Moscovo!).

Na primeira vez que se tocou fora da cortina de ferro (num concerto nos Estados Unidos, se a memória não me falha), e perante o aplauso entusiástico, Gilels disse aos espectadores que teriam que esperar por Richter para saber como se tocava verdadeiramente piano na Rússia (Richter, filho de pai alemão, considerado traidor à Pátria, só mais tarde foi autorizado a sair da União Soviética, para concertos no estrangeiro).

Modéstia muito exagerada, de um homem que, segundo sei, até era relativamente arrogante... Morreu cedo demais, em 1985, com apenas 69 anos. Ao que me contou uma pessoa conhecida, tratou-se dum engano médico ou de enfermagem: num hospital de Moscovo em que tinha sido internado para uma intervenção sem gravidade, esqueceram-se (!) de que era diabético. Uma das grandes «não-gravações» da música de Beethoven será sempre a sua «não-interpretação» da sua última sonata para piano, a Sonata No.32, Op.111. Preparava-se para a gravar quando a morte interveio. Entretanto, gravou quase todas as restantes. (Que eu saiba, na quase integral da Deutsche Gramophon, faltam apenas as Nos. 1, 9 e 32). E gravou também as «Variações Eroica», na melhor interpretação de sempre, na minha modesta opinião pessoal.

De qualquer maneira, neste DVD, vemo-lo em peças de Mozart e de Beethoven e ainda de Schumann e de Mendelssohn (estas duas últimas, como «encore»). Gostaria de salientar a sua interpretação da Sonata No.21, Op. 53 “Waldstein”, de Beethoven. Li, há muito tempo e em qualquer lado, que esta sonata tinha constituído o toque de finados das interpretações amadoras: a partir daí, só os pianistas profissionais podiam ultrapassar as dificuldades técnicas das obras escritas para piano. Não sei se a frase é verdadeira (quase tremo ao pensar o que seria uma interpretação «amadora» das sonatas anteriores de Beethoven: por exemplo, a Pathétique ou a Clair de Lune). Mas é verdade, quando se vê – e muito mais do que quando apenas se ouve – Gilels a interpretar a Waldstein, se percebe a intenção de quem disse, ou não disse, aquelas palavras. Porque nada daquilo pode ser feito por quem não se dedique ao piano de corpo e alma, por quem não treine cinco, seis, sete horas por dia. Ou seja, por grandes, grandes pianistas.