Um pouco de poesia - Ruy Belo
E, depois desta diatribe contra os senhores da finança, o melhor é voltar à poesia. Embora, se bem lermos o poema que aqui deixo, não é difícil verificar que não estamos a falar de coisas muito diferentes.
Nunca aqui transcrevi um poema de Ruy Belo, a quem João Bénard da Costa, no Público (há coisas boas mesmo no Público de José Manuel Fernandes) dedicou um artigo que não era só comovente mas representava, como seria de esperar do seu autor, uma verdadeiro preito intelectual - que é, afinal, o que há de mais importante quando se fala de alguém que foi grande. Lembro-me, a propósito do meu sogro, na homenagem que lhe prestou a Ordem dos Advogados quando lhe concedeu a sua medalha de ouro (poucos advogados em Portugal ou fora dele a receberam, seis portugueses, dois brasileiros e um espanhol. Fui ver à Internet para não me enganar e encontrei os seguintes: Mário Soares (1989), Adelino da Palma Carlos (1991), Ângelo d'Almeida Ribeiro (1993), Francisco Salgado Zenha (1998), Reginaldo Óscar de Castro (brasileiro) e Luís Martíns Mingarro (espanhol) (2001), Rubens Approbato Machado (brasileiro) e Jorge Sampaio (2004), e Francisco de Sá-Carneiro, a título póstumo, em 2006) - lembro-me que, nessa sessão solene, o bastonário Júlio Castro Caldas (não tenho a certeza de que já tivesse tomado posse e que a bastonária não fosse ainda Maria de Jesus Serra Lopes, que também disse algumas palavras na altura), produziu uma notável peça oratória, que foi muito além do panegírico pessoal ou profissional. O que ele fez foi pegar no discurso pronunciado por Ângelo d'Almeida Ribeiro (era assim que ele escrevia o seu nome) quando inaugurou o Primeiro Congresso dos Advogados, nos últimos tempos do Marcelismo e, tomando-o como base, mostrar a consistência do pensamento dum homem que sempre considerou a advocacia como um magistério e dedicou a sua vida à defesa dos direitos humanos e da liberdade religiosa. Tratou-se, verdadeiramente, duma homenagem intelectual, duma demonstração do respeito que os advogados portugueses dedicavam a Almeida Ribeiro (a minha filha Teresa, que vai seguir advocacia, faria bem em inspirar-se no exemplo do avô).
Mas isto são considerações pessoais que me afastam de Ruy Belo. E, afinal, se comecei esta entrada no meu blogue, foi para transcrever o seguinte poema:
Morte ao meio-dia
In País Possível, Madrid, 1973
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopre e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se e mais nada
A boca é pra comer ou pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido a praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
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