O mundo do «faz de conta»
Chegámos, como num comboio atrasado, ao século do «faz de conta». Assim, na América dos nossos dias, faz de conta que somos capitalistas - mas, em boa verdade, não sejamos bem isso. Não concordam? Então vejamos:
O capitalismo não é o sistema económico que, premiando aqueles que correm riscos de forma razoável e economicamente sólida e punindo os que, particulares ou empresas, agem sem atenção a critérios de prudência, contribui para uma adequada regulação da actividade económica? A acreditar na administração Bush, as coisas não se passam de forma tão clara. A recente decisão do Presidente, apoiado pelo seu Secretário de Estado do Tesouro (um verdadeiro insider, Henry Paulson, ex-presidente da Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo, cujas acções sofreram, aliás, uma enorme queda no final do ano passado) e pelo Presidente da Reserva Federal, de assumir a responsabilidade do chamado crédito malparado («bad debts») dos bancos e instituições financeiras americanas, é a prova, se necessidade houvesse, de que há necessidade de corrigir os erros da iniciativa privada, da famosa mão invisível que, ao que parece, garantia a estabilidade dos mercados. E como? É fácil: lança-se despudoradamente sobre o contribuinte a factura de anos de má gestão ou, melhor dizendo, de gestão pura e simplesmente ignorante, porque ninguém, dos administradores dos bancos aos traders e dealers e mesmo, e sobretudo, às autoridades de supervisão, conhecia efectivamente os riscos dos chamados (para nos sossegar com esta ideia de que a novidade é a mãe de todas as virtudes: mudança, mudança, inovação, inovação!) novos instrumentos financeiros. Mais, todos elogiavam os seus méritos, afirmando que garantiam uma maior flexibilidade do sistema financeiro e permitiam alargar o horizonte da sua intervenção, e chegando ao ponto de sustentar, sem nenhuma prova e, como provaram os factos, fraudulentamente, que eram benéficos para a economia no seu conjunto (cujos «fundamentals» eram de betão)!
E bem podem vir agora dizer os liberais, como Rui Ramos, em recente artigo no Público, que a intervenção do Estado apenas agrava as coisas por promover o chamado moral hazard. Balelas! Toda a gente que trabalhava nas instituições hoje em perigo sabia que, se alguma das mais poderosas se encontrasse em perigo, o Estado interviria. O moral hazard, a protecção dos que agem de forma negligente ou culpada, faz parte do sistema! E quem dirige as instituições que nos põem em risco, sabe-o perfeitamente.
Porque a intervenção do Estado, para além das razões eleitorais que toda a gente conhece, tem uma justificação mais profunda que é a de evitar que aqueles a quem nunca foi permitida uma palavra sequer durante estes anos de gestão delirante venham a ser os mais prejudicados na selva criada pelos tecnocratas da finança, que se passeavam em Porsches, Ferraris e Maseratis, dispunham de aviões privados e se garantiam, na reforma, como Jardim Gonçalves, em Portugal, o direito de utilizar os aviões das empresas que, para mais, deviam pagar-lhes férias e actividades de lazer. Como é evidente, essa gente (com excepção de uns poucos que a justiça americana se encarregará de enviar para a prisão, se um procurador considerar que essa atitude é eleitoralmente benéfica, mas que os tribunais de quase todos os outros países do mundo deixarão impunes) agia dentro da legalidade - da legalidade que eles próprios criaram com o big bang financeiro da praça de Londres e a desregulamentação a trouxe-mouxe. Os verdadeiros responsáveis deste estado de coisas, que vai traduzir-se em anos de baixo crescimento, de aumento da inflação e do desemprego, vão safar-se sem grandes problemas. Estou já a ouvir a sua justificação: a necessidade de tomar difíceis decisões de gestão que, por falta de sorte, por um conjunto de circunstâncias desfavoráveis, não correram como era previsto! E o pior de tudo isto é que tais decisões, mesmo se tivéssemos talvez o direito de esperar que gestores pagos de forma escandalosamente rica não cometessem tantos erros, nem sequer se traduzem em reduções nos bónus que recebem. O Presidente da Lehman Brothers, que a levou à falência, foi-se embora, ou ainda nem foi, com o seu milhão e tal de euros de bónus! E, como ele, quase todos os outros.
Quem perdeu? Os empregados dessas empresas, os pensionistas cujos fundos de pensão se desvaneceram na estratosfera financeira, os compradores de casas com hipotecas desfavoráveis (como no chamado mercado do sub prime imobiliário): esses perdem a casa, a reforma, o salário.
Que não me venham dizer que tudo isto é a consequência do normal funcionamento da economia! Que se trata duma espécie de auto-correcção que nos levará a um futuro melhor . Se isto fosse verdade, seria tempo de mudar de economia! Não é preciso ser comunista (nunca o fui, ao contrário de muitos daqueles que hoje defendem o mercado a todo o custo) para clamar, para gritar de todos os telhados de todas as cidades de todos os países, que a situação que vivemos nada tem de normal! Tratou-se apenas duma forma de ganância organizada, acompanhada da penosa aceitação da situação de maior desigualdade social desde os tempos anteriores à 2ª Guerra Mundial, sem que ninguém, ou quase ninguém, se insurgisse contra ela, esmagados, os poucos que tentaram fazê-lo, sob o pretexto dum progresso económico, financeiro, tecnológico, científico, etc., que, afinal, não passava de mentira. O que é ainda mais difícil de compreender é que, sob essa pretensa originalidade da Terceira Via, os socialistas e sociais-democratas europeus e os liberais americanos, que deviam ter aprendido a sua lição com Keynes, embarcaram neste engano despudorado, que começou com Reagan, continuou com Thatcher e, para vergonha de alguns de nós, culminou com Tony Blair.
O drama de tudo isto é que as classes mais desfavorecidas, que actualmente abrangem toda a gente que não faz parte, duma ou doutra forma, do compadrio que dirige os nossos países, esses que não têm amigos influentes, nem cunhas, nem beneficiam da protecção de alguém bem colocado, se encontram num beco sem saída e algum dia se cansarão de serem tratados de forma tão injusta. E, como nenhuma outra via se abre para que a sua voz seja ouvida, terão tendência a recorrer aos extremos, de esquerda ou de direita, mas, nos tempos que correm, quase invariavelmente de direita. Este é o risco que corremos! Assim eu me engane. Mas não o creio!
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