quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Ainda a Sonata «Waldstein» e, desta vez, Solomon

Há imensas e estupendas gravações da Sonata Waldstein. Entre as que me deixam relativamente frio, contam-se a de Brendel e mesmo a de Pollini (e eu criticar Pollini é verdadeiramente muito raro). Arrau é demasiado solene para meu gosto. Kovacevich sai-se bastante bem na sua recente integral das sonatas de Beethove mas é preciso recuar no tempo, a Schnabel ou, numa das melhores interpretações de sempre, a Serkin, para encontrarmos algo que se compare a Gilels. Richter, o outro grande pianista russo da sua geração, nunca gravou esta sonata que, aliás, não lhe assentaria bem. Mas, se quiserem esquecer o som mais ou menos desagradável, tentem escutar aquela que é, para mim, a melhor interpretação de todas: a de Solomon Cutner. Mas afinal, como qualquer pessoa menos atenta a estas coisas da música perguntará, quem é, quem foi, Solomon?

Solomon Cutner, que sempre usou apenas o seu primeiro nome, Solomon, nasceu em 1902 e morreu, aos 86 anos, em 1988. Fez parte do grande conjunto de pianistas ingleses, relativamente menos célebres do que russos e americanos, que incluía, entre outros, Myra Hess e Clifford Curzon. Mas é desconhecido do grande público (e mesmo do mais pequeno público que acompanha a música clássica) principalmente porque a sua carreira terminou muito antes da sua morte, mais precisamente, em 1956, quando sofreu uma trombose massiva. Tinham-se notado sinais prenunciadores desse acidente vascular cerebral quando, a partir de alguns meses antes, em concertos e sessões de gravação, alguns dos seus dedos deixaram de obedecer ao que o seu cérebro lhes exigia: notam-se perfeitamente, em alguns dos seus discos tardios, o que os ingleses chamam (mas apenas porque falam inglês!) finger slips. E sabe-se que ele, sem compreender exactamente o que lhe acontecia, pedia desculpa aos maestros ou aos seus acompanhantes por essas falhas inexplicáveis.

Quando sobreveio o desastre final, foi devastador. Uma parte do seu corpo ficou para sempre inteiramente paralisada. Nunca mais pôde tocar em público ou gravar, embora tenha continuado a ensinar e a escrever. Bem pode-se imaginar o drama pessoal de um homem que, se tivesse continuado a sua carreira, teria obtido certamente a reputação dum Richter, dum Horowitz (que estranhamente o considerava «chato», o que só mostra que nem sempre os génios, ou mesmo os homens de talento, são capazes de apreciar os seus congéneres) ou dum Serkin, para não falar de tantos outros, colado numa cadeira, impossibilitado de exprimir a sua arte senão através de conselhos dados a alunos escolhidos.

Existe agora uma compilação de uma boa parte da sua obra gravada (faltam, pelo menos, algumas sonatas de Beethoven) neste álbum que vêem aqui ao lado. Solomon era um especialista (embora eu tenha a certeza de que esta designação lhe desagradaria profundamente) de Beethoven. Melhor dizendo, era um beethoviano (perdoem o neologismo) de corpo e alma, compreendendo como poucos outros a música do compositor de Bona. Existem gravações estupendas dos concertos Nos. 3 e 5, mas onde ele se excedia era nas suas interpretações das suas sonatas para piano. Há uma espécie de consenso (embora os críticos franceses estejam geralmente em desacordo) em considerar a sua interpretação da Sonata No. 29, Op.106, a célebre Hammerklavier, como um marco quase impossível de ultrapassar. A sua Clair de Lune é também um exemplo de clareza e poesia. E, na minha opinião, a sua Waldstein é a melhor de todas (seguida de perto da de Gilels – ver artigo anterior neste blogue), se bem que, aqui e ali, uma nota lhe falhe (mas falha a quase todos, até a Gilels, quando toca em público).

Há muito tempo, comprei um DVD dedicado a Claudio Arrau (ver fotografia ao lado) em que aparecia, como simples bónus sem direito sequer a menção na capa, uma interpretação da Appassionata, Sonata No. 23, Op. 57, de Beethoven, precisamente por Solomon. Lembro-me de ter ficado absolutamente deslumbrado com a sua interpretação e também de que a minha Mãe, quando lha mostrei (e a Mãe tinha formação de piano, embora antiga e algo esquecida), ficou também maravilhada. Foi um DVD que vimos juntos muitas vezes, o que contribui sem dúvida para a minha predilecção por ele. Trata-se duma gravação dos anos cinquenta, a preto e branco, com a câmara centrada sobre as mãos do pianista e não, como é habitual actualmente, sobre a sua face, dando-nos o desagradável prazer de poder ver todo o suor que lhes cai da testa e alguns dispensáveis esgares. Mas, para além da técnica espectacular de Solomon, o que nos encanta, o que nos deslumbra, é o som bendito que ele consegue tirar do seu piano.

Solomon, um enorme artista, colhido cedo pela foice da vida. Um desperdício, um desconsolo. A quantidade de obras que nunca ouviremos, que nunca veremos, por um homem que, até ao fim da sua vida, se sabia capaz de no-las oferecer, não tivesse sido esse horrível desastre que lhe destruiu a arte. Por isso, há algo de muito comovente nesta vida, algo que nos permite perguntarmo-nos - mas é apenas uma questão retórica, porque as fontes que consultei nada indicam nesse sentido - se não teria sido preferível, para ele, morrer no momento em que deixou de poder tocar.