quarta-feira, 12 de julho de 2006

Camilo Pessanha (1867-1926)


Tenho quase a certeza de que, se fosse organizado um concurso para escolher o melhor livro de poesia portuguesa de sempre, e o júri fosse constituído pelos poetas portugueses, a escolha seria «Clepsydra», de Camilo Pessanha. Tenho também a certeza de que Pessanha nem sequer estaria numa lista organizada por sondagem pública que reunisse os dez mais populares poetas portugueses. Não somente a sua poesia é difícil – e não estamos em França onde, ainda há pouco tempo, as pessoas conheciam de cor as poesias de Baudelaire – como a sua vida não teve nenhuma das características românticas que se apreciam nos poetas – participação em movimentos revolucionários, empenhamento, exaltação. E, para além disso, nos dias de hoje, o simbolismo é uma palavra desconhecida.

Mas o livro – Senhor! Uma obra quase discreta que reúne alguns dos mais belos poemas da literatura portuguesa – e, de certeza, os mais conseguidos, de um ponto de vista formal. Por isso Eugénio de Andrade que (ouvi-o de Miguel Veiga, numa conferência feita em Bruxelas, onde apresentou os «Poemas da sua Vida»), parecendo um poeta todo ele espontaneidade e inspiração, escrevia os seus versos em folhas de papel quadriculado para se assegurar da métrica, considerava Camilo Pessanha como o seu mestre incontestado. E mesmo autores como Fernando Pessoa (que faz explodir a forma poética, nomeadamente nos poemas de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos) e Mário de Sá‑Carneiro nunca esconderam uma admiração sem limites pela poesia de Pessanha de que, aliás, pelo menos no que respeita a Mário de Sá‑Carneiro, apenas conheciam as primeiras obras.

Assim, numa carta enviada a Camilo Pessanha no final de 1915 ou no início de 1916, a solicitar-lhe alguns poemas para publicação na revista Orfeu, Fernando Pessoa escreve o seguinte: «(Os seus poemas) sei-os de cor, aqueles cujas cópias tenho, e eles são para mim fonte de contínua exaltação estética. (…) é porque muito admiro esses poemas, e porque muito lamento o seu actual carácter de inéditos (quando, aliás, correm, estropiados, de boca em boca nos cafés) que ouso endereçar a V. Exa. esta carta, com o pedido que contem.»

Por sua vez, Sá‑Carneiro diz, numa entrevista ao jornal «República», de 1914: «A minha vibração emocional, a melhor obra de arte escrita dos últimos trinta anos (…), é um livro que não está publicado – seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista.»

Camilo Pessanha caracteriza-se, com efeito, por um cuidado extremo na forma – os seus poemas assemelham-se a partituras musicais, na importância dada aos motivos rítmicos, e é de notar a multiplicação de frases incompletas e exclamativas, com dispensa do verbo, incluídas por simples efeito musical e não por qualquer necessidade explicativa – e pelo equilíbrio fonético das suas composições – com o peso dado a cada palavra, ao seu ritmo próprio, à sua "simplicidade e sabor" (Lopes & Saraiva, História da Literatura Portuguesa, 11ª edição, p.1032). Há uma certa irrealidade no sentimento, um desprendimento das coisas do mundo (mesmo quando os temas são mundanos – veja-se o poema «Na cadeia os bandidos presos», adiante transcrito), uma leveza e uma música de fundo que faz lembrar a corrente de um rio num dia calado de Verão.

Clepsydra só surge em 1920, depois, muito depois, do suicídio de Mário de Sá-Carneiro, no seu quarto do Hotel de Nice, em Paris. A edição foi organizada por Ana de Castro Osório com o acordo e, segundo alguns, a aprovação do autor. Mas tarde, o livro é actualizado por seu filho, João de Castro Osório, primeiro em 1945 e, posteriormente, na edição considerada como definitiva mas ultimamente muito criticada e parece que com boas razões, em 1969 – a edição da «Ática» através da qual as pessoas da minha idade tiveram os seus primeiros contactos com Pessanha.

A exacta determinação do texto de Clepsydra tem dado lugar – como não podia deixar de ser – a intensas polémicas entre os estudiosos. Devo dizer que acho essas discussões pouco interessantes, até porque os poemas são muito poucos e, com franqueza, questões de organização e precedência de textos, se podem ser importantes para os estudiosos, não me parecem essenciais do ponto de vista dos que gostam de poesia e querem ler Camilo Pessanha. A discussão concentra-se em saber quais, dos 54 poemas (mais dois fragmentos) deixados por Pessanha, fazem parte de Clepsydra. Segundo uns, a edição de 1920, contendo 21 poemas, que teve o acordo expresso de Pessanha (em carta dirigida a Ana de Castro Osório, para lhe agradecer a publicação de Clepsydra, o poeta refere-se aos «cuidados da disposição» acrescentando: «que é como eu próprio a faria»), é o arquétipo a ser seguido. Mas Paulo Franchetti considera esta referência como «meramente protocolar» e inclui na sua edição da Clepsydra 52 poemas, apenas deixando de fora «dois poemas paródicos e dois fragmentos». E há, depois, algumas discussões sobre a fixação do texto. Assim, por exemplo, no poema «Violoncelo», sigo a Barbara Spaggiari de preferência a Paulo Franchetti – mas faço-o por mero gosto pessoal.

Pela minha parte, ultimamente, tenho usado a edição de Paulo Franchetti, não porque concorde com a sua argumentação (parece-me exagerado considerar que Clapsydra abrange toda a obra poética de Pessanha), mas porque é mais fácil de consultar. Guardo, como sempre, um especial carinho pelas edições da «Ática» porque, sem esta editora, não conheceríamos – ou conheceríamos muito mal – os maiores poetas do século XX português: o século de oiro da poesia portuguesa, como lhe chamou Eugénio de Andrade. Mas reconheço que as últimas edições de João de Castro Osório apresentam vários erros. A edição de Barbara Spaggiari (Lello Editors) é rigorosa mas de muito difícil maneio.

Clepsydra começa assim:

(Sem título)
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…

Pouco depois, vem um dos poemas mais conhecidos:

CREPUSCULAR
Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos d'amor, d'ais comprimidos…
Uma ternura esparsa de balidos
Sente-se esmorecer como um perfume.

As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se 'spasmos, agonias d'ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas…
– Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave

As tuas mãos tão brancas d'anemia,
Os teus olhos tão meigos de tristeza…
É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.

Pessanha chegou a ser juíz em Macau, um lugar que o punha em contacto com as misérias do mundo, que ele recriava, numa espécie de aquário formal:

(Sem título)
Na cadeia os bandidos presos!
O seu ar de contemplativos!
Que é das feras de olhos acesos?...
Pobres dos seus olhos cativos…

Passeiam mudos entre as grades.
Parecem peixes num aquário.
Campo florido das saudades,
Porque rebentas tumultuário?

Serenos. Serenos. Serenos.
Trouxe-os algemados a escolta…
Estranha taça de venenos,
Meu coração sempre em revolta!

Coração, quietinho, quietinho!
Porque te insurges e blasfemas?

Pschiu… Não batas… Devagarinho…
Olha os soldados, as algemas.

Ainda estes dois poemas, tão diferentes, mas que impressionam pela total desesperança:

FONÓGRAFO
Vai declamando um cómico defunto.
Uma plateia ri, perdidamente,
Do bom jarreta… E há um odor no ambiente
A cripta e a pó – do anacrónico assunto.

Muda o registo, eis uma barcarola:
Lírios, lírios, águas do rio, a lua.
Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
Sobre um paul – extática corola.

Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
D'um clarim de oiro – o cheiro a junquilhos,
Vívido e agro – tocando a alvorada…

Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebra-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!

(Sem título)
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, – meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, – tábua tosca, de pinho?
E me espalho a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe… Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.

Mais um exemplo, também conhecido:

VIOLONCELO

Chorai arcadas
Do violoncelo
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo…

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos…
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.

Fundas, soluçam
Caudais de choro…
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...

Trémulos astros…
Soidões lacustres…
–: Lemes e mastros…
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas!
Blocos de gelo…
– Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.



E, finalmente, aquele que é, provavelmente, o mais perfeito poema escrito em língua portuguesa (não digo, nem o mais belo, nem o melhor, se é que existe um melhor poema, seja em que língua for). Em bom rigor, não faz parte de Clepsydra (foi publicado na revista Ideia Nova, de Macau, em 1929; e na revista Atlântico, em 1947, aqui com a indicação falsa de «inédito») mas, num artigo sobre Camilo Pessanha, não vejo como poderia deixá-lo de fora.

BRANCO E VERMELHO

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.

Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser, suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso…
Que delícia sem fim!

Na inundação da luz,
Banhando os céus a flux,
Na êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distancia reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana
Ao longe a caravana
Sem fim a caravana
Na linha do horizonte
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana…
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.

Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os sues magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis

A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Palidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror…
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor…

E ali fiquem serenos,
De costas e serenos.
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas.
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas.

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser, suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso…
Num doce esvaimento.

Ó morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa…
Tudo vermelho em flor…

segunda-feira, 10 de julho de 2006

Octavio Paz sobre Fernando Pessoa




O que distingue um escritor está expresso, de forma definitiva, na última frase desta passagem escrita por Octavio Paz a respeito de Fernando Pessoa (in Fernando Pessoa – l'inconnu personnel, p. 15 - Edições Fata Morgana, Cognac, 1998 - texto francês de Roger Munier, desenhos de Juan Soriano.)

«Comme tous les grands paresseux, il passe sa vie à dresser le catalogue d'œuvres qu''il n'écrira jamais. Et comme il arrive aussi aux abouliques, quand ils sont passionnés et imaginatifs, pour éviter l'éclatement et conjurer la folie, comme à la dérobée, en marge de ses grands projets, chaque jour il écrit un poème, un article, une note de réflexion. Le tout marqué d'un même signe: celui de la nécessité. C'est cela, c'est cette fatalité qui distingue un écrivain authentique de celui qui n'a que du talent

domingo, 2 de julho de 2006

Até à final















O meu amigo Carlos irrita-se porque eu, depois desta (longa) ausência provocada pelas minhas dores no ombro, só falo de futebol. Tem razão mas ainda me custa utilizar o computador e, assim, a minha participação no blogue tem sido muito reduzida.

Contudo, depois do último artigo julgo que devo voltar a falar da equipa de Portugal para salientar, desta vez, que os jogadores que souberam enfrentar um jogo difícil com inegável «fair play». É uma questão, para mim, de «getting the record straight».

As estatísticas falam por si. 10 faltas de Portugal durante os cento e vinte minutos e 2 cartões amarelos. Nada a ver com o que se passou no jogo com a Holanda. Conclusão: não é com faltas que se ganham jogos. E atenção no jogo com a França: afinal, se passarmos à final, não a queremos jogar sem jogadores!

Só mais duas notas.

1. Nunca gostei muito do Ricardo mas, desta vez, tenho que dar a mão à palmatória, reconhecendo-lhe todos os méritos do mundo – pelo menos quando toca a defender grandes penalidades. Esperemos que esteja tão inspirado no jogo com a França.

2. E – e esta é a segunda observação – cuidado com a França! Não façamos como os espanhóis que a tinham eliminado antes do jogo (os títulos de alguns jornais espanhóis anunciavam, a grandes parangonas, a «reforma» de Zidane), só para acordarem, no dia seguinte, com uma dor de cabeça que sabia a ressaca de mau vinho. Ou como os brasileiros, que garantiam que, desta vez, os franceses estavam no papo: seriam 3-0 para o Brasil, história de vingar a derrota de 1998. A França é uma grande equipa, que está muito moralizada, e os seus jogadores, que foram indecentemente criticados, demonstraram uma enorme raiva de vencer.

Provavelmente, não será um grande jogo, mas será um jogo para sofrer.