quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

João Luís - Dois anos de saudade

Devem ter existido poucos dias nas nossas vidas em que não tenhamos discutido, às vezes em altos berros, de forma a deixar a Mãe e o resto da família desesperados, sem saber o que fazer. Posso dizer que tenho saudades, não das discussões, não dos desacordos, mas de ti? Da tua ironia, do teu sorriso que nunca se transformava em riso, da tua forma de achar que o mundo não valia nada? Tenho saudades disso, de ti. Foi muito cedo que te foste embora. Mais valia que tivesses ficado algum tempo mais, mesmo com o mau feitio e aquela maneira que tinhas de te irritares sem razão nenhuma. Fazes-nos falta. Não sei bem porquê porque, às vezes, eras insuportável mas fazes. Devia ser essa ironia que se vê na fotografia... O sorriso irónico de que a Mãe gostava.

Crespo, Sócrates, e o disparate

Esta história de Mário Crespo, a propósito de o Primeiro-Ministro, num almoço com dois ministros, perto de um administrador/director de televisão, ter alegadamente considerado que ele, Crespo, era, para além de um problema médico, um "problema a resolver", soa-me a história mafiosa com mau argumento. E isto por várias razões, a começar pelo facto de o tal administrador – ou director – de televisão já ter vindo dizer que as coisas não se passaram exactamente como é alegado.

Deixem-me começar por dizer que fiquei contente por ter visto num jornal, ontem, que o famoso almoço se teria realizado na terça-feira da semana passada. E, hoje, que tudo se passava no restaurante do Hotel Tivoli, em Lisboa. Assim, pelo menos, podemos facilmente saber se o Primeiro-Ministro estava, de facto, nesse restaurante e a almoçar com aquelas pessoas. E se Bárbara Guimarães e Nuno Santos se encontravam lá também; e se Sócrates, ao cumprimentar Bárbara Guimarães, terá mesmo repetido a Nuno Santos que Crespo era o tal problema à procura de solução.

Devo dizer que acho tudo isto uma palhaçada. Não uma "calhandrice", no sentido de bisbilhotice ou coscuvilhice, como disse oficiosamente o gabinete do Ministro dos Assuntos Parlamentares, porque o termo, embora bonito, parece não existir (pelo menos, no Dicionário da Porto Editora). Mas tenho alguma dificuldade em acreditar que Sócrates fosse tão estúpido. Estúpido a ponto de falar destas questões, em voz alta, num restaurante; mais estúpido ainda por se ter dirigido a Nuno Santos, comentando as acções e opiniões de um jornalista da SIC. Desculpem. Custa a crer. Ou então, andamos todos doidos. Seria bom que Nuno Santos explicasse por que é que a conversa não se desenrolou nos termos referidos por Mário Crespo.

Quanto ao facto de o Jornal de Notícias não ter publicado o artigo deste jornalista, o que podia fazer o director do jornal? Dizer que o artigo era um artigo de opinião é argumento que nem sequer o mais reles papalvo pode aceitar. Quando, numa peça jornalística, se acusa o Primeiro-Ministro de ter dito qualquer coisa difamatória, num local e numa data precisa, estamos perante tudo salvo um artigo de opinião. O director do jornal tem obrigação de se assegurar de que as informações publicadas são exactas; e até o dever de confrontar o acusado com os factos que lhe são imputados e dar-lhe o direito de apresentar a sua versão. A reacção de Mário Crespo – a demissão – é absolutamente incompreensível, para mais vinda dum jornalista com uma prestigiada carreira profissional, que deve saber distinguir entre as suas opiniões e factos que se imputam a outras pessoas.

Mário Crespo vem hoje acrescentar que, entre os "problemas" a resolver, também se encontrava Medina Carreira. Por amor de Deus! Medina Carreira anda a dizer o que diz há mais de vinte anos. Até Sócrates sabe que daí não vem mal ao Governo, ao país ou ao mundo. (E, mesmo que viesse, há problemas que não têm solução). Eu tenho uma certa admiração pelo Medina Carreira dos primeiros tempos; mas a sua posição constantemente negativa começa a enjoar-me. Quando ele fala, já sabemos o que vai dizer: que isto é tudo uma cambada. Faz lembrar o Herman José e o Estebes...

Enfim, quem acusa deve provar. O ónus da prova recai, neste caso, inteiramente sobre Mário Crespo. Estamos à espera. Se as provas não forem sólidas, a sua reputação ficaria certamente arruinada, se isto não fosse um país de brandos costumes, sempre pronto a desculpar quem diz o que nos interessa independentemente da verdade. Deve ser por isso que Crespo discursou num encontro do CDS-PP, onde devia falar de Obama e falou de si próprio, durante mais de meia hora. E que o seu artigo foi publicado num site ligado a um instituto do PSD. Demasiadas coincidências... E disparates.

Tia Paule - Netos

E, para terminar esta forma de lembrança, aqui fica o texto lido pelo Tiago, neto mais velho, na missa do trigésimo dia.







Querida Avó Paule,

Não lhe vou falar de recordações de infância ou de episódios ou momentos que foram vividos sem a noção de que um dia ia partir. Porque esses ficarão para sempre na minha memória e no meu coração.

Quero antes dizer-lhe que a Avó era uma mulher inteligente, interessante, independente, sensata, carismática. Sem ser muito afectiva, conseguia ser extremamente doce e calorosa.

A Avó para mim era uma figura emblemática que representava a mulher forte dos tempos modernos e que se antecipou à sua geração. A Avó foi alguém que deu tudo e que dedicou a sua vida à família, mas sempre com o seu próprio espaço inviolável e impenetrável.

Bastou um olhar seu e um sorriso para que o Avô Ângelo , que era um grande homem, saber que a Avó Paule era a mulher com quem queria passar o resto da vida. (Era) o tipo de mulher que todos os homens gostariam de ter ao seu lado, mas poucos ousam arriscar, exactamente pelo espírito independente e pelo desafio que comporta ter uma mulher assim - segura, forte, sem falsos moralismos, nem princípios obsoletos e pouco consistentes.

A Avó foi para mim muito importante e recordar-me-ei sempre dos nossos almoços, em que eu sentia que podia falar de tudo consigo. Não ia ter com a Avó para ser simpático e fazer uma boa acção mas sim porque gostava muito de falar consigo. E quando me ia embora, não ia com a sensação de dever cumprido. Ia sim com o sentimento de paz de espírito por poder falar consigo à vontade, sobre tudo o que me ia na alma e que estava a viver naquele momento. Falava consigo de qualquer assunto que quisesse, sem haver momentos de silêncio e mesmo de coisas de que normalmente não se falam com uma Avó. Quando achava que me estava a exceder e eventualmente ser atrevido, pedia-lhe, envergonhado, desculpa. E a Avó dizia:

"Menino, eu sou da terra do biquíni, e a mim nada me choca...!"

A Avó foi livre e independente até ao fim. Quando a fui ver ao hospital dias antes de partir, estivemos um bocado a conversar, e mal sabia eu que seria a última vez que falaríamos.

E a Avó disse-me uma coisa que nunca esquecerei: que a única pessoa a quem eu tinha que provar qualquer coisa, era a mim próprio...

Perguntei-lhe quando voltaria para casa. E a Avó, que já não conseguia sequer levantar-se, respondeu-me:

"Se não me derem alta, apanho um táxi para o aeroporto, vou para Nice e quem quiser que vá à minha procura!"

Beijo grande, Avó

Tia Paule - Palavras da Vanda na missa do 30º dia

Pedi à Vanda que me fizesse chegar as palavras que disse na missa do trigésimo dia da sua Mãe, principalmente porque a Trezzu me tinha dito que elas eram particularmente comoventes. Aqui ficam, em forma de mais uma homenagem à Tia Paule.













Chère Maman,

Juste quelques mots pour te dire qu'ici-bas sur terre, tout va bien. Il pleut beaucoup, il fait froid ("degueu" comme disent les enfants….) mais on approche doucement le Printemps.

J'espère que là-haut le Ciel soit clément et que tu te portes bien. Que tu puisses profiter de la vue sur la Méditerranée, en buvant ton carioca et en fumant ta cigarette, avec plaisir. Le Ciel, après tout, pourrait avoir des allures de Beau Rivage...

Nous sommes tous réunis aujourd'hui pour prier pour toi, pour nous souvenir de toi, un mois, jour pour jour, après ton départ.

Comme disait Paul Eluard: "Il n'y a pas de hasard, il n'y a que des rendez-vous". Ce n'est pas par hasard que tu as décidé de nous quitter le soir du 24 Décembre 2009. Pour une française, qui a adopté et a été adopté par le Portugal, pendant 60 ans, nous pouvons dire que tu "as bien visé"... La nuit la plus importante pour les portugais – la fameuse Consoada.

Après le bacalhau com grão spécialement préparé pour Papa, tu t'attaquais a une autre tâche. Le fameux déjeuner de Noël du 25 Décembre. Tu dressais la table avec soin, couverte d'une belle nappe aux couleurs vives, la plus belle porcelaine; tu terminais de décorer le sapin de Noël, avec la crèche provençale à ses pieds; tu finissais d'emballer les derniers cadeaux; tu faisais la vinaigrette pour la salade verte, tandis qu'une énorme dinde rôtissait dans le four, régulièrement arrosée d'une sauce appétissante, dont tu gardais jalousement la recette, et qui enveloppait toute la maisonnée de délicieuses arômes.

Tu ne te couchais pas de la nuit, pour que tout soit parfait le jour de Noël. Toute la famille était là et surtout les petits enfants sautillaient d impatience. Papa et toi ouvraient alors les portes du salon et, embrassant un par un les 11 petits enfants qui faisaient la file, du plus petit au plus grand, vous leur ouvriez le passage, et tous se précipitaient sur leurs cadeaux respectifs. C'était vraiment, pour toi Maman, un moment de pur bonheur.

Non, ce n'est pas un hasard que tu sois partie le 24 Décembre...

Et un mois après, tu nous as donné rendez-vous ici dans la Maison de Dieu, pour cette messe en ta mémoire, célébré avec dévotion par le Père Arruda.

Pour tes enfants, tes petits enfants, tes frères Jean et Gérard, ta cousine Renée, ta famille, ta fidèle Jésus, tous tes amis, tu seras davantage présente dans le coeur de chacun d'entre eux, en cette date très spéciale qui se répétera pour les générations futures. Et nous savons que tu penses spécialement à Vera qui fête aujourd'hui son 55ème anniversaire.

Avec ton caractère disons "trempé" (et le choix est prudent...), ton intelligence, ton sens de l'humour, ton allure et ta distinction tu n'es pas prête de te faire oublier. (À propos, les commerçants du quartier sont bien tristes eux aussi de ton départ. Ils te font le bonjour...)

Et pour terminer, je rappelle une phrase que tu disais souvent et qui te ressemble bien (à propos de ton nez aristocratique):

"C'est dans les plus beaux villages qu il y a les plus grands clochers".

On t'aime, repose en paix!

Tia Paule

Embora a Vanda, com o seu tacto habitual, já me tenha criticado por não ter dado notícia, no blogue, da morte da Tia Paule (aqui, na única fotografia que consegui encontrar, com o seu neto Pedro), a verdade é que não me foi fácil escrever as linhas que se seguem. Quando se gosta mesmo duma pessoa, as palavras exactas custam a chegar. Eis o que consegui alinhavar.


No discurso que fez em homenagem a Philippe Séguin, o Presidente francês falou dum devoir d'orgueil que era sentido pelo homem político francês, filho de militar morto na frente de combate, pupilo da Nação.

A frase ficou-me gravada na memória e tenho pensado nela a propósito da Tia Paule. Claro as situações são muito diferentes. Mas havia na jovem francesa chegada muito nova a Portugal, também ela órfã de Pai, uma espécie de fierté que se impunha aos outros. Nós, que a conhecemos mais tarde, não podemos imaginar o que deve ter sido, para ela, aos dezanove anos, desembarcar num país tradicional, numa sociedade tradicional, numa família tradicional, e, pelo menos nesses primeiros tempos, dar a toda essa gente que a rodeava, como depois deu às suas filhas e ao seu filho, uma alegria e uma descontracção fora do vulgar. Como o Tiago lembrou, na missa do trigésimo dia, a ela, que vinha da terra do biquíni, nada a escandalizava. Não deixava de ser conservadora; só que era uma forma de ser conservadora que não tinha nada a ver com o provincianismo das gentes cá do burgo.

Ainda a conheci nos seus tempos áureos. Foi sempre essa imagem, a de uma mulher activa, conversadora, determinada, inteligente, que me acompanhou. Nos últimos anos, isolou-se e fechou-se em casa, na sua sala, em frente da televisão, a fazer as suas intermináveis palavras cruzadas (em francês e português); mas, pelo menos comigo, guardou essa capacidade de se mostrar como sempre tinha sido. E os momentos que partilhámos foram sempre de comunhão. Sei que ela gostava de mim; e eu gostava muito dela. Os defeitos, de um lado e doutro, têm pouca importância em coisas de coração.

É aos seus netos, sobretudo aos seus netos mais novos, que me dirijo. Porque eles, ao contrário dos seus filhos e mesmo dos seus netos mais velhos, não tiveram talvez a oportunidade de a conhecer como realmente era. A memória que gostava que os meus filhos guardassem dela é a de uma grande senhora que o final da vida (a Clara, o Zé Maria) maltratou.

Talvez não se lembrem da genica, da garra, da alegria. É natural! Deixou de ir a Nice, ao seu Beau Rivage; deixou de ver o Mediterrâneo, que acompanhara a sua juventude e que sempre lhe retemperava a alma. Ficou-lhe o sorriso experiente, a compreensão de quem muito viveu; talvez acompanhada por uma compreensível amargura – como me disse uma vez, de uma pessoa que viveu para além do seu tempo – que às vezes a assomava mas nunca a dominava. Mas antes de se instalar nessa tristeza, foi uma pessoa cheia da vida, capaz de agarrar com todas as suas forças as oportunidades que lhe apareciam, capaz de distribuir, por quem a rodeasse, força, graça, e uma simpatia irónica ou uma ironia simpática que lhe era natural. Vinda do Sul de França, onde a vida parece fácil porque o clima é clemente, o mar calmo e o calor acolhedor, para este país que, na altura em que cá chegou, não passava de um canto obscuro, afastado da Europa, passou a falar português como uma portuguesa, com a excepção do seu "fazer a louça" – faire la vaisselle – que as suas filhas ainda usam. Todos os que a conheciam a admiravam. Na missa, a Vanda falou dos comerciantes do bairro, que estavam tristes, e podia ter falado de muita gente mais. Guardou sempre uma independência de espírito, e uma agudeza da inteligência, que a distinguiam. Lembro-me da festa que as suas filhas organizaram para os seus setenta anos. Uma senhora, comovida, mas sorridente, risonha, surpreendida e contente. Essa é a imagem que lhe corresponde.

Morreu como eu gostaria que a minha Mãe tivesse morrido. Em casa, e não no hospital acompanhada de enfermeiras distraídas e médicos pouco atentos. Recusou tratamentos; recusou paliativos. Tenho a certeza de que sentiu que o seu tempo tinha chegado ao fim; e morreu com a dignidade com que sempre viveu.

E tenho pena, uma pena imensa, de sentir que nos deixou. Gostávamos imenso um do outro. Talvez porque soubéssemos que, nestes tempos em que toda a gente anda à procura de benesses, nós nos contentávamos com a amizade. Morreu há tão pouco tempo e já tenho saudades da sua forma de falar e de sorrir. Espero que os meus filhos, seus netos, possam guardar dela a mesma recordação que eu guardo, feita de ternura, às vezes, de exasperação (porque ninguém podia dizer que a Tia era uma pessoa fácil), mas sobretudo de afeição e estima. Que fique bem, onde quer que esteja. Nós continuaremos, deste lado, a falar consigo, de preferência naquele francês meridional que ninguém consegue verdadeiramente imitar. Bonne chance.