sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O inefável PPC

Ouvi, embora sem poder reprimir incontroláveis bocejos, a entrevista de Pedro Passos Coelho por Judite de Sousa, ontem, na RTP1. A entrevistadora não ajudou. O seu empenho em discutir as opiniões de Passos Coelho sobre algumas personalidades do PSD (Marcelo, principalmente) e José Sócrates não criou um ambiente propício a uma discussão de ideias ou projectos. Mas talvez, bem vistas as coisas, isso tenha sido um bem para o candidato porque, em nenhum momento da entrevista, Passos Coelho mostrou ter umas ou outros. Digo bem: nem uma breve chispa, uma faísca, um momento de vivacidade. Nenhum desígnio, nenhuma concepção, para o país, para além da estafada referência à necessidade de encontrar uma alternativa não socialista ao governo de Sócrates. Foi obra! Cinquenta minutos de vácuo.

Surpreendente? Claro que não. Afinal, o que se esperava? Que Passos viesse mostrar uma profundidade que lhe é, obvia e, desde ontem, comprovadamente, alheia? As pessoas não se transformam em dias, semanas ou meses. Com uma certeza fiquei: se já não tinha a intenção de comprar o seu livro (Mudar. Segundo o candidato, citado pelo Público, uma análise do país e um farol – nada menos – para o partido. Mas já o título revela uma comovente originalidade), agora sei que guardarei esse dinheiro para algo mais útil – ou seja, qualquer outra coisa.

Só me espanta que pessoas como Coelho acreditem que têm um destino nacional. Como lhe terá vindo essa ideia? De manhã, diante do espelho, ao fazer a barba? Se for isso, recomendo-lhe a leitura da Branca de Neve.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Demitido Director do Museu Nacional de Arte Antiga

Estou à vontade para falar porque não conheço Paulo Henriques, ontem afastado do cargo de Director do Museu Nacional de Arte Antigo onde, como toda a gente sabe, se encontram os célebres Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves, cuja imagem escolhi para ilustrar este texto. Ainda mais à vontade quanto é certo que o seu provável substituto, António Pimentel, actual director do Museu Grão Vasco, de Viseu, é unanimemente considerado, incluindo pelo próprio Paulo Henriques, como pessoa bastante competente. Mas a notícia, tal como dada, desperta-me dois comentários:

1. Ao que parece, a Ministra procura um "gestor". Paulo Henriques é gestor de museus desde 1992 e tem feito um bom trabalho pelos vários museus por que passou. (O mesmo se pode dizer do seu substituto: gestor de museus com provas dadas). Assim, coloca-se a questão: afinal, de que gestor anda a Ministra à procura? Dum gestor de mercearias? De supermercados? De centros comerciais?

2. Não será que o que está em causa é simplesmente o modo de financiamento das instituições culturais, e dos museus em particular, no nosso país? Pretende-se alguém que venha para a rua à procura de subsídios do sector privado, de mecenas? Atenção! Os milionários americanos dão dinheiro para actividades de beneficência e sustentam entidades como orquestras, museus ou bibliotecas públicas. Lamento dizer que, em Portugal, não existe essa tradição. Os nossos milionários têm tendência a guardar o dinheiro com eles ou, quando muito, a suportarem alguns custos de programas de televisão dirigidos ao grande público.

O risco destas aventuras é que se percam os subsídios públicos sem ganhar capitais privados. E então, aqui d'el Rei... O futuro dos museus em Portugal pode vir depressa a assemelhar-se ao das suas orquestras – que praticamente deixaram de existir.

domingo, 17 de janeiro de 2010

A candidatura presidencial de Manuel Alegre

Escutar sem rir alguns dos comentários que acolheram o anúncio da disponibilidade de Manuel Alegre de se candidatar à Presidência da República, em que se multiplicam alguns notáveis socialistas – expressando dúvidas sobre o apoio do Partido ou considerando que é ainda cedo para o expressar – ultrapassa as minhas capacidades. Pelo contrário, sinto vontade de soltar soltas e ruidosas gargalhadas. Parece que aquelas personalidades estimáveis ainda não compreenderam que o mundo, asterixticamente, lhes caiu sobre a cabeça. Não resta ao Partido Socialista outra possibilidade que não seja a de apoiar Manuel Alegre. Ninguém se prestará a repetir o papel de Mário Soares em 2006: a humilhação foi grande demais. Por isso mesmo, Alegre não se enganou, nem se precipitou, ao anunciar cedo a sua intenção. Trata-se simplesmente de uma forma de marcar terreno e de impedir o aparecimento de outros candidatos. Exemplo de boa política, a recordar atitude idêntica de Jorge Sampaio em 1995, na perspectiva das eleições do ano seguinte. Pode o PS ficar desiludido e Sócrates enervado; mas não conseguirão barrar o percurso de Alegre – e o melhor, para eles, é que nem tentem. As eleições do ano que vem oporão Cavaco Silva e Manuel Alegre. Com a quase certeza, de que, desta vez, pelo menos, haverá combate.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O terramoto no Haiti - e a esperança

Desde que o meu irmão Francisco começou com o seu blogue, temos trocado impressões principalmente através dos nossos comentários aos artigos um do outro. Isso é natural e transformou-se numa espécie de agradável comunicação entre nós que não nos correspondemos por carta nem por correio electrónico e falamos raramente ao telefone. Às vezes, concordamos; mas, se isso acontece, o mais natural é assentirmos tacitamente: não sentimos necessidade de o proclamar. Assim, é quando dissentimos que deixamos a nossa crítica. No caso do artigo que ele escreveu ontem, relativo aos acontecimentos do Haiti (e que podem consultar no link que insiro no final), não se trata propriamente de discordar dele. Ao lê-lo, atingiu-me sobretudo uma sensação de desânimo: o desânimo que o Francisco mostra mais o desânimo por ele o mostrar dessa forma. Digamos que as suas considerações sobretudo me entristeceram.

Ninguém duvida que a vida dos sobreviventes do terramoto haitiano será extremamente difícil; mas estarão vivos (e não é por uma frase parecer ter sido pronunciada pelo senhor de la Palisse que está errada; pelo contrário, aquele senhor tinha normalmente razão). Ora, há, na vida, uma dignidade – ou, melhor dizendo, a possibilidade de uma dignidade – que não existe na morte. A morte não é digna. Podemos morrer por causas honrosas, podemos mesmo morrer com dignidade; mas a morte, em si mesma, não tem nada de digno; é corrupção do corpo, podridão, fealdade. A morte é, sobretudo, o desaparecimento irremediável da possibilidade de podermos, algum dia, alguma vez, adquirir honra e nobreza. Estarmos vivos, mesmo nas piores condições do mundo, implica a possibilidade da esperança. Tenho a consciência de que essa esperança é, muitas vezes – no caso dos haitianos, na imensíssima maioria das vezes –, pura ilusão. Mas pensar assim é já reduzir a vida a considerações principalmente materiais. Pode haver amor, pode haver ternura, pode haver simples decência humana, no meio da maior pobreza. Obviamente que, em muitos casos, a miséria pode impedir amor, amizade, respeito e sou o último a defender que não tem importância. Mas a vida é, também, a possibilidade de manter esse profundo respeito por nós próprios e pelos outros que caracteriza a essência do Homem. Julgo que, muitas vezes, nos enganamos profundamente sobre as motivações humanas. Pensamos que os indivíduos se interessam exclusivamente pelo bem-estar material quando a verdade é que buscam também algo de transcendente, algo que dê sentido às suas vidas para além dos reveses ou, simplesmente, das vicissitudes do quotidiano. Muitas vezes, encontram esse "mais", que é difícil de definir, na religião e, num estudo magnífico que ando a ler no meu Kindle ("Moral Clarity"), a filósofa norte-americana Susan Neiman vê nesta demanda uma das razões do fundamentalismo religioso e até do terrorismo – que não deixa de ser explicável pelo facto de ser eminentemente criticável. Assim, consigo perfeitamente compreender o apelo de Deus, como faz o Francisco, como essa necessidade de desejarmos alcançar algo que esteja para além duma existência mesquinha e egoísta e que nos proporcione uma espécie de conforto moral. Para além de que, como dizia a minha cunhada Vera, quando perdemos alguém de muito querido, acreditarmos no céu dá-nos a maravilhosa consolação de sabermos que poderemos um dia reunir-nos com ele. Não é a minha via; deixou de o ser há muito tempo. Mas é sem jactância, antes com melancolia, que o digo.

Em suma, acredito profundamente que, mesmo em condições terríveis, vale a pena viver. Porque viver é mais do que viver bem. O homem que, com as suas próprias mãos, desenterrou uma menina soterrada nos escombros do terramoto sentiu certamente uma felicidade que não é susceptível de ser avaliada por puros critérios materiais. Para além disso, levando ao absurdo o raciocínio do professor da Nanuz (ver o artigo do Kiko), o melhor seria nem sequer nos preocuparmos em ajudar os haitianos. Na verdade, muitos deles morrerão inevitavelmente, e a curto prazo, por falta de alimentos, cuidados de saúde ou nas rixas entre grupos rivais de malfeitores armados (o que já está a acontecer em certos casos de pilhagem). Mas a verdade é que esse professor não tem razão. A ajuda conta, mesmo se não deve traduzir-se em meros auxílios dados com desprezo, mas permitir aos seus beneficiários que se organizem e decidam autónoma e responsavelmente da forma como a utilizarão – dando-lhes um sentido de responsabilidade e, mais uma vez, de dignidade, que a simples distribuição de benesses (alimentos, medicamentos), se bem que necessária em tempos de crise aguda, não permite. Daí, aliás, o sucesso do microcrédito, do Grameen Bank e de Muhammad Yunus.

O outro aspecto que me impressionou – talvez ainda mais – nas palavras do Francisco foi o seu desalento relativamente à possibilidade de mudar o mundo. E, principalmente, a sua recusa, que só este desânimo permite compreender mas não justificar, de encorajar os jovens de hoje, os nossos filhos, a tentá-lo. Sei, como diz, que o faz por boas razões; para lhes não dar, mais tarde, motivos de tristeza e de frustração. Mas isso não chega. Atrevo-me mesmo a dizer que eles não estão dispostos a desistir dos seus ideais por terem medo de não os verem concretizados.

Porque o facto de as pessoas terem nascido do outro lado da ilha, nas suas palavras, só pode constituir uma razão para tentarmos alcançá-las e contribuir para proporcionar-lhes, dentro da medida das nossas possibilidades individuais, mesmo que ínfimas, um futuro melhor. O facto de a nossa geração não o ter conseguido – talvez porque, depois de termos perdido algumas erradas ilusões da nossa juventude, fundadas no marxismo, leninismo, maoismo e outros "ismos" parecidos, que nos levaram a acreditar que tínhamos que matar meio mundo em favor da outra metade; ou seja, de termos sacrificado os nossos ideais nos altares das ideologias; mas esse foi um caminho que, pessoalmente, sempre recusei e desprezei – é apenas mais uma razão para que acreditemos que o consiga essa nova geração que nos substitui – e tão bem! Fico especialmente espantado e orgulhoso quando vejo a minha filha Teresa (e tantas outros jovens da sua idade) passarem parte das suas férias, quando podiam estar na praia, na Tanzânia, entre meninos pobres, muitos deles com fome, a ajudá-los, ensinando-lhes matemática e inglês. Tenho a certeza de que a minha sobrinha Sofia também o fará, se tiver oportunidade; e que o meu filho Diogo, que provavelmente preferirá passar um ano a percorrer a América, se preocupa com estas coisas e contribuirá, da forma que for a sua, para minorar a angústia do mundo. É que, às vezes, basta simplesmente um donativo, outras, uma actividade pessoal ou social. Assistir um doente no hospital é tão importante como criar a fundação Bill Gates. Não devemos esquecer que o sofrimento do mundo começa aqui mesmo ao nosso lado. Uma pessoa como Isabel Jonet, que se encarrega do Banco Alimentar, contribui de uma forma notável para esse objectivo.

Não acredito que seja nossa obrigação poupar aos nossos filhos "o sofrimento, a frustração, que resulta do contacto com o insucesso, com a intolerância, com a indiferença". Mais: não acredito que seja isso que eles nos pedem. Acho que, nesse aspecto, querem ser como nós: descobrir o seu caminho, tacteando, errando, batendo com a cabeça nas paredes, fazendo asneiras enormes e corrigindo-as, sofrendo, mas, ao mesmo tempo, fazendo coisas magníficas de que se orgulharão para sempre. Em suma, estando vivos. E sendo jovens.

Compreendo a pena, o sofrimento, das pessoas que, como o Francisco, já viveram muito tempo e pensam que a experiência mostra que não há caminhos. Mas não é verdade. Cada geração refaz o mundo à sua maneira. O facto de a nossa não ter conseguido, em parte, o que se propunha, como não o conseguiram a dos nossos pais ou a dos nossos avós, não significa que a que vem aí agora não seja capaz de criar aquilo de que não fomos capazes. E estas coisas de falhar ou não falhar são relativas. A geração dos nossos pais evitou, na Europa, as guerras que, durante séculos, dilaceraram o Continente, e legou-nos a paz. Em Portugal, os nossos pais e nós desfizemo-nos do salazarismo e do marcelismo e legámos aos nossos filhos a democracia. E mesmo se é a democracia de Sócrates e Ferreira Leite é muito melhor, incomparavelmente melhor, do que o que havia antes.

Tenho uma imensa esperança na geração dos meus filhos. E não fico abatido nem me sinto desencorajado ao pensar que, com a sua dose de coisas boas, terão também a sua parte de sofrimento. É isso a vida; e é por isso que vale a pena viver.

Quanto a Deus, acho que não é para aqui chamado. Quando, na Europa das Luzes, se discutia o terramoto de Lisboa, havia gente que dizia que Deus, a existir, ou era mau, ou estava distraído. Para mim, a solução é mais simples: Deus não existe. E não o digo com altivez mas, pelo contrário, com a simples tristeza de quem perdeu a fé. É sobre nós que recai a responsabilidade pelo mundo. Mais uma razão para não descrermos.

Blogue do Francisco aqui:
http://comonoinicio.blogspot.com/

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A casa das Caldas - a nossa casa

Uma entrada no blogue do Francisco fez-me lembrar a casa das Caldas. Há dela uma fotografia, num livro de Vasco Trancoso, que mostra a Rua Camões como seria nos anos quarenta ou cinquenta. Mas não fiquei com nenhuma fotografia privada e a casa desapareceu, imolada no altar da especulação imobiliária caldense e da ganância do seu Presidente da Câmara – mesmo se por muitos erros nossos, má fortuna e pelo amor ardente que a Mãe dedicava a todos os filhos – substituída por um bloco de apartamentos que também atingiu a outra casa do Avô, com arestas a apontar para fora, numa espécie de polígonos convexos e concavidades, aqui um, ali outra, amontoados uns em cima dos outros. E tudo isto, na esquina da Rua de Camões com a Rua do Parque, em tons de amarelo deslavado, a dominar a entrada para o Parque da minha infância, perto do Casino, lugar da minha juventude bendita, dos meus namoros, da minha felicidade.

Este horror urbano tomou o lugar duma casa de dois andares, com janelas de guilhotina nas fachadas, com um portão de madeira em tons avermelhados a abrir para um pátio em calçada portuguesa que dirigia para umas escadas de pedra que conduziam à porta da entrada. Vivíamos no segundo andar; na época em que lá habitámos, o andar de baixo tinha sido dividido em dois apartamentos alugados, um deles a um alfaiate que cedo deixou de pagar renda, o outro já não sei a quem. Esta é a verdadeira casa da minha infância e adolescência – embora tenha passado mais tempo na casa, um pouco mais acima na Rua do Parque, onde o meu avô viveu enquanto a primeira se encontrava arrendada a uma velha senhora, a Dona Maria de Jesus, viúva de um homem coxo que, enquanto vivo, nos metia medo embora fosse provavelmente gentil e boa pessoa. É desta casa, da nossa casa, que fala o Francisco, numa recente entrada no seu blogue. No seu sótão, gelado, passou ele bons momentos da sua adolescência e juventude. Na enorme casa de jantar, na sala de estar, no quarto que partilhava com o meu irmão João e que, como era habitual nas casas dessa época, comunicava, de enfiada, com o quarto do Avô – e ainda me lembro do seu ressonar, numa época em que, ao contrário do que acontece hoje, encarávamos essas coisas como naturais: nunca me passaria pela cabeça queixar-me do barulho do sono ruidoso do Avô ao contrário dos meus filhos que abandonam precipitadamente o quarto em que dormimos juntos quando me acontece a mim, segundo eles dizem, que eu não acredito, ter um sono mais barulhento – nessa antiga vivenda, de que conheci todos os cantos, passei a maior parte dos meus tempos felizes de menino e moço que não foi levado de casa dos seus Pais.

Não vou contar a história de como ela desapareceu e de como, numa sucessão de inevitáveis acontecimentos a sucederem-se uns aos outros, o que era a nossa casa se transformou nessa obra embargada por vários anos e cujos andares, há pouco tempo ainda, não estavam habitados. Repito: erros, fortuna, amor (Camões sabia tudo!) Do conjunto de casas que o meu bisavô adquiriu, com o dinheiro ganho na Pastelaria Machado, que fundou e dirigiu até quase ao fim da sua vida, nada ficou. O primo João José vendeu as dele; a minha Mãe perdeu as suas.

Limito-me a dizer que amava aquela casa; que ainda hoje sonho com ela e nela vejo a Mãe, o Pai, o Avô (a Avó, pessoa também tão importante na minha vida, está ligada a outra casa, também ela linda, mas a meio da encosta da serra, na Covilhã, a olhar para o vale e, ao longe, para a Serra de Alpedrinha), os meus irmãos. Há um poema de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos (“Aniversário”) que me persegue como se fosse o relato da minha própria vida. Nele se refere a “casa antiga”. E depois, diz o poeta: “O que eu sou hoje é terem vendido a casa / É terem morrido todos.” Eis, afinal, como me sinto porque esse era “o tempo em que festejavam o dia dos meus anos”, quando a casa se enchia de gente, a mesa se engalanava, e da cozinha vinham os cheiros e os barulhos próprios dos dias de festa – o tempo cuja memória me acompanha e estrangula porque, afinal, é impossível voltar atrás e ter toda essa gente comigo outra vez.

Vivo com a felicidade de ter criado, em torno de mim, uma família que agora se estende às duas netas que já nasceram. Mas falta-me essa casa. Era onde gostaria de estar com eles, mesmo com o frio, mesmo com as camas que tinham que ser aquecidas com botijas de água quente, mesmo com as casas de banho onde, por vezes, a água corria sem pressão; mas com a grande cozinha e o lugar previsto para uma salamandra que deveria vir de casa da minha Avó mas nunca chegou a ser colocada. E os sofás, e as camas Dona Maria, alguns armários dos "Oliveira", os cobertores de papa debaixo dos quais nos aquecíamos nas noites de Inverno. Falta-me a casa, como algo de carnal, como um pedaço de mim que me foi tirado. O disparate é que nunca voltará a ser nossa; nem sequer a existir, porque foi destruída, as pedras tiradas uma a uma, as portas despedaçadas, as janelas partidas, o pátio violado. Triste, triste...

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A lei sobre o casamento homossexual - reflexões finais

A Trezzu pediu-me para escrever sobre a recente lei que aprovou, entre nós, o casamento homossexual. A minha opinião sobre este assunto é conhecida. Por um lado, aceito perfeitamente que existam pontos de vista contraditórios sobre matérias como esta. Por outro, parece-me hipócrita vir defender o «não» ao projecto de lei apresentado pelo Governo e finalmente aceite pelo Parlamento, dizendo que o assunto não é urgente nem prioritário (porque não? Para os interessados, deve haver poucos assuntos com a mesma importância) ou argumentando com uma eventual inconstitucionalidade da lei por não admitir também a adopção por casais homossexuais.

Entenda-se bem. Esta última atitude é puro fingimento na boca dos que se opõem ao casamento homossexual. (É perfeitamente natural nos que defendem casamento e adopção: eis-me, por uma vez sem exemplo, a apoiar uma posição do Bloco de Esquerda). Com efeito, o que pretendem aqueles é que a impossibilidade da adopção venha a ferir de morte o projecto aprovado e a adiar – para as calendas gregas! – a aprovação do próprio casamento homossexual. Mera manobra dilatória porque é evidente que o que os preocupa não é que os casais homossexuais não possam adoptar. Isso, pelo contrário, até lhes agrada. O que os preocupa é que haja casais homossexuais. Qualquer argumento é bom para acabar com essa «aberração». Daí a hipocrisia.

E sinto-me obrigado a falar novamente de Alberto Gonçalves, o meu querido cronista de serviço, que volta a brandir armas contra esta (segundo ele) inaceitável química social tendo o cuidado de dizer que, pessoalmente, é a favor desta medida mas acha, simplesmente, que não compete ao Estado alterar instituições seculares. Peço desculpa mas aceito mais facilmente os que se pronunciam claramente pelo «não» do que aqueles que pretendem enroupar a sua rejeição em trajes de máscara. Esta ideia de que o direito deve seguir cegamente a opinião das maiorias ou as tradições multisseculares é bastante peculiar. A aceitá-la, estaríamos hoje ainda a consagrar a pena de morte ou a escravatura. A verdade é que cabe ao Estado, dentro de certos limites, acompanhar a vida – conformando-se com os valores que os novos tempos vão tornando aceitáveis e, na maioria dos casos, desejáveis. Aconteceu assim, por exemplo, com a liberalização do divórcio que ninguém de bom senso agora contesta, embora possamos opor-nos a disposições particulares mesmo se bem-intencionadas duma nova lei, principalmente pelos aspectos negativos que pode ter sobre a protecção da parte mais fraca, normalmente a mulher. Nada impede o Estado de actuar em matéria de usos e costumes, sem que nisso se veja uma forma de controlo ou de experiência social. Só não deve fazê-lo de forma cega mas pesando cuidadosamente e em cada caso concreto os argumentos contra ou a favor de umas e outras posições. A verdade é que as coisas evoluem. E a definição de casamento não deve ser considerada como gravada em pedra. É estranho que sejam aqueles que criticam os «relativistas» a pretender que o Estado não possa intervir neste e noutros domínios.

O que deixei dito, contudo, representa apenas o que pode chamar-se uma opinião negativa. Isto é, limitei-me, até agora, a contestar opiniões alheias sem deixar claro aquilo em que acredito. Posso facilmente, quiçá justificadamente, ser acusado de cobardia.

Assim, gostaria também de exprimir pela positiva a minha opinião sobre estes assuntos controversos.

Comecemos pelo casamento. Não vejo qualquer razão para o limitar a casais heterossexuais. O casamento é uma instituição legal; as suas condições e os seus efeitos são determinados nas constituições e nos códigos civis de cada país. Obviamente que certas igrejas pretendem legitimamente regulamentar esta instituição e têm todo o direito de fazê-lo. Mas não há razão nenhuma para que o Estado aceite essas definições ou esses entendimentos assim como o que quer que venha a ser dito pelo legislador não alterará nem um pedacinho as convicções religiosas de quem quer que seja. O Estado tem todo o direito de definir o casamento da forma que bem entender. Deve prestar atenção às opiniões prevalecentes na sociedade que rege mas não é escravo delas. Assim, por exemplo, há razões que nos podem levar a proibir a poligamia ou o incesto. No primeiro caso, podemos argumentar com o respeito da dignidade da mulher, que não deve ser colocada em situação de partilha, embora o escândalo provocado pelos sucessivos casamentos do actual Presidente da África do Sul seja um claro exemplo duma atitude hipócrita, paternalista, colonialista e inaceitável. No caso do incesto, são questões que tocam a própria definição da sociedade tal como a entendemos entre nós (e não temos que pedir desculpa por a entendermos dessa forma embora nada nos autorize a impor a nossa concepção aos que pensam de forma diferente) que nos levam a proibi-lo.

Pelo contrário, não há nenhuma razão, excepto uma concepção particular do que deve ser o casamento e, por isso, por ser particular, não oponível aos que não concordam connosco, que nos leve a proibir que dois homens ou duas mulheres se casem. Para apreciar isto, é absolutamente indiferente saber, como diz Alberto Gonçalves, se são sete ou oito os países que aceitam esta posição: é, aliás, curioso verificar que os principais opositores do "relativismo" são os primeiros a recorrer a estes dados estatísticos claramente relativos quando se trata de levar água ao seu moinho. Essas mulheres e esses homens não fazem mal a ninguém; a sua decisão é livre, pensada, generosa. Não se vê por que deveria o Estado recusar-lhes a aceitação que solicitam. É verdade que os mesmos efeitos práticos poderiam conseguir-se através doutros institutos, como uma união juridicamente reconhecida; mas isto passa ao lado do essencial que é a necessidade – por uma questão de dignidade – que sentem os casais homossexuais de serem tratados nas mesmas condições que os casais heterossexuais. É, afinal de contas, o seu empenho no reconhecimento duma igual respeitabilidade e nobreza.

Para além de que se trata, como mostrou Paulo Pinto de Albuquerque em recente artigo no Diário de Notícias (e são tão poucas as oportunidades que tenho de concordar com este articulista que esta merece ser salientada), do reconhecimento de um direito. É por isso que recuso o referendo. O reconhecimento de direitos fundamentais não deve estar sujeito à vontade das maiorias, parlamentares ou populares.

E, com isto, chego à questão da adopção. Durante muito tempo, pareceu-me que devia seguir-se, nesta matéria, um princípio de precaução. Com efeito, não há nenhum direito a adoptar; isto é, não se pode dizer que casais, homossexuais ou heterossexuais, tenham um tal direito. Há, quando muito, um direito a ser adoptado. Ou seja, em matéria de adopção, o que conta é apenas o direito da criança, do adoptado. A minha defesa daquele princípio de precaução tinha a ver com esta posição. Não se sabendo se a adopção por casais homossexuais prejudicaria ou não as crianças adoptadas, uma certa reserva nesta matéria parecia-me perfeitamente defensável.

A verdade, contudo, é que os estudos de que dispomos, embora escassos, não permitem concluir por quaisquer danos provocados a crianças adoptadas por casais homossexuais (para além do facto de nada impedir um homossexual solteiro de adoptar uma criança e de, depois, encetar uma relação homossexual ou mesmo, quando o casamento passar a ser permitido, de se casar – remeto novamente para o artigo de Paulo Pinto de Albuquerque, que refere decisões jurídicas importantes a este respeito). Por isso, tenho evoluído no sentido de considerar que a adopção por casais homossexuais também deve ser admitida. É certamente melhor ser filho ou filha de dois pais ou de duas mães do que não ser filho de pessoa nenhuma. Mas não me choca – a Trezzu fala de um necessário período de adaptação das mentalidades – que a adopção não seja permitida desde já. Parece-me evidente que ela será uma consequência necessária da permissão do casamento homossexual; mas também não me repugna não apressar as coisas.

E pronto! Espero ter respondido ao desejo da Trezzu. Gostaria apenas de terminar dizendo que me comove a ideia de tornar possível o casamento de determinadas pessoas do mesmo sexo que estão juntas há muito tempo e para as quais esta lei representa a possibilidade de alcançar, nas suas vidas, uma plenitude de que já desesperariam. Acima de tudo, é isso que importa: a possibilidade de contribuirmos para que mais gente no mundo possa ser feliz. Esta lei vai nesse sentido.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Ainda os livros electrónicos - Desacordo com Francisco José Viegas

Ele há pessoas inteligentes que dizem grandes asneiras. Francisco José Viegas é indubitavelmente inteligente e, para além disso, um bom escritor de que gosto muito, um excelente director de uma revista notável ("Ler") que só não assino por ter medo que acabe bruscamente. Contudo, o seguinte passo do seu blogue, “A Origem das Espécies”, é um disparate pegado. Não há quase nada que se aproveite neste texto escrito certamente em hora de menor inspiração.

Quando os entusiastas do e-book festejam o lançamento de mais um novo leitor de livros electrónicos, tenho dúvidas. Tenho dúvidas porque sou conservador – e tenho dúvidas porque tenho receio da pirataria informática que afetará (sic: acordo ortográfico) os direitos de autor e a indústria do livro. Ontem, o CM (Correio da Manhã, presumo) noticiou: o título mais pirateado das bibliotecas digitais foi o Kamasutra, com cem mil a 250 mil cópias falsas. Neste caso não há problema com os direitos de autor, evidentemente – mas o top das falsificações revela o perfil do pirata de livros: "softporno", informática, bricolage (não estou a brincar) e em oitavo lugar vampiros e Stephenie Meyer. Ainda são piratas de pacotilha. A "The Economist" diz que até 2011 se vão vender 18 milhões de leitores de e-books. É fazer contas, piratas.

O que falta aqui, como qualquer espírito, mesmo que muito distraído, verificará, é uma comparação com as vendas de livros em papel – que seriam os verdadeiros livros, os bons, os próprios, na opinião de Francisco José Viegas. Será que a situação é muito diferente? Não conheço os números relativos ao Kamasutra mas os de Stéphanie Meyer não enganam. Na Amazon papel, ela também foi uma das autoras mais vendidas. Assim, parece que o problema não está na forma mas no conteúdo. É desagradável que as pessoas prefiram livros de vampiros à Comédia Humana, de Balzac. Mas isso nada tem a ver com os e-books. Pelo contrário, na Amazon, neste detestável formato electrónico, é possível comprar quase todas as obras de Balzac, todas as obras de Dickens, a maioria das de Henry James, os sete romances de Jane Austen, e uma enorme quantidade de outros grandes romances de outros grandes autores, por menos de dois euros. Repito: todas (ou quase todas) as obras destes escritores (mais Conrad, Dostoiésvski, Tolstói, Platão, Santo Agostinho, e tantos, tantos, outros) por menos de dois euros. O que não acontece, evidentemente, nas edições em papel.

Claro que Francisco José Viegas se refere à pirataria de livros - e não às suas vendas, embora o seu texto não seja imediatamente claro a este respeito. (Piratas ou não, esses são os livros que se lêem). Compete à indústria do livro, como à da música, encontrar formas de evitar esse estado de coisas. Com a certeza de que a solução não é a de colocar entraves a esta nova maneira de vender livros. É como se, no tempo de Gutenberg, alguém se tivesse lembrado de impedir a impressão por causa da enorme qualidade dos manuscritos iluminados.

Chamem-me conservador. É por isso que considero magníficos os livros electrónicos. Francisco José Viegas dá a impressão, certamente falsa para quem o conhece, de que prefere manusear os livros. Eu prefiro lê-los. Em papel ou no Kindle. Não importa.

Já posso falar do meu Kindle

Já posso falar do meu Kindle... Até agora, antes do Natal, não podia confessar que o presente das minhas filhas, filho, genros e netas, tinha sido o novo e-book da Amazon que comprei, com medo de que se esgotasse, em Novembro. O que me permitiu ter adquirido, ao longo destes dois meses, e através dum simples toque numa das teclas da minha nova máquina, uma enorme quantidade de livros em formato electrónico que agora me acompanham para toda a parte: livros de história e filosofia, romances, biografias, actualidade política e internacional. Estou apenas à espera que os editores franceses e portugueses se deixem de tretas e compreendam que aqui está o futuro do livro; um livro decerto diferente mas um livro, ou seja, uma forma de transmitir saberes, sensações, notícias e informações por forma escrita, através dessa magnífica vivência do que se chama «leitura» - ver Uma História da Leitura, de Alberto Manguel, para perceber como este conhecimento peculiar, esta maneira de viver, não está necessariamente ligada a uma forma particular de livro, mas à simples experiência de ler. O Kindle não tem nada a ver com um computador. Em primeiro lugar, não tem luz própria; em segundo, manuseia-se como um verdadeiro livro com a única excepção de que se passam as páginas através dum botão em vez de as folhear. Reconheço que, na actual edição (mas já aí vem outra), é como um filme a preto e branco comparado com um filme a cores: em certos livros, com quadros, mapas ou fotografias, a qualidade da imagem perde-se. Em contrapartida, levamos connosco, em viagem, mil obras que podemos consultar através dum simples click. E podemos saltar dumas para as outras com a facilidade de quem desaperta um botão da camisa. Para além disso, tem um dicionário de inglês incorporado, que permite verificar o significado das palavras, e a possibilidade de anotarmos o livro onde e como quisermos.

Acreditem-me! Eu comprava, sem exagero, mais de cem livros por ano. Não sou, portanto, um mero leitor ocasional. Ora, encontro-me completamente rendido ao meu Kindle e já estou a pensar na altura de comprar o novo modelo. Raras vezes um presente me deu tanto prazer. O Kindle é feito para quem gosta de livros; não para aquelas pessoas para as quais os livros são um mero adorno destinado a embelezar as prateleiras caseiras, nem sequer para aqueles que preferem (e é bonito) manusear primeiras edições. O Kindle é feito para quem gosta de ler; de ler apenas. Assim, eu com o meu Kindle – juntos! A simples ideia de o perder deixa-me doente. É melhor do que o i-Pod onde registei toda a minha discoteca. Guardo-os e cuido-os. Com uma certa forma de amor.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Avaliação dos professores

Não conheço os pormenores do acordo assinado entre o Ministério da Educação e a maioria dos sindicatos dos professores que põe fim a um conflito que durava, segundo o Público, há quatro anos. Limito-me a dizer que era possível. Isto contraria – e agora dirijo-me ao meu irmão Francisco – as ideias daqueles que consideravam que a FENPROF e os restantes sindicatos eram incapazes duma atitude construtiva. E reforça a minha ideia de que há matérias nas quais o diálogo é indispensável.

António Guterres é o grande responsável pelo mau ambiente que causa em Portugal qualquer referência a uma decisão tomada em diálogo com os interessados. Mas isso é uma mentira. Guterres não pretendia dialogar para decidir; para ele, infelizmente, o diálogo era apenas uma forma de contornar a decisão – de a adiar, de não decidir. Não é dessas conversas que precisamos. Aliás, essas (e outras) atitudes de Guterres conduziram-nos directamente a Sócrates e ao seu estilo autoritário. Isto, apesar da admiração e estima que o actual Primeiro-Ministro nutre pelo seu predecessor socialista.

Não se faz uma reforma do sistema educativo contra os professores e professoras; como não se faz uma reforma do sistema de saúde contra os médicos (as) ou enfermeiros (as). Há coisas, na sociedade moderna, nesta sociedade de risco de que todos falam e mal conhecem, que precisam de ser negociadas. Não apenas porque é democrático agir dessa forma; mas sobretudo porque só assim as decisões são eficazes.

Repito: afinal, o acordo com os professores – mesmo com o sindicato comunista, Francisco – era possível. O que não se compreende é que tenha durado tanto tempo – e obrigado à substituição da equipa do Ministério da Educação – a ser conseguido. Mas, na verdade, todos sabemos porque isso aconteceu. Em fase de maioria absoluta, o Primeiro-Ministro teimou numa proposta que sabia inaceitável para todos os interessados. Quando se encontrou em maioria simples no Parlamento, as suas instruções foram outras. Alcançar um acordo a todo o custo tornou-se o objectivo principal – não fossem os partidos da oposição roubar-lhe o lugar na ribalta. É triste mas, vindo de quem vem, não surpreende.

Guardo o eco das palavras de Isabel Alçada. Depois de tanto disparate, o que é preciso é que as escolas se empenhem na educação – efectiva – dos seus alunos. Parece elementar mas durante estes anos todos estivemos infelizmente preocupados com outras coisas: com os egos de uns e de outros, com saber quem tinha razão numa discussão de que ela estava ausente, com insistências, ordens e imposições. Ficámos com a sensação de que havia uma entidade – o Ministério da Educação – que não se preocupava com o destino (para já não falar do bem-estar) dos professores, afinal uma parte importante dos seus “clientes”; e que estes, por sua vez, se desinteressavam dos verdadeiros afectados por tudo isto: os alunos que têm direito a uma educação de qualidade. É com pena que o digo mas mesmo o meu irmão Francisco achava que, já que não era possível reformar o sistema, o que era necessário era torná-lo mais barato. E, por isso, apenas por isso, apoiava Maria de Lurdes Rodrigues. Conheço a antiga Ministra da Educação e tenho a certeza de que ela foi uma espécie de peão nestas andanças, a dançar ao ritmo do Primeiro-Ministro. Foi pena. Uma mulher como ela merecia melhor sorte. Mas o que defendeu durante quatro anos veio agora a revelar-se, não apenas errado, mas desastrado.

Começa um novo período. Nem tudo serão rosas, Senhor! Mas, pelo menos, criaram-se as condições que evitam as mais fortes picadas dos espinhos. Esta noite, deu-se um pequeno, mas importante, passo em frente. Ficámos todos responsáveis pela qualidade do nosso ensino. Ainda bem!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Un homme est mort - Philippe Séguin (21 de Abril de 1943 - 7 de Janeiro de 2010)

Admiro os homens que se fazem notar pela sua independência e por profundas convicções, de uma têmpera que os torna incapazes de se dissolverem na mesquinhez do quotidiano. Philippe Séguin, homem político francês de que a maioria dos portugueses pouco deve ter ouvido falar, fazia parte dessa raça. Que importa que fosse gaulista, que tenha apoiado Chirac, ou mesmo que fosse amigo de Sarkozy? Era um homem que encarnava uma ideia, uma concepção, da França, principalmente, de la République, da política, da Europa – as suas dúvidas sobre o caminho tecnocrático actualmente seguido pela União Europeia obrigavam-nos a ouvi-lo com intensa atenção. Era de direita? Provavelmente, sim; votaria gaulista e não socialista. Mas que interesse tem isso perante uma personalidade maior do que a vida, conhecido pelas suas zangas monumentais, pelas suas emoções à flor da pele; célebre, afinal, por ser homem e não um boneco de palha, um mero espantalho plantado na seara dos pobres homens políticos que o rodearam.

A sua morte deixou-me profundamente comovido. Não o conhecia, claro; mas acompanhei, de longe, a sua carreira política e pessoal. Nascido na Tunísia, órfão muito cedo dum pai herói da II Guerra Mundial (a quem foi conferida, a título póstumo, uma alta condecoração francesa mas não a Légion d’honneur, o que levou Séguin a recusá-la quando pretenderam atribuir-lha, porque considerava que tudo o que tinha feito não se comparava ao sacrifício do seu Pai), era um filho da República, pupilo da Nação, que, neste aspecto, e até pelos seus afecto mediterrânicos, lembrava Albert Camus. Com os seus mais de cem quilos, fumador inveterado, amante da boa comida e, presumo, da boa bebida, Séguin impressionava pela sua inteligência e, sobretudo, pela sua convicção. Dizem que Mitterrand o admirava já antes do célebre debate que os opôs a propósito do Tratado de Maastricht. É natural. Um homem como Séguin tinha essa capacidade de ser tão admirado pelos seus opositores como pelos seus comparsas.

Un homme est mort... Quer dizer: un vrai... Quando isso acontece, a resposta é um silêncio comovido, uma homenagem contida, aquela que ele, que era contudo dado a excessos e a desmesuras, afinal merece.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Mãe

A minha Mãe morreu há mais de três anos. Dizer que não houve um único dia em que não tenha pensado nela, falado com ela, conversado com ela, só peca por defeito. Faço-o várias vezes por dia e ela povoa os meus sonhos, como quem dorme na minha cama, no dizer do fado da Amália. O amor custa a morrer; provavelmente não morre nunca. Ainda bem. Sentir a Mãe a meu lado ajuda-me a viver melhor; o seu exemplo de despojamento e dedicação ensina-me o que deve ser a vida. Obrigado.

Bom Ano

Pela segunda vez na minha vida passei a meia-noite de 31 de Dezembro sozinho. Não me lamentem. Foi decisão minha e decisão, não apenas assumida, mas agradável.

Em contrapartida, jantei com a minha filha Trezzu na Colina (Obrigado Joaquim, obrigado Rocha, hoje os orgulhosos donos de um restaurante onde fui pela primeira vez com os meus Pais, há quase quarenta anos: a amizade é coisa que fica muito para além do meu exílio em Bruxelas). Jantar formidável, querido, uma daquelas ocasiões que, segundo penso, não esqueceremos facilmente. O que passámos juntos no final deste ano justifica este encontro, que foi uma comunhão. (Teria jantado e passado o ano com filhas, filho e netas, genros e acrescentos, se não fosse o facto de todos os outros estarem ocupados fora de Lisboa, em lugares tão variados como aqui ao perto no Carregado, a meio caminho, em Trás-os-Montes, ou longe em Bruxelas).

Em todos os anos, há um dos nossos filhos que precisa mais de apoio, de ajuda, de ânimo. No final de 2009, foi a Trezzu. Estive aqui para ela, como estarei para qualquer outra ou outro, e ainda para qualquer das netas, se precisarem. E gostaria de deixar duas palavras especiais, uma para a Xá, a minha neta de quase quatro anos, a ternura que ocupa a minha vida e que, todos os dias, me enche duma alegria indescritível; outra para a Constança, de apenas quatro meses, mas que, com a serenidade de Buda (é o que o João lhe chama), nos encanta pela sua serenidade plena, embora a recusa de beber qualquer leite que não seja o da Mãe não augure, em futuros próximos, noites descansadas.

À medida que vou envelhecendo, sinto cada vez mais que é este amor pelos meus que constitui o aspecto mais importante da minha vida – o melhor de mim, a minha forma particular de estar no mundo. E junto às minhas filhas, ao meu filho e às minhas netas, os meus genros Diogo e João, o namorado da Trezzu, Helder, e, finalmente, a namorada do Dico, Mimi. Um universo! Gosto de todos vós. A minha vida é infinitamente mais rica por vos ter comigo. Era isto que gostaria de vos dizer.

Bom Ano a todos. Encontrar-nos-emos, de novo, juntos, ou separados fisicamente, mas sempre juntos na nossa ternura e no nosso amor, no próximo dia 31 de Dezembro. Até lá, como dizia o Raul Solnado, “façam o favor de ser felizes”.