sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A casa das Caldas - a nossa casa

Uma entrada no blogue do Francisco fez-me lembrar a casa das Caldas. Há dela uma fotografia, num livro de Vasco Trancoso, que mostra a Rua Camões como seria nos anos quarenta ou cinquenta. Mas não fiquei com nenhuma fotografia privada e a casa desapareceu, imolada no altar da especulação imobiliária caldense e da ganância do seu Presidente da Câmara – mesmo se por muitos erros nossos, má fortuna e pelo amor ardente que a Mãe dedicava a todos os filhos – substituída por um bloco de apartamentos que também atingiu a outra casa do Avô, com arestas a apontar para fora, numa espécie de polígonos convexos e concavidades, aqui um, ali outra, amontoados uns em cima dos outros. E tudo isto, na esquina da Rua de Camões com a Rua do Parque, em tons de amarelo deslavado, a dominar a entrada para o Parque da minha infância, perto do Casino, lugar da minha juventude bendita, dos meus namoros, da minha felicidade.

Este horror urbano tomou o lugar duma casa de dois andares, com janelas de guilhotina nas fachadas, com um portão de madeira em tons avermelhados a abrir para um pátio em calçada portuguesa que dirigia para umas escadas de pedra que conduziam à porta da entrada. Vivíamos no segundo andar; na época em que lá habitámos, o andar de baixo tinha sido dividido em dois apartamentos alugados, um deles a um alfaiate que cedo deixou de pagar renda, o outro já não sei a quem. Esta é a verdadeira casa da minha infância e adolescência – embora tenha passado mais tempo na casa, um pouco mais acima na Rua do Parque, onde o meu avô viveu enquanto a primeira se encontrava arrendada a uma velha senhora, a Dona Maria de Jesus, viúva de um homem coxo que, enquanto vivo, nos metia medo embora fosse provavelmente gentil e boa pessoa. É desta casa, da nossa casa, que fala o Francisco, numa recente entrada no seu blogue. No seu sótão, gelado, passou ele bons momentos da sua adolescência e juventude. Na enorme casa de jantar, na sala de estar, no quarto que partilhava com o meu irmão João e que, como era habitual nas casas dessa época, comunicava, de enfiada, com o quarto do Avô – e ainda me lembro do seu ressonar, numa época em que, ao contrário do que acontece hoje, encarávamos essas coisas como naturais: nunca me passaria pela cabeça queixar-me do barulho do sono ruidoso do Avô ao contrário dos meus filhos que abandonam precipitadamente o quarto em que dormimos juntos quando me acontece a mim, segundo eles dizem, que eu não acredito, ter um sono mais barulhento – nessa antiga vivenda, de que conheci todos os cantos, passei a maior parte dos meus tempos felizes de menino e moço que não foi levado de casa dos seus Pais.

Não vou contar a história de como ela desapareceu e de como, numa sucessão de inevitáveis acontecimentos a sucederem-se uns aos outros, o que era a nossa casa se transformou nessa obra embargada por vários anos e cujos andares, há pouco tempo ainda, não estavam habitados. Repito: erros, fortuna, amor (Camões sabia tudo!) Do conjunto de casas que o meu bisavô adquiriu, com o dinheiro ganho na Pastelaria Machado, que fundou e dirigiu até quase ao fim da sua vida, nada ficou. O primo João José vendeu as dele; a minha Mãe perdeu as suas.

Limito-me a dizer que amava aquela casa; que ainda hoje sonho com ela e nela vejo a Mãe, o Pai, o Avô (a Avó, pessoa também tão importante na minha vida, está ligada a outra casa, também ela linda, mas a meio da encosta da serra, na Covilhã, a olhar para o vale e, ao longe, para a Serra de Alpedrinha), os meus irmãos. Há um poema de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos (“Aniversário”) que me persegue como se fosse o relato da minha própria vida. Nele se refere a “casa antiga”. E depois, diz o poeta: “O que eu sou hoje é terem vendido a casa / É terem morrido todos.” Eis, afinal, como me sinto porque esse era “o tempo em que festejavam o dia dos meus anos”, quando a casa se enchia de gente, a mesa se engalanava, e da cozinha vinham os cheiros e os barulhos próprios dos dias de festa – o tempo cuja memória me acompanha e estrangula porque, afinal, é impossível voltar atrás e ter toda essa gente comigo outra vez.

Vivo com a felicidade de ter criado, em torno de mim, uma família que agora se estende às duas netas que já nasceram. Mas falta-me essa casa. Era onde gostaria de estar com eles, mesmo com o frio, mesmo com as camas que tinham que ser aquecidas com botijas de água quente, mesmo com as casas de banho onde, por vezes, a água corria sem pressão; mas com a grande cozinha e o lugar previsto para uma salamandra que deveria vir de casa da minha Avó mas nunca chegou a ser colocada. E os sofás, e as camas Dona Maria, alguns armários dos "Oliveira", os cobertores de papa debaixo dos quais nos aquecíamos nas noites de Inverno. Falta-me a casa, como algo de carnal, como um pedaço de mim que me foi tirado. O disparate é que nunca voltará a ser nossa; nem sequer a existir, porque foi destruída, as pedras tiradas uma a uma, as portas despedaçadas, as janelas partidas, o pátio violado. Triste, triste...