quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Ainda o casamento homossexual

Tenho alguma dificuldade em seguir certos argumentos dos opositores do chamado casamento homossexual. O artigo de Mário Pinto, no Público de hoje, é um exemplo claro.

Repare-se na forma como começa. "O casamento (obviamente de um homem com uma mulher) é uma instituição fundamental, constituinte da família biológica humana, a qual é universalmente considerada como a célula ou elemento base da sociedade". Já não me lembro da exacta denominação dos vícios lógicos, certamente denunciados por Aristóteles, que esta declaração contém. O primeiro é o de considerar que o casamento é, obviamente, o casamento de um homem e de uma mulher... Porquê? O segundo, não menos evidente, é o de afirmar, sem qualquer prova, que a "família biológica humana" (aqui definida em termos estreitos, como a união entre um homem e uma mulher) é universalmente considerada como a célula da sociedade.

Mário Pinto justifica esta afirmação dizendo que "não há dúvida nenhuma" de que de que o conceito de família, quer na Declaração Universal, quer na nossa Constituição, é o da família fundada no casamento de um homem com uma mulher. Peço desculpa por discordar mas este é precisamente o ponto sobre o qual há dúvidas.

Gostaria de deixar clara a minha posição. Para mim, a família não é (sublinho) a célula ou o elemento base da sociedade. Poderia até argumentar com Margaret Thatcher, se não me desagradasse a companhia, que a sociedade não existe: apenas existem indivíduos. Mas, mesmo que o fosse, por que é que o conceito de família deveria ser restrito a um certo tipo de família? Com base em quê? A isso, Mário Pinto responde com um "obviamente"; ou o tal "não há dúvida nenhuma"... É pouco; não chega.

Todo o seu artigo é uma petição de princípio. Dá-se como provado aquilo que deveria ser provado. É grave para um jurista. A repetição de frases como "não há qualquer dúvida" ou "como é evidente" pode contribuir para ajudar a convencer os convencidos mas não contribui para um debate sério.

Não há nada de natural no casamento. Trata-se de uma social construct, um instituto social que não tem nenhuma correspondência na "mãe" natureza - em Gaia! Duma certa forma, isso é o reconhecimento de uma das facetas do génio humano: a capacidade de criar instituições que ultrapassam os dados do mundo físico. Os animais não a possuem. O facto de a procriação apenas ser possível através da união de pessoas de sexo diferente não significa, em caso algum, que o casamento, como norma cultural, deva seguir cegamente uma tal forma. É estranho, aliás, que escritores conotados com o catolicismo venham defender estas teses. Porque, se há algo que o catolicismo sempre fez, foi subordinar a ordem natural aos imperativos da fé.

Estou de acordo que não basta falar de dignidade humana para concluir apressadamente que todos os humanos devem ter exactamente os mesmos direitos. Mas o argumento de Mário Pinto prova demais, do seu próprio ponto de vista. Porque ele significa, no fundo, que existe um momento social ou cultural determinante na definição das capacidades jurídicas (por oposição à personalidade jurídica, que essa é invariável). Consequentemente, admitirmos ou não o casamento homossexual é uma opção que nada tem a ver com pretensos dados naturais. Trata-se, pelo contrário, de uma opção política, no sentido nobre da expressão. O que é incorrecto é afirmar que "a capacidade jurídica ou a legitimidade institucional para o casamento (...) decorrem de capacidades e de legitimidades específicas" que, uma vez mais "como é óbvio", devem ser "reconhecidas exclusivamente ao casal homem/mulher, dados os fins indisponíveis da instituição casamento/família". Uma vez mais, porquê? Mário Pinto não indica qualquer argumento válido.

Nem vou comentar a última afirmação de Mário Pinto quando diz que os homossexuais não são "discriminados porque (...) podem casar, desde que o façam numa relação heterossexual, para a qual (note-se bem: palavras dele!) não são nem podem ser considerados incapazes". Aqui entra-se no domínio claro do disparate. Os gays não querem casar com mulheres, mas com homens, as lésbicas não querem casar com homens, mas com mulheres. Com frases destas, Mário Pinto junta-se ao reino das beatas, para quem essa ideia de homens andarem com homens e mulheres com mulheres é simplesmente incompreensível – provavelmente nojenta. Assim, os homossexuais não são discriminados porque podem casar com e como... heterossexuais.

Senhor Professor, tenha dó de nós.