quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A lei sobre o casamento homossexual - reflexões finais

A Trezzu pediu-me para escrever sobre a recente lei que aprovou, entre nós, o casamento homossexual. A minha opinião sobre este assunto é conhecida. Por um lado, aceito perfeitamente que existam pontos de vista contraditórios sobre matérias como esta. Por outro, parece-me hipócrita vir defender o «não» ao projecto de lei apresentado pelo Governo e finalmente aceite pelo Parlamento, dizendo que o assunto não é urgente nem prioritário (porque não? Para os interessados, deve haver poucos assuntos com a mesma importância) ou argumentando com uma eventual inconstitucionalidade da lei por não admitir também a adopção por casais homossexuais.

Entenda-se bem. Esta última atitude é puro fingimento na boca dos que se opõem ao casamento homossexual. (É perfeitamente natural nos que defendem casamento e adopção: eis-me, por uma vez sem exemplo, a apoiar uma posição do Bloco de Esquerda). Com efeito, o que pretendem aqueles é que a impossibilidade da adopção venha a ferir de morte o projecto aprovado e a adiar – para as calendas gregas! – a aprovação do próprio casamento homossexual. Mera manobra dilatória porque é evidente que o que os preocupa não é que os casais homossexuais não possam adoptar. Isso, pelo contrário, até lhes agrada. O que os preocupa é que haja casais homossexuais. Qualquer argumento é bom para acabar com essa «aberração». Daí a hipocrisia.

E sinto-me obrigado a falar novamente de Alberto Gonçalves, o meu querido cronista de serviço, que volta a brandir armas contra esta (segundo ele) inaceitável química social tendo o cuidado de dizer que, pessoalmente, é a favor desta medida mas acha, simplesmente, que não compete ao Estado alterar instituições seculares. Peço desculpa mas aceito mais facilmente os que se pronunciam claramente pelo «não» do que aqueles que pretendem enroupar a sua rejeição em trajes de máscara. Esta ideia de que o direito deve seguir cegamente a opinião das maiorias ou as tradições multisseculares é bastante peculiar. A aceitá-la, estaríamos hoje ainda a consagrar a pena de morte ou a escravatura. A verdade é que cabe ao Estado, dentro de certos limites, acompanhar a vida – conformando-se com os valores que os novos tempos vão tornando aceitáveis e, na maioria dos casos, desejáveis. Aconteceu assim, por exemplo, com a liberalização do divórcio que ninguém de bom senso agora contesta, embora possamos opor-nos a disposições particulares mesmo se bem-intencionadas duma nova lei, principalmente pelos aspectos negativos que pode ter sobre a protecção da parte mais fraca, normalmente a mulher. Nada impede o Estado de actuar em matéria de usos e costumes, sem que nisso se veja uma forma de controlo ou de experiência social. Só não deve fazê-lo de forma cega mas pesando cuidadosamente e em cada caso concreto os argumentos contra ou a favor de umas e outras posições. A verdade é que as coisas evoluem. E a definição de casamento não deve ser considerada como gravada em pedra. É estranho que sejam aqueles que criticam os «relativistas» a pretender que o Estado não possa intervir neste e noutros domínios.

O que deixei dito, contudo, representa apenas o que pode chamar-se uma opinião negativa. Isto é, limitei-me, até agora, a contestar opiniões alheias sem deixar claro aquilo em que acredito. Posso facilmente, quiçá justificadamente, ser acusado de cobardia.

Assim, gostaria também de exprimir pela positiva a minha opinião sobre estes assuntos controversos.

Comecemos pelo casamento. Não vejo qualquer razão para o limitar a casais heterossexuais. O casamento é uma instituição legal; as suas condições e os seus efeitos são determinados nas constituições e nos códigos civis de cada país. Obviamente que certas igrejas pretendem legitimamente regulamentar esta instituição e têm todo o direito de fazê-lo. Mas não há razão nenhuma para que o Estado aceite essas definições ou esses entendimentos assim como o que quer que venha a ser dito pelo legislador não alterará nem um pedacinho as convicções religiosas de quem quer que seja. O Estado tem todo o direito de definir o casamento da forma que bem entender. Deve prestar atenção às opiniões prevalecentes na sociedade que rege mas não é escravo delas. Assim, por exemplo, há razões que nos podem levar a proibir a poligamia ou o incesto. No primeiro caso, podemos argumentar com o respeito da dignidade da mulher, que não deve ser colocada em situação de partilha, embora o escândalo provocado pelos sucessivos casamentos do actual Presidente da África do Sul seja um claro exemplo duma atitude hipócrita, paternalista, colonialista e inaceitável. No caso do incesto, são questões que tocam a própria definição da sociedade tal como a entendemos entre nós (e não temos que pedir desculpa por a entendermos dessa forma embora nada nos autorize a impor a nossa concepção aos que pensam de forma diferente) que nos levam a proibi-lo.

Pelo contrário, não há nenhuma razão, excepto uma concepção particular do que deve ser o casamento e, por isso, por ser particular, não oponível aos que não concordam connosco, que nos leve a proibir que dois homens ou duas mulheres se casem. Para apreciar isto, é absolutamente indiferente saber, como diz Alberto Gonçalves, se são sete ou oito os países que aceitam esta posição: é, aliás, curioso verificar que os principais opositores do "relativismo" são os primeiros a recorrer a estes dados estatísticos claramente relativos quando se trata de levar água ao seu moinho. Essas mulheres e esses homens não fazem mal a ninguém; a sua decisão é livre, pensada, generosa. Não se vê por que deveria o Estado recusar-lhes a aceitação que solicitam. É verdade que os mesmos efeitos práticos poderiam conseguir-se através doutros institutos, como uma união juridicamente reconhecida; mas isto passa ao lado do essencial que é a necessidade – por uma questão de dignidade – que sentem os casais homossexuais de serem tratados nas mesmas condições que os casais heterossexuais. É, afinal de contas, o seu empenho no reconhecimento duma igual respeitabilidade e nobreza.

Para além de que se trata, como mostrou Paulo Pinto de Albuquerque em recente artigo no Diário de Notícias (e são tão poucas as oportunidades que tenho de concordar com este articulista que esta merece ser salientada), do reconhecimento de um direito. É por isso que recuso o referendo. O reconhecimento de direitos fundamentais não deve estar sujeito à vontade das maiorias, parlamentares ou populares.

E, com isto, chego à questão da adopção. Durante muito tempo, pareceu-me que devia seguir-se, nesta matéria, um princípio de precaução. Com efeito, não há nenhum direito a adoptar; isto é, não se pode dizer que casais, homossexuais ou heterossexuais, tenham um tal direito. Há, quando muito, um direito a ser adoptado. Ou seja, em matéria de adopção, o que conta é apenas o direito da criança, do adoptado. A minha defesa daquele princípio de precaução tinha a ver com esta posição. Não se sabendo se a adopção por casais homossexuais prejudicaria ou não as crianças adoptadas, uma certa reserva nesta matéria parecia-me perfeitamente defensável.

A verdade, contudo, é que os estudos de que dispomos, embora escassos, não permitem concluir por quaisquer danos provocados a crianças adoptadas por casais homossexuais (para além do facto de nada impedir um homossexual solteiro de adoptar uma criança e de, depois, encetar uma relação homossexual ou mesmo, quando o casamento passar a ser permitido, de se casar – remeto novamente para o artigo de Paulo Pinto de Albuquerque, que refere decisões jurídicas importantes a este respeito). Por isso, tenho evoluído no sentido de considerar que a adopção por casais homossexuais também deve ser admitida. É certamente melhor ser filho ou filha de dois pais ou de duas mães do que não ser filho de pessoa nenhuma. Mas não me choca – a Trezzu fala de um necessário período de adaptação das mentalidades – que a adopção não seja permitida desde já. Parece-me evidente que ela será uma consequência necessária da permissão do casamento homossexual; mas também não me repugna não apressar as coisas.

E pronto! Espero ter respondido ao desejo da Trezzu. Gostaria apenas de terminar dizendo que me comove a ideia de tornar possível o casamento de determinadas pessoas do mesmo sexo que estão juntas há muito tempo e para as quais esta lei representa a possibilidade de alcançar, nas suas vidas, uma plenitude de que já desesperariam. Acima de tudo, é isso que importa: a possibilidade de contribuirmos para que mais gente no mundo possa ser feliz. Esta lei vai nesse sentido.