sábado, 16 de janeiro de 2010

O terramoto no Haiti - e a esperança

Desde que o meu irmão Francisco começou com o seu blogue, temos trocado impressões principalmente através dos nossos comentários aos artigos um do outro. Isso é natural e transformou-se numa espécie de agradável comunicação entre nós que não nos correspondemos por carta nem por correio electrónico e falamos raramente ao telefone. Às vezes, concordamos; mas, se isso acontece, o mais natural é assentirmos tacitamente: não sentimos necessidade de o proclamar. Assim, é quando dissentimos que deixamos a nossa crítica. No caso do artigo que ele escreveu ontem, relativo aos acontecimentos do Haiti (e que podem consultar no link que insiro no final), não se trata propriamente de discordar dele. Ao lê-lo, atingiu-me sobretudo uma sensação de desânimo: o desânimo que o Francisco mostra mais o desânimo por ele o mostrar dessa forma. Digamos que as suas considerações sobretudo me entristeceram.

Ninguém duvida que a vida dos sobreviventes do terramoto haitiano será extremamente difícil; mas estarão vivos (e não é por uma frase parecer ter sido pronunciada pelo senhor de la Palisse que está errada; pelo contrário, aquele senhor tinha normalmente razão). Ora, há, na vida, uma dignidade – ou, melhor dizendo, a possibilidade de uma dignidade – que não existe na morte. A morte não é digna. Podemos morrer por causas honrosas, podemos mesmo morrer com dignidade; mas a morte, em si mesma, não tem nada de digno; é corrupção do corpo, podridão, fealdade. A morte é, sobretudo, o desaparecimento irremediável da possibilidade de podermos, algum dia, alguma vez, adquirir honra e nobreza. Estarmos vivos, mesmo nas piores condições do mundo, implica a possibilidade da esperança. Tenho a consciência de que essa esperança é, muitas vezes – no caso dos haitianos, na imensíssima maioria das vezes –, pura ilusão. Mas pensar assim é já reduzir a vida a considerações principalmente materiais. Pode haver amor, pode haver ternura, pode haver simples decência humana, no meio da maior pobreza. Obviamente que, em muitos casos, a miséria pode impedir amor, amizade, respeito e sou o último a defender que não tem importância. Mas a vida é, também, a possibilidade de manter esse profundo respeito por nós próprios e pelos outros que caracteriza a essência do Homem. Julgo que, muitas vezes, nos enganamos profundamente sobre as motivações humanas. Pensamos que os indivíduos se interessam exclusivamente pelo bem-estar material quando a verdade é que buscam também algo de transcendente, algo que dê sentido às suas vidas para além dos reveses ou, simplesmente, das vicissitudes do quotidiano. Muitas vezes, encontram esse "mais", que é difícil de definir, na religião e, num estudo magnífico que ando a ler no meu Kindle ("Moral Clarity"), a filósofa norte-americana Susan Neiman vê nesta demanda uma das razões do fundamentalismo religioso e até do terrorismo – que não deixa de ser explicável pelo facto de ser eminentemente criticável. Assim, consigo perfeitamente compreender o apelo de Deus, como faz o Francisco, como essa necessidade de desejarmos alcançar algo que esteja para além duma existência mesquinha e egoísta e que nos proporcione uma espécie de conforto moral. Para além de que, como dizia a minha cunhada Vera, quando perdemos alguém de muito querido, acreditarmos no céu dá-nos a maravilhosa consolação de sabermos que poderemos um dia reunir-nos com ele. Não é a minha via; deixou de o ser há muito tempo. Mas é sem jactância, antes com melancolia, que o digo.

Em suma, acredito profundamente que, mesmo em condições terríveis, vale a pena viver. Porque viver é mais do que viver bem. O homem que, com as suas próprias mãos, desenterrou uma menina soterrada nos escombros do terramoto sentiu certamente uma felicidade que não é susceptível de ser avaliada por puros critérios materiais. Para além disso, levando ao absurdo o raciocínio do professor da Nanuz (ver o artigo do Kiko), o melhor seria nem sequer nos preocuparmos em ajudar os haitianos. Na verdade, muitos deles morrerão inevitavelmente, e a curto prazo, por falta de alimentos, cuidados de saúde ou nas rixas entre grupos rivais de malfeitores armados (o que já está a acontecer em certos casos de pilhagem). Mas a verdade é que esse professor não tem razão. A ajuda conta, mesmo se não deve traduzir-se em meros auxílios dados com desprezo, mas permitir aos seus beneficiários que se organizem e decidam autónoma e responsavelmente da forma como a utilizarão – dando-lhes um sentido de responsabilidade e, mais uma vez, de dignidade, que a simples distribuição de benesses (alimentos, medicamentos), se bem que necessária em tempos de crise aguda, não permite. Daí, aliás, o sucesso do microcrédito, do Grameen Bank e de Muhammad Yunus.

O outro aspecto que me impressionou – talvez ainda mais – nas palavras do Francisco foi o seu desalento relativamente à possibilidade de mudar o mundo. E, principalmente, a sua recusa, que só este desânimo permite compreender mas não justificar, de encorajar os jovens de hoje, os nossos filhos, a tentá-lo. Sei, como diz, que o faz por boas razões; para lhes não dar, mais tarde, motivos de tristeza e de frustração. Mas isso não chega. Atrevo-me mesmo a dizer que eles não estão dispostos a desistir dos seus ideais por terem medo de não os verem concretizados.

Porque o facto de as pessoas terem nascido do outro lado da ilha, nas suas palavras, só pode constituir uma razão para tentarmos alcançá-las e contribuir para proporcionar-lhes, dentro da medida das nossas possibilidades individuais, mesmo que ínfimas, um futuro melhor. O facto de a nossa geração não o ter conseguido – talvez porque, depois de termos perdido algumas erradas ilusões da nossa juventude, fundadas no marxismo, leninismo, maoismo e outros "ismos" parecidos, que nos levaram a acreditar que tínhamos que matar meio mundo em favor da outra metade; ou seja, de termos sacrificado os nossos ideais nos altares das ideologias; mas esse foi um caminho que, pessoalmente, sempre recusei e desprezei – é apenas mais uma razão para que acreditemos que o consiga essa nova geração que nos substitui – e tão bem! Fico especialmente espantado e orgulhoso quando vejo a minha filha Teresa (e tantas outros jovens da sua idade) passarem parte das suas férias, quando podiam estar na praia, na Tanzânia, entre meninos pobres, muitos deles com fome, a ajudá-los, ensinando-lhes matemática e inglês. Tenho a certeza de que a minha sobrinha Sofia também o fará, se tiver oportunidade; e que o meu filho Diogo, que provavelmente preferirá passar um ano a percorrer a América, se preocupa com estas coisas e contribuirá, da forma que for a sua, para minorar a angústia do mundo. É que, às vezes, basta simplesmente um donativo, outras, uma actividade pessoal ou social. Assistir um doente no hospital é tão importante como criar a fundação Bill Gates. Não devemos esquecer que o sofrimento do mundo começa aqui mesmo ao nosso lado. Uma pessoa como Isabel Jonet, que se encarrega do Banco Alimentar, contribui de uma forma notável para esse objectivo.

Não acredito que seja nossa obrigação poupar aos nossos filhos "o sofrimento, a frustração, que resulta do contacto com o insucesso, com a intolerância, com a indiferença". Mais: não acredito que seja isso que eles nos pedem. Acho que, nesse aspecto, querem ser como nós: descobrir o seu caminho, tacteando, errando, batendo com a cabeça nas paredes, fazendo asneiras enormes e corrigindo-as, sofrendo, mas, ao mesmo tempo, fazendo coisas magníficas de que se orgulharão para sempre. Em suma, estando vivos. E sendo jovens.

Compreendo a pena, o sofrimento, das pessoas que, como o Francisco, já viveram muito tempo e pensam que a experiência mostra que não há caminhos. Mas não é verdade. Cada geração refaz o mundo à sua maneira. O facto de a nossa não ter conseguido, em parte, o que se propunha, como não o conseguiram a dos nossos pais ou a dos nossos avós, não significa que a que vem aí agora não seja capaz de criar aquilo de que não fomos capazes. E estas coisas de falhar ou não falhar são relativas. A geração dos nossos pais evitou, na Europa, as guerras que, durante séculos, dilaceraram o Continente, e legou-nos a paz. Em Portugal, os nossos pais e nós desfizemo-nos do salazarismo e do marcelismo e legámos aos nossos filhos a democracia. E mesmo se é a democracia de Sócrates e Ferreira Leite é muito melhor, incomparavelmente melhor, do que o que havia antes.

Tenho uma imensa esperança na geração dos meus filhos. E não fico abatido nem me sinto desencorajado ao pensar que, com a sua dose de coisas boas, terão também a sua parte de sofrimento. É isso a vida; e é por isso que vale a pena viver.

Quanto a Deus, acho que não é para aqui chamado. Quando, na Europa das Luzes, se discutia o terramoto de Lisboa, havia gente que dizia que Deus, a existir, ou era mau, ou estava distraído. Para mim, a solução é mais simples: Deus não existe. E não o digo com altivez mas, pelo contrário, com a simples tristeza de quem perdeu a fé. É sobre nós que recai a responsabilidade pelo mundo. Mais uma razão para não descrermos.

Blogue do Francisco aqui:
http://comonoinicio.blogspot.com/

1 Comments:

Blogger francisco pessoa e costa said...

Quando comecei o "como no inicio" estava longe de saber que, dessa forma, iria contribuir para me relacionar contigo de uma forma tão próxima e tão frequente.

É excelente esta sensação de partilha contigo, sensação que chega tarde, não devido ao conceito relativo de tempo e verdadeiramente não importante mas porque não chega a tempo de a Mãe a ter verdadeiramente partilhado, verdadeiramente a ela ter assistido (hoje, quando te procuro aqui e nos comentários que no meu blog fazes, imagino a Mãe a ler as nossas trocas de idéias e a sorrir com aquele sorriso não imitável porque pertença de alguém que amou de forma tão intensa os seus filhos).

Dito isto e ao contrário do que pode ser a interpretação do que escrevi, eu sou um homem de Esperança, mas numa Esperança que entendo como limitada, quase individual, apenas abrangendo o meu espaço e as pessoas que amo.

A Esperança colectiva, essa de que tu e a Sofia falam, foi-me abandonando, ou fui eu que a foi abandonando, talvez devido a uma conjunto de acontecimentos e situações que me têm levado a desistir, a crer cada vez menos no futuro da espécie Humana e na capacidade que temos, na real capacidade que temos, de enfluênciar uma verdadeira mudança de atitudes e comportamentos que levem a uma melhoria efectiva das condições de vida de cada um dos seres humanos existentes neste planeta a que chamamos Terra.

O crescimento das inumeras situações de intolerência a que temos assistido ultimamente, a lembrar tempos longinquos mas próximos, não me dá razão, mas não evita que pense que, infelizmente, a tenho.

18 janeiro, 2010 14:10  

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