terça-feira, 13 de março de 2007

Chirac tire sa révérence

Sempre considerei Jacques Chirac um político nefasto – e um homem pessoalmente simpático.

Político nefasto, em primeiro lugar para a França (mas podemos dizer que disso cuidem os franceses!) Com efeito, que balanço é o seu? A uma retórica de apoio ao modelo social francês (ou europeu) correspondeu um aumento sem precedentes das desigualdades económicas e dos fenómenos de exclusão e da fractura social. Aos discursos de contenção das despesas do Estado, o crescimento constante do défice e da dívida pública. A um palavreado oco sobre o fomento da inovação e criatividade (ainda assim com melhores resultados do que em Portugal), a estagnação económica e a manutenção de elevados de desemprego. À pretendida reforma da administração pública, uma incapacidade até (certo que partilhada por partidos de esquerda e direita) de introduzir a retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.

Mas Chirac é sobretudo responsável por um extraordinário ambiente de compadrio e até corrupção – pelo assim chamado Estado RPR onde os mais importantes cargos do aparelho político, administrativo, judicial e até, em certos casos, diplomático, foram preenchidos por fiéis. Nesta vasta operação de apropriação do Estado para fins políticos privados – de um homem, de um clã, de um partido – Chirac devorou os seus próprios aliados e, sobretudo, aquele em quem sempre confiou e que considerava o seu herdeiro: Alain Juppé, afastado das presidenciais pela sua condenação num processo relacionado com os empregos fictícios na Mairie de Paris nos anos em que Chirac ocupou o Hotel de Ville.

(Dito isto, os franceses são um povo estranho. Têm um país magnífico e Paris é uma cidade extraordinária, que alia pujança económica a uma beleza incomparável e a uma oferta cultural de altíssimo nível. A economia do país, não obstante certas dificuldades, atravessou o final do século XX e entrou no XXI em muito melhor situação do que a da maioria das restantes economias mundiais. O modelo social funciona ainda bastante bem embora, como noutros países, necessite de ser reestruturado nomeadamente para ter em conta a evolução demográfica. E, com tudo isto, os franceses queixam-se! Para mim, é uma espécie de nostalgia dos tempos de Luís XIV, quando eram o centro do mundo, ou da época em que, sob o estandarte de Napoleão, tentavam exportar uma mistura de liberdade revolucionária e centralismo autoritário. Os franceses não suportam ser considerados como uma simples nação entre muitas outras. La France, oh! la France!)

Em segundo lugar, Chirac foi – e isso já nos afecta a todos – um político nefasto para a Europa. O seu apoio ao projecto europeu foi sempre titubeante, desde os tempos primeiros em que ainda se apoiava em Marie-France Garaud e Pierre Julien, dois conselheiros do Presidente Pompidou que foram os seus primeiros mentores políticos. Hoje, pouca gente se lembra do apelo de Cochin, lançado na altura das primeiras eleições por sufrágio directo para o Parlamento Europeu, denunciando o Presidente Giscard d'Estaing como chefe dum imaginário «partido do estrangeiro» mas, no final dos anos setenta, Chirac assumia-se como um euro céptico avant la lettre. (Marie-France Garaud, aliás uma mulher insuportável, candidatou-se em 1981 à Presidência da República, contra Giscard e Mitterrand, como porta-estandarte candidata da Europa das Nações. A sua carreira política acabou quando obteve apenas 1,33% dos votos.) Mais tarde, por ocasião do referendo sobre o Tratado de Maastricht, Chirac fez, por assim dizer, o pino e, contra muitos dos seus apoiantes, como Philippe Séguin ou Charles Pasqua, apelou ao «sim» ao Tratado. Mas as tergiversações da sua desastrada política interna foram uma das principais causas do voto que, em 2005, recusou o Tratado Constitucional, voto esse que deu um golpe porventura fatal numa certa ideia da Europa e num certo método de a conseguir. O que, poderá dizer-se, nem se traduziu em grande mal porque o método se encontrava claramente esgotado e, para continuar a construir a União Europeia, seria sempre preciso mudar de rumo e, talvez, de barco. Mas uma coisa é perder com convicção depois de apresentarmos com convicção os nossos argumentos, outra é perder apenas porque nem sequer fomos capazes de os defender. No primeiro caso, ainda podemos ter a esperança de vir a pesar sobre futuras discussões. Não foi isso que aconteceu a Chirac que perdeu por incompetente falta de comparência. Daí provavelmente as desculpas que, segundo dizem, apresentou aos restantes Chefes de Estado e de Governo europeus na recente cimeira de Bruxelas. Mas não acredito que eles lhe tivessem perdoado. A ver pela reacção de Durão Barroso...

Dos seus anos como Presidente, ficam apenas, a meu ver, no lado do activo, a sua oposição à guerra no Iraque (mas alguns dirão que se deveu mais a um oportunismo de circunstância, de quem vê nos Estados Unidos uma ameaça para a Europa e para la France) e, principalmente, a sua constante e reiterada oposição à extrema-direita e a Jean-Marie le Pen.

Este é o aspecto mais cativante da sua personalidade – para além duma simpatia natural e dum real interesse pela vida das pessoas com quem se cruza. Aí, nunca houve tergiversação nem sequer hesitação. Chirac é provavelmente o único homem político da direita francesa que considera os emigrantes como uma oportunidade e não um fardo; o único capaz de reconhecer publicamente o papel do Estado francês e as responsabilidades, não apenas do regime de Vichy mas da França, nas perseguições aos judeus durante a II Guerra Mundial; o único, certamente, que considera o liberalismo como um sistema iníquo e que o compara ao marxismo, nos seus efeitos destruidores sobre a estrutura social. O que, não sendo verdade, revela, pelo menos, a enorme distância que o separa de alguns dos seus comparsas. Não é por acaso que Le Pen o considera o seu principal inimigo. E não é por acaso que o seu apoio a Nicolas Sarkozy será, no melhor dos casos, forçado e hesitante. Quem sabe? Se não fosse a antipatia pessoal que, ao que parece, os separa, talvez Chirac pudesse declarar o seu apoio a Bayrou.

Não sinto qualquer nostalgia relativamente aos anos Chirac. Vejo-o sair da política sem tristeza. Mas, ao pensar na possibilidade de Sarkozy como presidente, chego a pensar que ainda podemos vir a recordá-lo com um grão de saudade.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Nao concordo com essa ideia que o Chirac foi um politico nefasto para a Europa. Penso que foi um grande chefe de Estado, sempre representou a França com dignidade. Um homem inteligente e com um charme particular.
Talvez haja a tendencia de relembrar os ultimos anos do seu segundo mandato, onde ele aparece mais velho e enfraquecido.
Lembrarei sempre o Chirac como um homem "qui a toujours défendu la grandeur de la France et les valeurs de la République". Acabou por ser vitima do proprio declinio em que a França caiu nos ultimos anos face à ascençao lingusitica e economica dos anglo-saxons.
E Chirac tem efectivamente o grande mérito de ter sido contra a extrema direita e a guerra do Iraque c'est tout à son honneur.
Há um lado "saudosista" nos franceses que me enterneçe, onde nao serao alheias provavelmente as minhas origens gaulesas:essa forma de viverem numa Republica mas com a "panache e o savoir faire" do século XVIII. É isso que faz daquele país especial, e rico de uma identidade cultural inequivoca - uma baguette debaixo de um braço, do outro o "Candide" de Voltaire, assobiando a Marseillaise. Vive la France!

21 março, 2007 16:01  

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