O Maior Português de Sempre
Esta escolha de «O Maior Português de Sempre», protagonizada pela RTP, não me mereceria qualquer comentário se não fosse o facto de, quando fui jogar bridge na terça-feira, ter deparado com dois jogadores belgas que me falaram no assunto. A conversa começou, aliás, com um «Portugal tem andado nas bocas do mundo ultimamente», e eu pensei que se referiam ao futebol e à nossa vitória sobre a Bélgica da semana passada. Mas não! Estavam espantados por Salazar poder ter ganho semelhante concurso. Já lhes fui dizendo que o voto não era representativo (e pensei para com os meus botões: «senão das soi-disant elites que organizam tais concursos!») e que, certamente, a organizar-se uma verdadeira sondagem, os resultados seriam diferentes. Mas tenho que reconhecer-lhes alguma razão. Como é possível que Salazar, Salazar, ele próprio, Salazar, o ditador que mandava a oposição para a cadeia, Salazar, o político que queria para este país um regime de honrada pobreza, de onde estava ausente qualquer desígnio de modernidade e de desenvolvimento – um homem que, sobre este aspecto, nem sequer pode ser comparado ao frustre Franco, daqui do lado – seja escolhido, em qualquer concurso, em qualquer consulta, como o maior português de sempre? Se os portugueses andam à procura de mãos férreas e punhos de aço, então que preferissem o Marquês de Pombal: está mais longe no tempo e, pelo menos, trazia consigo um projecto de modernidade. Mas este deve estar, aos olhos dessa gente, irremediavelmente maculado pela sua perseguição dos jesuítas! E lá de jesuítas, Salazar gostava. Nós, portugueses, gostamos sobretudo de praia.
Fica Aristides Sousa Mendes. Não, de certeza, o maior português de sempre mas um justo. Muito mais do que se pode dizer de Salazar (primeiro) e Cunhal (segundo.)
Bom, tudo isto me levou a procurar dois poemas de dois grandes (esses, sim) portugueses sobre o nosso «torrão à beira-mar plantado.» Eles diriam mais prosaicamente: este «país de merda.» Aqui ficam os poemas. Leiam-nos bem e não se esqueçam de que o país de que falam era o país de Salazar.
Alexandre O'Neill
Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
Jorge de Sena
A Portugal
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.
Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não
1 Comments:
Gosto da frase" o que os portugueses gostam é de praia". E a fotografia de um areal apinhado. De "Japao", como se dizia la para os lados da Vagueira, quando chegavam aquelas camionetes cheias de parolos vindos das terras do interior, que nuncam tinham visto o mar e que vinham pôr de molho as varizes e outros achaques, calças e saias arregaças, numa gritaria animada de quem nunca "provou" as águas gélidas do Atlântico.
Merecida referência a Aristide de Sousa Mendes, um Justo portugues. Nem sei se havera outro nacional. Certamente bastantes anonimos portugueses que ajudaram as familias judias durante a guerra.
Por fim, o poema de Jorge de Sena choca-me. Profundamente. Nao gosto que falem assim do meu País. Malgré tout et tous. Ha qualquer coisa de "guerra pessoal" nos seus propositos.
De qualquer forma, foi bom ter referido mais esta derapagem mediatica dos nossos conterraneos.
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