terça-feira, 20 de março de 2007

As sinfonias de Shostakovich (1) - Relembrar o estalinismo

Em matéria de música, ando concentrado numa revisão completa das sinfonias de Shostakovich depois de ter comprado uma nova edição, recentemente posta à venda, da integral que Kirill Kondrachine gravou à frente de Orquestra Filarmónica de Moscovo entre 1961 e 1974.

A União Soviética pertence agora ao passado e, do estalinismo, o que hoje se sabe tende a ser apenas, ou aquilo que aparece em artigos de revistas especializadas em história ou política, ou o que é objecto de polémicas desenhadas a preto e branco, colocando num único prato da balança, positivo ou negativo, o que só pode plenamente compreender-se em tons de cinzento (e incluo nesta crítica esses famosos Livros Negros em que se especializaram certos historiadores – como os Livros Negros do Comunismo, do Colonialismo, do Capitalismo ou da Psicanálise). Agora que, felizmente, o mundo de Lenine e Estaline, e até o mundo menos violento mas desprovido de qualquer sentido ou ideal dos seus sucessores Breznev e Andropov, meros burocratas ou polícias, acabou (mesmo se a Rússia de Putin não constitui certamente exemplo a seguir), é difícil penetrar plenamente na obra de Shostakovich e descobrir-lhe o sentido profundo. Há mesmo quem diga que uma das razões do sucesso das integrais de orquestras soviéticas, em comparação, por exemplo, com as de Haitink ou a mais recente de Jansons, assenta no facto de os músicos que as interpretavam saberem, por assim dizer, do que falavam. Ou seja, de terem sofrido na carne própria ou de gente chegada as penas infligidas por um regime para quem qualquer indivíduo não passava de uma pequena peça numa monstruosa engrenagem. (Quem se interesse por estas coisas, pode reler Alexandre Soljenitsyne ou, numa narrativa mais objectiva e documentada, mas sem o talento literário do autor do Arquipélago do Goulag, o recente livro de Anne Applebaum, A História do Goulag.)

É evidente que não é necessário ter passado pelas prisões estalinistas para interpretar ou compreender Shostakovich; mas o facto de muitos dos que formavam essas orquestras terem por lá passado – ou por lá terem visto passar família, amigos ou conhecidos (e ninguém, na União Soviética, viveu afastado dessas terríveis experiências) – contribui para dar a essas interpretações uma força emocional que nós, do lado de cá, deste lado do que foi a cortina de ferro ou o muro de Berlim, temos dificuldade em replicar e de que só nos apercebemos quando escutamos essa forma especial de soar que têm essas orquestras russas «da época».

Vale a pena recordar esse misto de medo – de terror – e de desesperança que constituía o quotidiano dos cidadãos ordinários na União Soviética do tempo de Estaline. Não era só a certeza de que todos estavam à mercê do ditador e do aparelho do partido e que este servia tantas vezes de mera correia de transmissão de vinganças mesquinhas. Era ainda a tentativa de impor o desânimo, de obrigar todos a nem sequer poderem imaginar a possibilidade de mudança. Por isso é que a guerra surgiu, paradoxalmente, como uma libertação. O tempo de guerra permitiu aos russos unirem-se em torno da defesa da sua terra e constitui o único intervalo no terror estalinista – que recomeçou logo depois da vitória, com o tratamento bestial reservado aos soldados e oficiais que tinham sido feitos prisioneiros na Alemanha e que seguiram directamente dos campos inimigos para o Goulag, donde nunca mais saíram.

As sinfonias de Shostakovich aproximam-nos do desalento desse povo, entrecortado pelos momentos de exaltação que o regime não conseguia suprimir porque a esperança na desesperança é ainda o último refúgio do humano. Ouvi-las – e ouvi-las assim, todas duma vez – é uma experiência espiritual que não necessita de adjectivos. Para mim, a mais bela é a Sinfonia Nº 7 (dedicada à cidade de Leninegrado), uma profunda meditação em torno da guerra, do sofrimento, da angústia e da amarga vitória. Como disse Oistrach, ao ouvir na telefonia, em Moscovo, a primeira representação desta obra, que ocorria em Leninegrado sitiada a 9 de Agosto de 1942, essa sinfonia representou «a afirmação profética da nossa fé no triunfo eventual da humanidade e da luz.» Na estreia, de acordo com o escritor Alexander Rozen, «muitas pessoas choraram (…) Umas choraram porque essa era a única forma como podiam expressar a sua alegria; outras porque tinham vivido aquilo que a música expressava com essa força enorme; outras de dor pelos que tinham perdido; outras apenas porque os dominava a emoção de ainda estarem vivos.»

Como Akhmatova, a grande poetisa russa (ou a poeta, como Sophia de Mello Breyner preferia chamar-se) que nunca deixou a União Soviética e viveu em Leninegrado durante a guerra, Shostakovich, nesse momento, representava o povo russo: a 7ª sinfonia é o hino ao seu sofrimento na guerra, à sua resistência e à sua força.