Thomas Mann e Bruno Walter
Há uns dias, ouvi uma gravação das sinfonias n.ºs 2 e 3 de Brahms, na interpretação de Bruno Walter com a Orquestra Sinfónica de Columbia. Bruno Walter gravou por duas vezes a integral das quatro sinfonias de Brahms. A outra versão, em que dirige a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, pode ser comprada em França e na Bélgica, numa edição da Sony, a preço muito razoável.
Se exceptuarmos Gustav Mahler, seu mestre, seu amigo, poucas pessoas terão tido maior influência, intelectual e pessoal, na vida de Bruno Walter do que Thomas Mann. Conheceram-se muito cedo, quando Walter viveu em Munique, entre 1913 e 1922. Thomas Mann era já conhecido como grande escritor. Tinha publicado algumas das suas mais importantes obras de juventude: os «Buddenbrooks» (1901), o seu primeiro grande livro e o primeiro que dele li, e que me fascinou na altura, tinha eu dezanove anos, e mais tarde, ao relê-lo, já passados os quarenta; «Tonio Krögger» (1903), que não conheço; e «Morte em Veneza» (1911). Poucos anos depois, em 1924, escreveria «A Montanha Mágica» que, uma vez, Eduardo Prado Coelho qualificou como o último grande romance – aquele depois do qual nada mais pode ser dito, pelo menos se mantivermos o paradigma do romance clássico.
Sobre «Morte em Veneza» nem um artigo sozinho chegaria para explicar o meu encantamento, que veio tanto do filme de Visconti (que vi duas vezes de seguida, no mesmo dia, pouco tempo depois da estreia em Lisboa) como, mais tarde, da leitura do romance e de me identificar, de forma estranha, atenta a minha idade, com Gustav Aschenbach, escritor fascinado pela beleza de Tadzio, um rapaz de 13 ou 14 anos que encontra num hotel de Veneza, num início de Outono, em tempo de «scirocco» e de cólera, e que Visconti transforma num compositor e maestro desiludido, destruído pela morte da filha e pelos ataques insuportáveis dirigidos contra a sua música, incompreendida pelos seus contenporâneos – numa referência indisfarçada a Gustav Mahler, precisamente o homem que lançou a carreira de Walter. Cheguei a escrever um pequeno ensaio sobre o livro (que comparei ao «Retrato de Dorion Gray», de Óscar Wilde) e apresentei-o numa aula de Filosofia do 7º ano, a um professor que se chamava Santos Afonso, homem alto, seco, de pele morena e cabelo branco, com os dedos amarelos dos cigarros que fumava nas aulas, de uma forma que hoje não seria - direi: infelizmente? - aceitável. E foi este ensaio que, mais tarde, me deu entrada em Direito (e, face ao que fiz depois, fico sem saber, ao pensar nisso, se devo agradecer ao destino esta minha fascinação pela estética de Mann ou, pelo contrário, irritar-me perante o meu fado), quando o repeti, adaptado às circunstâncias, perante o Padre Manuel Antunes, no meu exame de aptidão à Faculdade (como então se chamava), compensando com a nota de Filosofia a nota de Latim que deixou muito a desejar.
Walter e Mann foram vizinhos em Munique, nas décadas de 1910 e 1920. Visitavam-se frequentemente e as filhas de Walter tornaram-se amigas das filhas e filhos de Mann. As relações entre as duas famílias desenvolveram-se em paralelo. Ambos assistiram à ascensão do nazismo e, em 1939, Bruno Walter, judeu, viu-se também obrigado a deixar a Alemanha e a Áustria, partindo para os Estados Unidos, para a Califórnia, onde já se encontrava Thomas Mann.
Em público, Thomas Mann sempre prestou homenagem a Walter. Quando este festejou os seus 70 anos, o escritor pronunciou um discurso em que declarava, com ironia, ser bastante «annoying» que, tendo ambos decidido, mas só depois de trinta e quatro anos de amizade continuada, começarem a tratar-se por tu, estivessem na altura nos Estados Unidos, que não faziam diferença entre as segundas pessoas, do singular e do plural, entre o tratamento por tu e o tratamento por vós, usando em ambos os caso o «you» universal. A antiga cerimónia, que tinham posto à porta da rua, voltava através da janela da igualdade: como diferenciar a sua nova intimidade num país em que toda a gente aparentava cair nos braços uns dos outros?
Mas, nos seus diários, Thomas Mann apresenta uma imagem diferente do maestro: um homem basicamente conservador, e mesmo reaccionário, e profundamente vaidoso. Walter, com efeito, era ferozmente anti-comunista, apoiava os republicanos, achava que a música acabara com Mahler (e perguntamo-nos mesmo como conseguiu ele gostar de Mahler) e não escutava senão as gravações da suas próprias interpretações, sentado no sofá da sua sala e utilizando uma estereofonia «up to date».
E, no entanto, as suas interpretações de Mahler, de Beethoven, de Mozart e de Brahms, transmitem-nos uma força e uma tranquilidade impossíveis de ultrapassar, que, para dizer as coisas de forma simples e ao mesmo tempo complicada, não parecem deste mundo. É verdade que esta serenidade, esta placidez, era conseguida à custa de comportamentos tirânicos em relação aos músicos das orquestras que dirigia que, ao que parece, o detestavam. Walter raras vezes se enervava e nunca gritava. Mas a sua expressão de desprezo e o tom da sua voz diziam tudo: ele, o génio, o único que compreendia a música, tinha que aceitar trabalhar com gente menor que não podia percebê-lo e penava para o seguir. Muitos maestros são assim – mas não acho que isso constitua desculpa. Há outros mostram consideração – e nem por isso são menos capazes ou brilhantes.
Mas as pessoas são como são e não como gostaríamos que fossem. Quanto a Walter, se ponho a tocar a «Pastoral» de Beethven, na sua interpretação de 1946 com a Orquestra de Filadélfia, ou principalmente o «Das Lied von der Erde », com Kathleen Ferrier, em 1952, fico sem palavras, simplesmente desesperado ao pensar que desprezar os membros da orquestra, e maltratá-los, seja o preço que temos que pagar por estas ocasiões em que mesmo o mais cabotino dos maestros atinge a plenitude.
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