quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Um soneto de Camões

Descobri, misturado com livros de política internacional, a Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, organizada por Eugénio de Andrade, um dos livros que procurava depois de a minha antiga mulher-a-dias me ter arrumado (?) as prateleiras. Falta-me ainda a colectânea da Poesia do autor, que devo encontrar um dia destes, misturada os meus antigos livros de Direito ou coisa assim.

O soneto de Camões, Aquela triste e leda madrugada, que aqui deixo, é um dos mais belos poemas portugueses. Para as pessoas da minha geração ensinadas por alguns professores preguiçosos, Camões, na épica, é quase sinónimo de divisão de orações e, na lírica, em exercícios de memória destinados a aprender de cor sonetos e cantigas para os recitar depois diante duma plateia de alunos, que olhavam pela janela, desatentos e aborrecidos. (Dizem-me que, agora, nem isso se faz!) Havia excepções e tive a sorte de encontrar dois professores que me ensinaram a beleza de Camões e, através ela, a beleza de toda a poesia.

Num seu livro, O Poder da Música, (oferecido pela Vera), o pianista Daniel Barenboim sublinha a diferença essencial entre olhar e ver (ou entre ouvir e escutar). Podemos olhar muitíssimas coisas mas só vemos algumas, aquelas em diante das quais não apenas passamos mas paramos. Parece-me que, para descobrirmos Camões, para que nos seja rendida essa beleza, temos precisamente que aprender a ver, esquecendo as vezes em que apenas o olhámos, por distracção ou obrigação.

E sei (mas é um parênteses) que, se, mais tarde, o Portugal da segunda metade do século XX for lembrado, será pela sua poesia.



Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada,
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas
Se acrescentam em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas.