segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Mãe - Seis meses já














Faz hoje seis meses que morreu a Mãe. Continuo a pôr aqui a mesma fotografia (não tenho outra em formato electrónico) mas sobrepu-la a uma imagem da Foz do Arelho porque sei que esse era o lugar onde a Mãe gostaria de estar.

A nossa dor permanece igual. Ao mesmo tempo, acentuou-se a saudade que vem de nos apercebermos, à medida que o tempo passa, e com a violência das coisas más, que não a veremos mais. Não haverá regresso. O filme acabou: triste final. Sentimo-nos sobretudo desacompanhados. A morte da Mãe provocou esta informe sensação de solidão e desamparo. Aos cinquenta anos, parece ridículo. Mas é isso que sinto e que sentem os meus irmãos.

O que me faz mais falta, são esses momentos que passámos juntos, nas esplanadas da nova estrada da Lagoa, na Foz do Arelho, diante do areal, com o mar ao longe e o penhasco do Gronho, onde acaba a praia, do outro lado da aberta, ligeiramente desviado sobre a nossa esquerda. A Mãe era uma excelente ouvinte. Raramente nos interrompia. Nela, dispúnhamos de atenção e de amor – da atenção que era ditada pelo amor. O seu objectivo não era ganhar discussões. A necessidade de termos sempre razão veio-nos do Pai, não dela. Pelo contrário, esquivava-se aos conflitos e havia algo de comovente na forma como, nessas ocasiões, nos parecia frágil. Na Mãe, era fácil confundir com fraqueza a sua incapacidade de responder a alguém que usasse um tom agressivo. Fechava-se, como numa concha; escondia-se, como uma flor que se defende de uma luz violenta. Hoje, sabemos que havia nela a força de alguém que viu os seus sonhos caírem e, mesmo assim, continuou a viver com a coragem que também nos transmitia. Foi isto que desapareceu.

No meio da nossa tristeza, sorrimos ao pensar que morreu quando, como costumo dizer, ainda estava viva. Não assistimos à sua degradação física - que a afligia. No próprio dia em que entrou no hospital, ainda teve forças para, sozinha, se arranjar e tomar duche. E manteve-se sempre lúcida. Tenho a certeza de que se apercebeu da ternura que a rodeava. Resta-nos esse consolo. E, acreditem, não é coisa de deitar fora.

Na altura da sua morte, não coloquei aqui o texto que escrevi. Faço-o agora.

«A Mãe era uma pessoa discreta e tímida, que fugia de discussões e argumentos, e que tantas vezes se refugiava numa aquiescência fingida apenas para evitar conflitos. E era alguém de excepcionalmente privado, para quem a roupa suja se lava dentro de casa, mesmo se, como era o seu caso, muito pouca roupa suja havia para lavar. Era principalmente, como gostava de repetir, uma pessoa bondosa, que se orgulhava de vir de boa gente: os seus avós, os seus pais, o seu tio, eram gente de bem. O seu avô formara-se a pulso, na pastelaria que tem ainda o seu nome, e que lhe veio por herança das donas da Casa Fausta, de quem fora empregado quando chegara às Caldas. A sua avó viveu até aos 96 anos – e sempre pensámos que a Mãe lhe seguiria o exemplo e que poderíamos contar com ela por muito tempo. A sua mãe morreu também de cancro, antes dos cinquenta anos; nunca mais se abriram as janelas de sua casa. No enterro do nosso avô, compareceu um velho militante de esquerda que se perfilou diante do caixão, fazendo a saudação comunista. Como o avô era salazarista, esta homenagem visava apenas o homem bom que, vivendo de uma magríssima reforma, ainda arranjava maneira de ajudar quem precisasse.

Em Coimbra, aos dezassete anos, a Mãe conheceu o Pai. Estiveram juntos até à sua morte e, embora a Mãe fosse ainda muito nova, morreu também um pouco nessa ocasião.

Para nós, a Mãe foi luz. Para ela, a partir da morte do Pai, apenas nós existimos. Esteve sempre ao nosso lado, disposta a qualquer renúncia, a tudo abdicar, para nos ajudar; e deu-nos o que podia e, às vezes, mesmo o que não podia. Não é fácil aprender a viver sem a sua presença. E só não dizemos que a nossa dívida é imensa porque sabemos que não gostaria de pôr as coisas nestes termos: para a Mãe, não havia dívidas quando havia amor.

Foi-nos difícil perceber que a sua força assentava numa espécie de despojamento. É agora, quando já não nos fala pela manhã para saber se estávamos bem, quando já não nos pede para irmos tomar café com ela ou para passarmos lá em casa aos fins de semana, que mais sentimos a sua falta; que achamos escusadas as nossas discussões; e que lamentamos as vezes em que nos irritávamos com ela precisamente pela sua incapacidade, ou recusa, de nos contrariar.

Como a Mãe sempre pareceu mais nova do que era, nunca nos convencemos de que nos deixasse tão cedo. Aos quarenta anos, parecia ter trinta; aos sessenta, ninguém lhe dava mais do que cinquenta. E, mesmo já na fase final da sua doença, quando se queixava de ter envelhecido muito, ainda era possível dizer lhe que estava mais bonita do que tanta gente de sessenta e setenta anos, e dar-lhe exemplos, de pessoas que tinham envelhecido mal, que a faziam sorrir com carinhosa ironia.

A sua doença veio com a velocidade de um relâmpago e a Mãe desapareceu antes que pudéssemos habituar-nos à ideia da sua morte. Apercebemo-nos cedo de que já não havia esperança mas, nestes casos, só conta o momento final: até lá recusa-se a fatalidade. Nos poucos meses em que esteve doente, de Novembro até esse dia de Março, acreditámos, como se o simples facto de o querermos o tornasse possível, que tudo podia ainda acontecer: mais uns meses passados em Bruxelas; umas idas ao restaurante; a compra de um computador; e nós todos juntos. A Mãe contribuía para nos dar confiança, que mais não fosse pela sua forma de nos responder, quando lhe perguntávamos se tinha dores ou estava cansada, com um característico: «um bocadinho»; ou pelos planos que fazia para depois da operação, sem sabermos ainda se os fazia porque neles acreditava ou apenas para nos consolar.

A Mãe faz-nos imensa falta. Os dias que passaram foram os mais tristes das nossas vidas.

Dizem que, depois desta fase de tristeza, em que tudo se resume à mágoa, ao sofrimento, e à recordação do seu sorriso, ou da sua voz, ou daquela maneira que tinha de encolher os ombros e levantar os olhos, e dizer, ou fingir que dizia, «que disparate!», se seguirá uma nova forma de estarmos juntos. Acreditamos que seja verdade, que a Mãe esteja aqui ao lado, perto de nós, e que, quando a dor começar a desvanecer-se, será possível voltar a falar com ela, e apelar à sua ajuda. Dá-nos jeito pensar que a Mãe esteja no céu; porque nos dá jeito pensar que podemos, um dia, juntar-nos a ela!

O que conta hoje são aqueles momentos em que pudemos, antes da sua morte, mostrar lhe toda a nossa ternura e o nosso amor. E pensamos especialmente nesta forma de estarmos juntos, os três irmãos, como ela gostaria que estivéssemos. É verdade que isso contribui para atenuar a sua ausência: como tudo o que nos aproxima dela, dá-nos força para enfrentar a vida. Ao olharmos o caminho que aí vem, fazemo-lo com lágrimas, mas também com um enorme sentimento de orgulho: porque esta pessoa era a nossa Mãe.»

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Lembro a sua Mae com saudade.
Para mim, é alguém que nao vejo ha muito tempo. Esta entre as Caldas, a Foz e Lisboa. A tomar um galao e uma torrada na Z.A fazer horas para voltar para casa e telefonar aos filhos.
Recordo o seu riso, que nao era so com a boca mas que se prolongava nos olhos. Olhos escutos e espertos. A sua Mae sorria com os olhos.
Gosto deste seu texto. E profundamente sincero e sentido. E bom pôr por escrito o que nao se consegue exprimir em palavras. "Ha dores tao grandes que nao cabem em palavra alguma".
Voce sorri com a caneta. Podia ter sido escritor, jornalista, professor. Agora é escrevinhador nas horas vagas.

05 setembro, 2006 17:58  

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