Monica Ali - «Alentejo Blues»
Monica Ali é uma jovem romancista, nascida em 1967, filha de um pai oriundo do Bangladesh e de mãe inglesa. Nasceu em Dacca que, na altura, antes da independência daquele país, fazia parte do Paquistão Oriental, mas cresceu em Inglaterra, em Bolton, cidade que faz parte do Greater Manchester Metropolitan County que poderíamos traduzir, se as coisas se passassem por cá, por Área Metropolitana de Manchester. Estas informações seriam quase dispensáveis não fosse o facto de o primeiro livro de Monica Ali – «Bricklane» (nome de um bairro de Londres, onde vive uma importante comunidade do Bangladesh) – contar a história de Nazneen, uma jovem nascida no Bangladesh e aí prometida em casamento, de acordo com a tradição, a um homem mais velho que habita na capital inglesa, precisamente em Bricklane. Nazneen junta-se ao marido e é através do seu olhar (que conhecemos, sobretudo, através das cartas que remete para casa, dirigidas a uma prima) que nos inserimos no dia-a-dia desses imigrantes asiáticos, instalados na grande cidade. O livro teve um grande sucesso crítico mas – como seria provavelmente de esperar – não foi bem recebido pelos habitantes de Bricklane. Ainda recentemente, a tentativa de filmar no próprio bairro cenas da adaptação cinematográfica do romance deu lugar a alguns distúrbios.
Não li «Bricklane». Estas informações, obtive-as através de uma breve pesquisa na Internet que me permitiu também descobrir que não era propósito de Monica Ali acantonar-se a um tema ou a personagens precisos e conhecer a sua firme recusa em ser catalogada como a escritora da comunidade bangladeche de Londres.
Lá mudar de registo, ela mudou. O segundo livro de Monica Ali, «Alentejo Blues», trouxe-a até Portugal, mais precisamente – acreditam, depois de ver o título? – ao Alentejo. Foi este o livro que li na semana passada, preenchendo as horas deste tempo passado em Bruxelas quando toda a gente que conheço goza o sol português. (Mais uma queixa, a quem de direito!). É sobre ele que me proponho falar.
Mas tenho que confessar enormes hesitações. Na verdade, não sei bem por onde começar a dizer mal!... Isto porque, para um leitor português, o livro é irritantíssimo. A certa altura, essa irritação dá mesmo lugar a uma quase insuportável exasperação. E não se trata apenas de alguns erros ortográficos ou lexicais, que tenho tendência a perdoar, nem da introdução de frases em português às vezes a despropósito, que já me desagradam mais. Nem sequer me queixo de ter que aprender que Alentejo se pronuncia «Alentayzo» porque essa me parece uma informação útil para um leitor inglês e preciosa para nós, portugueses, se o livro viesse a transformar-se num best seller e toda a gente começasse a falar dele.
O problema é que o Portugal de Monica Ali não tem nada a ver com a realidade. A gente que ela retrata, ou não existe, ou, o que é ainda pior, nunca existiu. As suas impressões não passam de apressadas caricaturas tiradas de velhas imagens que foi colher a velhos livros. Aliás, um dos dois que cita, numa brevíssima bibliografia, chama-se «Oldest Ally: A Portrait of Salazar’s Portugal» (sublinhado meu), e os seus autores são Peter Fryer e Patrícia McGowan Pinheiro, que não conheço.
A sensação com que ficamos é que a autora se enganou no tempo. E depois, descobrimos que até se enganou no lugar. Mamarrosa, a aldeia em que a acção se situa, existe realmente, mas no distrito de Aveiro, concelho de Oliveira do Bairro, e não no Alentejo. Isto poderia ser acidental ou acessório. Mas é um exemplo, entre outros, do que vai mal no livro de Monica Ali.
A verdade é que, quando se pega nas personagens portuguesas, quase tudo soa a falso. Teresa quer emigrar para Londres mas, imagine-se, como «fille au pair»! A sua mãe passa o tempo a ver telenovelas. O seu irmão engravidou a filha de uns ingleses que sobrevivem, numa miséria aproximada, numa casa que deixaram inacabada porque, entretanto, o dinheiro que, suspeitamos, vinha de actividades ligadas ao tráfico de drogas, acabou. Outra personagem, Vasco, regressou dos Estados Unidos para abrir um café; a mulher, americana, morreu – e, graças a Deus, nos Estados Unidos, o que nos evita uma segura digressão sobre a má qualidade dos serviços de saúde em Portugal que seria, esta sim, muito propositada – de preeclampsia, uma doença que afecta mulheres grávidas e se caracteriza por aumento de peso e inchaço (e deve ser por isso que Vasco é obeso e sua como um porco!).
Na cena de abertura do livro, Rui, um velho alentejano, que foi, nos tempos de Salazar, perseguido e preso pela PIDE, suicida-se. O seu corpo é descoberto por João, outro velho de mais de oitenta anos. Ficamos a saber, estupefactos, que João sempre esteve apaixonado por Rui. Este «amor», aliás, concretizou-se uma vez – uma só vez – mas, a partir daí, Rui, envergonhado, correu a casar-se com Dona Rosa Maria e arranjou maneira de nunca mais se encontrar a sós com o amigo. Com o corpo frio de Rui nos braços, João diz: «Querido (em português e em itálico). Ruizinho.» Beliscamo-nos para termos a certeza de que nos serviram tanto disparate. Porque bastaria uma pequena pesquisa, bastaria mesmo alguma sensibilidade e bom senso, para compreender que, se existiram por certo homossexuais no Alentejo nos anos quarenta ou cinquenta, sugerir que existia algo que se assemelhasse a um amor homossexual é quase um insulto aos indivíduos curvados pela sensação de vergonha e objecto de desdém, escárnio e, tantas vezes, maus-tratos físicos (um pouco à semelhança do Ângelo Garcia de «Mau Tempo no Canal»). Por muito que isso doa a Monica Ali, a homossexualidade, nesse tempo e no Alentejo, era sobretudo vivida – e principalmente pelos próprios – como uma infâmia, uma desonra. Se alguns homens dessa época conseguiram ultrapassar essa situação e assumir perante si mesmos e, mais dificilmente, perante os outros, a sua sexualidade, não foi certamente entre os trabalhadores rurais alentejanos que os encontrámos. A leveza com que este tema é tratado por Ali acentua a sensação difusa de incomodidade provocada por «Alentejo Blues» e deixou-me, pessoalmente, profundamente agastados.
Finalmente, ainda temos direito ao novo brasileiro! Toda a aldeia vive à espera de Marco Afonso Rodrigues, um filho da terra que enriqueceu em negócios de lavandaria e limpeza a seco e em lugares distantes, e cujo regresso trará empregos, negócios, fortuna e novos horizontes. A sua chegada no último capítulo (de comboio, diga-se de passagem, que parece incongruente – esperávamos vê-lo chegar num Mercedes branco, descapotável – mas tem sentido porque, como se verá mais tarde, Marco Afonso está longe de ser quem aparenta) constitui o clímax do livro. Este é o momento em que todos se encontram, numa festa popular, a Festa da Mamarrosa, que tem lugar na Casa do Povo «late in November» – pretexto para Ali nos apresentar, com muita graça e algum talento, alguns pratos tradicionais portugueses (e outros que o são menos, com um fígado frito com chili que não se sabe donde veio – será pimentão?), à medida que Vasco os devora.
Se a acção se situasse nos anos sessenta, num dos países pobres do Sul da Europa, possivelmente mas não necessariamente em Portugal – o Alentejo de Ali não é profundamente diferente, menos o talento, de uma descrição da Grécia do pós-guerra que li num romance da escritora holandesa Hella Haasse «Les Initiés» – ainda podíamos ficar convencidos. O desalento, a pobreza e o conformismo católico da população (há mesmo um padre, o que, no Alentejo, tem algo de incongruente - lembre-se um dos grandes estudos sociológicos escritos em Portugal: «Ricos e Pobres no Alentejo», de José Cutileiro) transportam-nos para os tempos em que a única possibilidade aberta para fugir à fome e ao desalento, ao atraso e à pobreza, era efectivamente a emigração. A democracia e a adesão à Europa arrasaram, felizmente, este cenário. Se é verdade que nem tudo são rosas neste Portugal do início do século XXI – longe disso! – não o é menos que o país de hoje nada tem a ver com o país de que Salazar gostava e onde nos quis encerrar.
Entendamo-nos. Se não fosse a tentativa de Monica Ali de nos mostrar uma aldeia portuguesa confrontada com aquilo que José Sócrates chamaria os «desafios da modernidade», uma modernidade representada pelo Café Internet que não tem acesso à Internet, pelos estrangeiros, turistas ou residentes, pelos dinheiros da CEE e pelos projectos de investimento atribuídos ao filho da terra que toda a gente pensa que tem mãos a abarrotar de dinheiro, ainda podíamos engolir a inverosimilhança de situações e personagens. Com efeito, enganar-se no país, ou no século, pode acontecer a qualquer um – e daí não vem enorme mal ao mundo. O que aflige é que, infelizmente, isso leva a que o enredo pareça colado com cuspo. É como se Monica Ali destruísse o seu propósito, já de si algo pretensioso (descrever o embate da modernidade numa comunidade tradicional), só pelo prazer de inserir algumas observações actuais sobre a União Europeia, os incêndios florestais, o mau funcionamento dos serviços públicos, as telenovelas, a Internet.
Dou por mim a perguntar-me se a minha reacção ao romance seria tão negativa se a acção se situasse na época que influenciou Monica Ali: ou seja, in Salazar's Portugal. Provavelmente, não. Mas isso não chega para tudo perdoar. Porque a questão essencial permanece. Que fazer de um texto que pretende retratar o nosso tempo e nos mostra uma personagem, Teresa, que quer ter a sua primeira experiência sexual com António, jovem da sua idade e mecânico da terra, e, para isso, decide introduzir-se às escondidas numa casa de «ricos» que habitam em Lisboa e que só vêm a Mamarrosa aos fins-de-semana ou nas férias? Quem acredita que o sonho dessa miúda seja perder a virgindade, deitada num tapete sobre a tijoleira, de vestido branco e rodeada de quadros nas paredes caiadas, num ambiente que ultrapasse o quotidiano triste da vila? Com franqueza! Onde é que Monica Ali encontrou esta juventude, digamos: desamparada? Este ano, no Algarve, os meus filhos conheceram rapazes e raparigas de 14, 15 ou 16 anos de idade, que faziam amor na praia, à noite, entre uma sessão de karaoke e duas rodadas de cerveja. São coisas como esta que nos dão vontade de lançar o livro pela janela.
Et pourtant... Isso seria uma reacção exagerada. Porque há alguns aspectos do romance que valem a pena. Em primeiro lugar, a estrutura da história. Trata-se, na verdade, de oito narrações diferentes, que se entrelaçam pelo elemento «lugar» (Mamarrosa) e por alguns elementos acidentais extremamente bem conseguidos (um encontro na rua, uma breve discussão entre namorados a propósito doutra pessoa), e se fundem numa grande cena final. Por outro lado, é inegável o puro talento literário de Monica Ali. A pintura da paisagem alentejana, com os sobreiros de braços levantados, a sua atenção às cores, ao vermelho da terra e das árvores, aos sons dos carros, dos homens e das galinhas, ao cheiro da terra e de uma vaca morta, e o seu poder de descrever os elementos do quotidiano associando-lhes imagens que nunca parecem artificiais, constituem trunfos poderosos. (Ela é, de certeza, uma «birdwatcher» mas as suas observações sobre os pássaros integram-se harmoniosamente no decurso da história.)
Por outro lado, as personagens de origem inglesa estão melhor desenhadas que as portuguesas. É certo que os problemas com que se defrontam são, ainda assim, aflitivamente convencionais. Temos um antigo traficante de droga que se instalou em Mamarrosa com a família, mulher desesperada, filha a dar em putinha, filho rebelde; um escritor em pane de inspiração que dorme com mãe e filha anteriormente citadas; uma mulher de sessenta anos que viaja com o marido (de quem nunca sabemos o nome; e só por uma vez se menciona o seu apelido) depois de o filho os ter informado que era gay; e dois namorados que estragam as férias a pensar no casamento futuro mas sem falar dele: ela quer casar pela igreja para agradar aos pais, ele aceitou para lhe agradar mas anda contrariado. Mas, pelo menos, são problemas que, embora não particularmente excitantes, podem existir sem que sejamos obrigados a forçar a ferros a verosimilhança das situações.
Finalmente, há algumas passagens em que se nota sentido de humor e uma apreciável leveza. Não resisto a citar esta, sobre a relação entre sexo e as categorias de hotéis, que é feita pelo jovem inglês que passa a noite com a namorada na Pousada dos Lóios: «Em regra, o sexo adere à classificação das estrelas: uma estrela, perfunctório; duas estrelas, eficaz (businesslike); três estrelas, confortável; e quatro estrelas, dependendo do ambiente e do estilo, lascivo, experimental ou barroco». Que acrescentar para certos hotéis de cinco estrelas? Lascivo, experimental e barroco, tudo ao mesmo tempo, provavelmente! Ou, no Hotel Maria Cristina, em San Sebastian e há alguns anos, viagem, descoberta, oásis, pensamento.
Apesar destes pontos positivos, estejam, no entanto, prevenidos que, quanto mais leio o livro (e reli-o para escrever este texto), menos gosto dele. Depois disto, façam como quiserem. De qualquer maneira, sempre ficamos a saber o que pensa do Alentejo – «a região mais pobre do país mais pobre da União Europeia antes de subirem a bordo os macacos do Leste». Sic! –, de Portugal e de todos nós, uma promissora escritora britânica.
5 Comments:
estão "melhor" ou "mais bem" desenhadas? Como vês ando a ler teus textos.......
Não sei! Antigamente, dizia «mais bem desenhadas» mas, à força de estar longe de Portugal...
Caro Zé Pedro,
Esse livro deixei-o a meio. Um pasticcio mal investigado, cheio de erros e que embora comece bem (são seguramente as melhores páginas do livro) não mantem o ritmo e deixa de interessar. Foi de facto uma grande decepção, sobretudo depois do Bricklane, de que gostei muito, e que aproveito para aconselhar vivamente.
Carlos, Mesmo assim, achei mais graça às ultimas páginas - as da festa na Casa do Povo. Foi a única vez que sorri. Zé Pedro
Eu vim viver para o Alentejo e parece-me que estas personagens podiam perfeitamente cá viver
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