quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Sarah Waters - «The Night Watch»



















Li vários livros nestas férias que passei, na sua maioria, sozinho e em Bruxelas, o que deve ser uma dupla forma de solidão, dado que a cidade, em Agosto, se esvazia. (Lágrimas e suspiros – sorrisos irónicos de alguns a pensarem: lá está ele a pedir-nos que o choremos.)

Mas o melhor de todos eles foi este: «The Night Watch» de Sarah Waters. Sarah Waters tem um site oficial (aqui: http://www.sarahwaters.com/) e por isso não tenho aqui que me alongar na sua biografia – mesmo se aí não se encontram grandes informações, o que se espera seja um sinal de discrição. Basta-me dizer que nasceu em Inglaterra (Neyland, Pembrokeshire) em 1966, tendo, portanto, quarenta anos – que inveja! O seu primeiro livro «Tipping the Velvet» foi publicado em Fevereiro de 1998. «The Night Watch» é o último, de Fevereiro deste ano. Entre os dois, existem ainda «Affinity» (1999) e «Fingersmith» (2003). «The Night Watch» faz parte da «shortlist» dos livros candidatos ao Man Booker Prize. (O resultado final só será conhecido em Novembro.)

Nos seus primeiros três livros, Sarah Waters escreveu sobre a época vitoriana mas a acção de «The Night Watch» situa-se durante e imediatamente a seguir à 2ª Guerra Mundial. O livro, aliás, começa do fim para o princípio: as primeiras cenas são de 1947; o grande quadro central situa-se em 1944; e o epílogo leva-nos aos diversos momentos «em que tudo começou», em 1941. Isto tem como consequência que sabemos que nenhuma das personagens morreu durante a guerra. Ao contrário do que poderia esperar-se, a falta deste elemento de surpresa não prejudica o interesse da história. Pelo contrário, permite-nos, ou melhor, obriga-nos, a concentrar-nos sobre a descoberta do passado das personagensas e das razões que as levaram à situação em que as encontramos, fazendo entrar pela entrada principal o suspense que parecia ter partido pela janela.

Durante algum tempo, foi cómodo considerar Sarah Waters como uma escritora acantonada numa espécie de gueto, que escrevia sobre mulheres lésbicas da época vitoriana, sobre prostitutas, ou sobre loucas. Mesmo nas suas primeiras obras, este tipo de apreciações era injusto e, sobretudo, apoucava os seus méritos inegáveis de escritora: a sua extraordinária facilidade no manejo da linguagem, a sua incrível capacidade de contar histórias e de misturar em enredos credíveis as personagens que criava.

Tudo isso está presente neste último livro. Assistimos a três histórias interligadas entre si pelos laços de família entre certas personagens ou pelo cruzamento acidental de algumas delas. Há uma história que gira em torno da relação entre Kay, Helen e Júlia; uma outra que se centra em Duncan; e a terceira que tem Vivien, a irmã de Duncan, por personagem principal. Mas o que principalmente une os destinos de todos é a guerra – as suas consequências, enquanto dura e depois de terminar, na vida de todos eles.

A guerra – ou, mais propriamente, os bombardeamentos de Londres, principalmente em 1944 – é, com efeito, a principal personagem da história de Sarah Waters. De certa forma, enquanto ela durava, tudo parecia mais fácil porque alguém decidia por todos o que era, ou não era, importante. Duncan está na prisão (a princípio, pensamos que foi condenado por homossexualidade mas a sua situação é mais complicada), acompanhado por presos de delito comum, alguns homossexuais e vários objectores de consciência. Entre estes últimos, Robert Fraser irá reencontrá-lo em 1947 e mostrar-lhe-á o caminho de um possível futuro. Em 1941 e 1944, Kay trabalha no serviço de ambulâncias. Com ela, nas mais extraordinárias cenas do livro, percorremos Londres, de noite, debaixo dos bombardeamentos alemãos. Kay vive a guerra como uma libertação: ou melhor, vistas as coisas pelo outro lado do prisma, vive o tempo de paz como uma nova prisão. Durante a guerra, ninguém se importava com o facto de ela ser lésbica. Ela e as suas amigas podiam usar calças e outros adornos masculinos sem que as olhassem na rua. Antes pelo contrário, notava-se nos outros admiração e reconhecimento porque o seu trabalho era penoso e levado a cabo com grande coragem. Com a paz, voltam os sorrisos irónicos que lhe dirigem nas suas costas homens preocupados com recuperar a «normalidade». Vivien vive uma história de amor com um homem casado: o fim da guerra traz consigo apenas a certeza de que o que parecia transitório e imposto pelas circunstâncias não era mais do que a realidade comezinha de uma relação impossível, feita de encontros furtivos por onde escorrem os restos do amor.

O mais extraordinário neste livro é a capacidade descritiva da escrita de Sarah Waters. As cenas nocturnas dos bombardeamentos, em Londres, principalmente no capítulo central, correspondente a 1944, são-nos rendidas de forma estupenda, pela maneira vívida como nos são apresentados, não os acontecimentos, o que daria uma impressão de estrutura que a autora tem o cuidado de evitar, mas a simples sucessão das coisas, dos movimentos, ruídos, sombras e cheiros, que preenchem o tempo (a fazer lembrar a descrição da batalha de Waterloo em «La Chartreuse de Parme», de Stendhal). Ouvimos o estrondo dos aviões, mas também o barulho mais fraco dos pneus da ambulância que passam por cima de vidros partidos e de pedras soltas nas estradas esventradas; os suspiros dos feridos e o troar das baterias. A noite é percorrida por raios de luz lançados pelas defesas antiaéreas, que correm o céu à procura dos aviões inimigos, e a transformam num jogo de sombras, onde se desenham e se apagam as imagens dos prédios em ruína, dos rostos dos feridos e dos restos dos mortos. Mas a maior parte da noite cobre-se do negro da luz extinta de uma cidade que se defende. Os cheiros são o cheiro pestilento das bombas caídas, o cheiro a pó, a sangue, a suor, o cheiro a madeira ardida e a borracha queimada. (Noutro plano, mas não podia deixar de referi-lo, a descrição de um aborto efectuado no consultório de um dentista, que furtivamente os pratica e discute o preço antes de começar, é outra cena de antologia.)

Por outro lado, subjacente ao livro encontra-se um trabalho de escrupulosa pesquisa, de longas leituras sobre as condições de vida, os hábitos, os pormenores da vida de um quotidiano que está já para além da nossa experiência pessoal mas de que ainda, alguns de nós, conservam a memória ou ouviram falar. Fizeram-me sorrir as referências a essa espécie de crepitar das telefonias da época, que pareciam mal sintonizadas; ou aos movimentos de dupla embraiagem quando Kay utiliza a caixa de velocidades da sua ambulência. A telefonia de casa da minha avó lançava os mesmos ruídos de fundo e o meu pai falou-me várias vezes dessa forma de embraiar necessária em certos carros antigos para engrenar as mudanças (carregar na embraiagem até ao ponto morto, largá-la, voltar a carregar para passar à nova velocidade - e não só quando se reduzia mas também quando se passava à velocidade superior.)

A pintura das personagens faz apelo a imagens estupendas, os diálogos são justos, os sentimentos descritos de uma forma ao mesmo tempo profunda e leve, em pinceladas que os sugerem mais do que em digressões que os explicam.

Neste sentido, este romance é profundamente moderno, demonstrando a possibilidade e mesmo a vitalidade deste género literário no início do século XXI. Não se trata, é claro, de voltar à estrutura clássica de um Dickens ou dos romancistas russos do século XIX, apresentando, por exemplo, uma história com «princípio, meio e fim» ou, à maneira de Henry James, retratos psicológicos finamente desenhados de pessoas apanhadas na teia de situações complicadas mas algo artificiais. Não só a inversão cronológica, esse tempo de Sarah Waters que, como já disse, anda de trás para a frente, do presente para o passado, em busca de motivos e razões, que contribui para rebentar com os quadros tradicionais. É também que, em «The Night Watch», não há propriamente uma história. Em vez disso, assistimos a diferentes momentos da vida das personagens, que fluem sem possibilidade de epílogo. Como na vida, não há soluções, porque os anos correm sem as trazer: e, pelo contrário, cada momento que passa apresenta novas dificuldades.

Ao mesmo tempo, nada mais longe de Sarah Waters do que o chamado romance intimista ou, para usar um termo francês, algo desprezivo mas que me parece perfeitamente adequado, «nombriliste». A mania de alguns escritores franceses modernos de olhar o seu próprio umbigo e nele encontrar um poço de sabedoria não deixou nenhuma marca nela. Kay, Duncan, Vivien e todos os que giram em torno deles têm uma vida que vai para além das preocupações da autora, dos seus problemas ou dos seus fantasmas. São, assim, ao mesmo tempo, personagens profundamente reais e perfeitamente construídas, ou mesmo, talvez, reais porque construídas com imenso cuidado e atenção. O autor dá-lhes vida e deixa-os falar. Há, neste livro magnífico, uma pluralidade de vozes e é por isso, entre outras coisas, que ele me parece inserir-se numa real modernidade. E trata-se de uma modernidade que dispensa as grandes inovações formais que, por vezes, nos são enfiadas pela boca abaixo e que, se são aceitáveis em grandes, grandes escritores (penso, por exemplo, entre os de que mais gosto muito, em Axionov), são insuportáveis em gente de menor talento - que provavelmente deveria limitar-se a romances policiais, porque aí há necessidade de contar uma história. Há também aqui, confesso, uma certa referência a alguns autores portugueses (e não estou a pensar em Lobo Antunes! Mais para os lados de Mafalda Ivo Cruz.)

Seja como for, a verdade é que gostaria de encontrar em Portugal um romance como «The Night Watch». Sarah Waters é uma grande escritora e este é um grande, grande, livro. Recomendo-vos vivamente que o leiam.