domingo, 3 de setembro de 2006

To Kill a Mocking Bird - The Case for Human Decency


Há dias, em Bruxelas, encontrei uma amiga que não via há bastante tempo. Nessa mesma tarde, enviei-lhe uma mensagem em que, como é meu hábito, falava de livros e, em resposta, ela disse-me que tinha terminado «To Kill a Mockingbird», de Harper Lee. O livro ganhou o prémio Pulitzer em 1961 mas, principalmente, deu origem a um filme célebre, com o mesmo título. (Em português, chamou-se «O Sol é para todos» - um título que é um perfeito disparate.) Gregory Peck ganhou o único Óscar da sua carreira (embora tenha sido nomeado cinco vezes) pela sua interpretação de Atticus Finch, um advogado de uma pequena cidade de província, no estado americano do Alabama, onde Harper Lee nascera e crescera.

O livro encerra, com efeito, bastantes elementos autobiográficos. E, embora Harper Lee tenha escrito três ou quatro ensaios e nunca tenha abandonado a chamada comunidade literária, «To Kill a Mockingbird» foi o seu único romance. Nunca mais escreveu outra obra de ficção.

Comprei o filme na FNAC (21,60 €) e vi-o no fim-de-semana, enquanto esperava pelos meus filhos, que chegam de Lisboa hoje, domingo, e começam as aulas na terça-feira. Tinha-o já visto uma vez, mas seguramente há mais de trinta anos. Como acontece tantas vezes com os filmes que pensamos ter esquecido, a memória despertou pouco a pouco à medida que algumas imagens me envivam sinais que reconhecia . Lembrava-me, em particular, da cena em que Atticus Finch mata um cão raivoso. O filho de Atticus não imaginava que ele soubesse sequer manejar uma arma e, quando o xerife lhe diz que o pai era o melhor atirador da região, vemos crescer o orgulho do miúdo e a sua admiração.

O enredo é simples. Através do olhar de "Scout", seis anos e meio, a filha mais nova de Atticus Finch, um advogado numa cidade do Alabama, Maycomb, em 1932, é-nos contada uma história de preconceito e injustiça. Tom Robinson, um homem negro, é acusado de violar uma mulher branca e Atticus é nomeado para o defender. Homem de princípios, recusa o papel que um cobarde teria assumido: o de fazer da defesa uma mera formalidade, sem verdadeiramente lutar pela absolvição do seu cliente, que sabe inocente. Mas o filme apresenta-nos também, para além de algumas soberbas aventuras de infância reunindo três crianças que crescem e exploram a sua cidade (Scout, Jem, o seu irmão mais velho, e Dill, um amigo que vem passar as férias a casa de uma tia, vizinha dos Finch), um conjunto de personagens que vão desde o pai da rapariga que diz ter sido violada – um homem mau que acusa Atticus de ser um «nigger lover» – até um jovem que a família fechou em casa, e que se suspeita ser louco, mas que, no final, se revela sob outra luz.

Um aspecto particular tem a ver com o título. Numa ocasião, ao almoço, Atticus Finch fala de armas. Diz, dirigindo-se indirectamente ao filho, que, a partir de certa idade, é absolutamente natural que os rapazes aprendam a manejá-las. Começarão por visar latas no pátio mas, mais tarde, desejarão atirar sobre pássaros. E isso também está na ordem das coisas. Mas o que não se pode fazer é matar um rouxinol. Os rouxinóis são aves que não fazem mal a ninguém e nos encantam com o seu canto. Matá-los – compreendemos – seria acto de cobardes.

Há imensos filmes que exploram os temas deste: a descoberta do mundo dos adultos; um homem injustamente acusado; o racismo; a nobreza e dignidade de alguns homens. Porque é que «To Kill a Mockingbird» nos deixa, ainda hoje, uma impressão magnífica? Porque nos comove tanto? Talvez a razão possa resumir-se ao título que dei a este artigo: «human decency». O filme é um elogio aos homens capazes de transcender os preconceitos da comunidade em que vivem e de acreditar numa justiça que vale para todos.

Temos que transportar-nos para a América do início da década de sessenta, na época do «civil rights movement», da luta pelos direitos cívicos da população negra, em particular, para compreendermos todo o sentido e alcance do filme. Há coisas, nele, que nos parecem anacrónicas. Hoje, esperaríamos que Atticus Finch adoptasse uma atitude mais agressiva nos seus contra-interrogatórios e que conseguisse fazer absolver o seu cliente. Mas isso era uma impossibilidade naquele tempo e lugar: na América, no Sul, nos anos trinta, na época da depressão económica. A morte de Tom Robinson estava inscrita nos factos. Nenhum júri composto de homens brancos absolveria um homem negro acusado de violação. Aos homens do júri não interessava saber se o réu era culpado. Não é isso que está em jogo, não é a essa pergunta que respondem quando o condenam. Uma frase do filme diz tudo: um homem negro não pode apiedar-se da sorte duma mulher branca, nem ajudá-la. He’s a «nigger»; she’s a white woman.

No cinema moderno, pela força de convicção de um advogado interpretado por Matt Dammon ou Ben Affleck, que lutaria contra ventos e marés, chamaria à barra testemunhas hostis e conseguiria quebrá-las, Tom Robinson seria vitoriosamente absolvido. Alguns dos filmes actuais são uma mera paródia, mesmo bem intencionada, da realidade.

Mas isso nem sequer é o fundamental. O mais importante é que nos apercebamos, por um lado, que se esses finais felizes são possíveis na América de hoje, isso só acontece porque houve homens negros (e alguns homens brancos) que lutaram, e se comportaram como heróis, quando se tratou de atacar a discriminação que era um «fact of life», não apenas no Sul vencido na guerra da Secessão mas no resto do país. Vem-nos à memória, imediatamente, o nome de Martin Luther King. Mas gostaria de juntar-lhe, entre muitos outros, e porque o filme fala de um jurista, o nome de Thurgood Marshall, advogado negro a quem se deve, num caso célebre (Brown vs Board of Education of Topeka), que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decretasse o fim da segregação racial nas escolas – pondo fim à política infamante do «separate but equal» que impedia que estudantes negros e negros estudassem nas mesmas escolas. Marshall foi nomeado por Kennedy para juiz desse mesmo Supremo Tribunal e morreu em 1993, com 84 anos.
















Por outro lado, e como que a provar que nem tudo são rosas, os polícias brancos que bateram Rodney King, em Los Angeles, em 3 de Março de 1991, foram absolvidos um ano depois por um júri de dez homens brancos, um latino e um asiático. O julgamento deu origem aos mais graves incidentes raciais da história da cidade e é a prova, se necessário, de que muito há ainda a fazer para que seja possível falar de direitos iguais e, sobretudo, de iguais oportunidades.

Mas o filme comove-nos por outras razões. Uma delas vem de que, como disse, os acontecimentos nos são apresentados através das palavras cheias de encanto de uma menina de seis anos, para quem o pai e o irmão mais velho são personagens heróicas. Não é, obviamente, a primeira vez que, no cinema ou na literatura, se apela ao olhar duma criança para determinar a perspectiva da história mas, neste caso, este procedimento é tocante. Estávamos na idade de ouro do cinema americano, no tempo da inocência, precisamente.

A segunda razão – e aquela que queria sublinhar – é que o filme nos fala de um mundo que já não existe mas que recordamos com saudade e nostalgia. Estamos num tempo em que Atticus diz aos seus filhos que não são ricos mas que há gente muito mais pobre do que eles; mas sobretudo num tempo em que essas coisas não tinham grande importância. Tenho lido ultimamente algumas obras de Christopher Lasch, um sociólogo e filósofo norte-americano, morto em 1994. No seu último livro («A Revolta das Elites e a Traição da Democracia»), escrito quando já sabia que ia morrer, Lasch deixa-nos, à guisa de testamento, uma avaliação extremamente pessimista do mundo actual. Segundo ele, o culto da riqueza e do espalhafato e o logro da ascensão social destruíram os laços entre os indivíduos e impedem que as pessoas se respeitem, mesmo quando se opõem ou discordam entre si. Hoje, apenas se pensa na ascensão social, camuflada sob o manto respeitável da igualdade de oportunidades. Ou seja, em dar a todos a possibilidade de passarem de pobres a remediados, de remediados a ricos, de ricos a muito ricos. Mas nada une as diferentes classes. Quem sobe na «escala» social tem apenas como objectivo isolar-se, o mais depressa que conseguir, e da forma mais estanque possível, dos que deixou para trás. Daí, as escolas privadas, os sistemas de saúde convencionados, os condomínios fechados.

Segundo Lasch, houve um tempo, na América, em que mesmo a voz das pessoas que não tinham conseguido «subir na vida» era ouvida e tinha algum peso – ou seja, em que era possível o debate democrático, mesmo em face das desigualdades sociais. Se os Estados Unidos sempre se caracterizaram por enormes diferenças económicas entre pobres e muito ricos, era motivo de orgulho para os americanos pensarem que existia, entre eles, uma possível igualdade social e que, na sua maioria, as elites se preocupavam com o homem comum e contribuíam, com a sua inteligência e o seu trabalho, para melhorar a sorte de todos. Durante algum tempo, foi possível considerar a América como «the land of opportunity». Mas isso era o resultado de as pessoas não serem postas de lado com base exclusivamente no insucesso material.

Não é esse o nosso tempo. Por isso, Atticus Finch nos parece como um visitante de outro planeta, dum mundo em que a simpatia e a decência surgiam como critérios de humanidade; em que a eficácia não tinha sido transformada no padrão uniforme de todas as coisas; e era possível compreender e perdoar. Não se tratava de um mundo de que tivessem desaparecido a injustiça, a miséria, a opressão; nem sequer a maldade humana. Bastaria o próprio filme para o provar! Mas era um mundo em que os pecados não se vestiam com o manto das soluções necessárias e era possível ter razão estando sozinho; em que o idealismo conseguia fazer calar opositores; e em que não éramos levados a acreditar que só havia uma única solução para todos os problemas, sejam eles, o terrorismo, a globalização, a reforma da segurança social, o desenvolvimento económico, as acções em favor dos sem-abrigo, etc.. Um tempo em que era ainda possível prosseguir um percurso individual. E, no cinema, o tempo em que ainda podíamos sonhar.

Era evidentemente, também, um tempo de injustiça e de dor. Não é minha intenção negá-lo. Mas creio que a verdadeira mensagem de Lasch é que, então, as elites se insurgiam contra essas realidades e não se empenhavam em as justificar, como agora acontece, brandindo, numa notável inversão das coisas, o argumento marxista da inevitabilidade histórica para explicar as principais misérias do capitalismo moderno ou alinhando argumentos jurídicos complicados para legitimar a tortura de combatentes inimigos; e em que existia, da sua parte, uma real preocupação com a sorte de todos os homens, mesmo daqueles que não tinham tido a sorte, ou a possibilidade, ou mesmo a capacidade e a inteligência, de nascerem ou se tornarem ricos e famosos.

Num inquérito do «American Film Institute», Atticus Finch surge em primeiro lugar numa lista de heróis de filmes americanos, à frente de Indiana Jones e James Bond, à frente mesmo de Rick Blaine (Humphrey Bogart em «Casablanca») e de Clarence Bailey e Jefferson Smith (James Stewart, nos dois filmes de Frank Capra, «It’s a Wonderful Life» (Título português: «Do Céu Caiu uma Estrela») e «Mr Smith goes to Washington»).

Infelizmente, ficamos com a ideia de que o inquérito foi feito antes da América se ter transformado na América de Reagan e, principalmente, na América de Bush. E antes também de ter começado a exportar o seu novo credo - o credo egoísta e disparatado dos que pretendem que o êxito e a publicidade são a medida de todas as coisas.