sábado, 28 de julho de 2007

Campo santo










O meu Pai também tinha os olhos muito azuis. Por isso, este poema de Vasco Graça Moura sempre me comoveu. Mas o meu Pai nem vinha de Leça mas da Covilhã, duma cidade que, na altura, estaria como nestas fotografias aqui em cima (e muitas vezes me pendurei na balaustrada que se vê na fotografia da esquerda), nem está em Leça, mas nas Caldas, como a minha Mãe, no jazigo que lá temos. Mas isso são detalhes. O que importa é a sensação de pena e de distância que nos deixa o poema e, ao mesmo tempo, o orgulho e o amor que nele descobrimos.


campo santo em leça da palmeira

o meu pai está em leça da palmeira, lá perto do farol da boa nova,
num cemitério varrido pela nortada e pelo cheiro a maresia,
não longe das melhores coisas do siza vieira e de lugares do antónio nobre,
não longe da petrogal e dos seus grandes cilindros metálicos,
não longe do lugar onde nasceu, numa casa depois demolida para as obras do porto de [leixões,

quando ele era pequeno. um dia a mécia de sena trouxe uma fotografia,
cedida por um amigo comum, de um renque de casas junto ao mar.
fiquei com uma ideia da casa dos meus avós na leça de fins do século
e de como o mumdo é ainda mais pequeno do que eu imaginava.
agora o meu pai já só escuta o ronco da sereia e as buzinas do nevoeiro,

e passa-lhe por cima, em cadências regulares, um facho de luz rasgando a noite.
agora já não vê as banhistas a menearem-se entre o sol, a areia e a água,
nem diz "olha, aquela é muito potável" com um riso que sempre irritou a minha mãe,
agora fiquei eu com a integral do balzac que ele passava a vida a ler,
e faz-me a maior das impressões que ele esteja para ali sem livros, sem o eça, sem nós todos.

o meu pai morava ali perto. no silêncio das luas já não sabe onde era a sua casa.
a gente passa nos dias do costume a deixar-lhe flores e algum recolhimento,
ou então um de nós diz "fui com a mãe pelo cemitério", sem falar no nome dele.
isso não é uma rasura, mas um sinal mais forte que perturba a densidade das palavras,
porque o meu pai tinha os olhos muito azuis, e essa cor às vezes fica ali no mar.

(Vasco Graça Moura)