segunda-feira, 9 de julho de 2007

A Europa e a Grã-Bretanha: uma entrevista de Giscard d'Estaing

Valéry Giscard d’Estaing, hoje com 81 anos, continua a ser uma das personalidades mais lúcidas da cena política europeia. Este homem que, em termos de inteligência pura (se este conceito tem alguma validade) não perde em comparação com nenhum outro político europeu, viu-se afastado do poder e exerceu sobre o seu país uma influência limitada, muito aquém do que podia esperar-se, unicamente em razão do seu defeito maior: uma arrogância patrícia, propriamente insuportável, traduzida as mais das vezes numa condescendência aborrecida em relação ao resto do mundo. Esta complacência levou-o a desprezar Chirac e a não prestar atenção a Mitterrand. E por isso, de entre todos os Presidentes da Republica francesa, de de Gaulle a Chirac, ele foi o único que não foi reeleito. No seu célebre debate com Mitterrand em 1981, este, muito mais à-vontade do que sete anos antes, lançou-lhe, em resposta à acusação de Giscard segundo a qual ele seria «l’homme du passé», a réplica célebre: «et vous, vous êtes l’homme du passif.» A sorte de Giscard ficou assim selada até porque Chirac, seu antigo Primeiro-ministro, manobrou secretamente para garantir-lhe a derrota (embora publicamente lhe tivesse prometido apoio.) Quando deixou a presidência, Giscard deu aos franceses um espectáculo ridículo, difícil de esquecer mas bem demonstrativo da dimensão do orgulho desse homem em que a soberba fazia esquecer a inteligência: depois dum discurso tosco, levantou-se, deixou a cadeira vazia, e saiu por uma porta de duplo batente que se via ao fundo do ecrã, deixando os franceses perplexos à procura do sentido desse gesto mais do que déplacé que ainda hoje faz o gaúdio de caricaturistas... Como quer que seja, Giscard nunca se recompôs e, anos depois, teve mesmo que assistir, com um sorriso forçado, à eleição de Chirac, que detestava, para o lugar que considerava seu por direito.

Mais tarde, Giscard foi o Presidente da Convenção que, em 2003, elaborou o projecto do Tratado de Constituição Europeia, de triste memória depois dos referendos francês e holandês, nos quais cidadãos irritados por um projecto que parecia avançar sem que ninguém fosse ouvido votaram de forma clara no sentido de matá-lo e enterrá-lo.

Mas Giscard d’Estaing continua a ser, nomeadamente em matéria de política europeia, um homem lúcido, com uma inigualável capacidade de comunicação e persuasão. Vale a pena, assim, ler com atenção a sua entrevista à revista Le Point (5 de Julho.) Para além de alguns esclarecimentos sobre o contexto e os resultados do recente Conselho Europeu, as suas considerações sobre o papel da Grã-Bretanha no processo de construção europeia são essenciais e merecedoras de profunda reflexão.

Giscard considera que os britânicos, em relação ao texto do projecto de Tratado Constitucional, conseguiram atenuar muitos dos progressos arduamente conseguidos: mesmo que não sejam de subestimar os avanços em matéria institucional (presidência estável, comissão com composição reduzida, controlo mais eficaz do princípio da subsidiariedade, melhor organização do poder legislativo do Parlamento Europeu) não há, no texto recentemente aprovado em Bruxelas, «aucune autre avancée institutionnelles que celles prévues dans le projet de Constitution. En fait de nouveautés, il n’y a que quelques reculs ou quelques baisses d’ambition, qui vont dans le sens des demandes britanniques

Mas o essencial dos comentários de Giscard tem a ver com a sua análise da evolução das concepções britânicas relativamente ao projecto europeu. Assistimos a um «changement profond dans l’attitude des britanniques vis-à-vis de l’Europe. Ils sont passés d’une traditionnelle interrogation sur l’intérêt de participer à l’intégration européenne à une conviction: il n’est pas utile pour la Grande-Bretagne de franchir de nouvelles étapes dans (cette) intégration

Esta mudança de atitude verifica-se, não apenas nos meios populares, tradicionalmente desconfiados em relação à Europa continental, mas sobretudo nos meios económicos e financeiros e, através deles, na classe política e naquilo que, antes de Margaret Thatcher, era costume denominar como o «establishment» (e que, claro, continua a existir embora os diplomados de Oxford e Cambridge tenham sido, em parte, substituído por milionários recentes.) Ela justifica-se pelo facto de a Grã-Bretanha considerar que, num mundo caracterizado pela globalização e pela abertura mundial dos mercados, a Europa surge como «un obstacle, un frein, une source de complications.» Londres orienta-se claramente na direcção da aliança atlântica, com os Estados Unidos como parceiro privilegiado, da mesma forma que, pelo menos até 1970, sempre preferiu reforçar os seus laços com a Commonwealth em relação às suas ligações europeias. Ninguém, no Reino Unido, pretende aderir ao euro ou a Schengen; pelo que existe actualmente «une spécificité britannique forte dans l’Union européenne

Ora, isso obriga o governo britânico, mas sobretudo os outros governos europeus que queiram prosseguir na via da integração, na construção duma união estreita entre os povos do velho continente, a reflectir sobre «la nature de la participation britannique à la construction européenne. (...) Il faut imaginer avec (le Royaume-Uni) quelque chose qui ne me paraît pas hors de portée. Intellectuellement, c’est assez facile; pratiquement, c’est plus compliqué. La démarche pourrait être la suivante: dans tout ce qui est économie de marché et coopération intergouvernementale, les Britanniques ont leur place. Dans ce qui est intégration politique, ils peuvent, s’ils le désirent, se tenir en marge. La difficulté est institutionnelle. Comment, dans ces conditions, participent-ils au Parlement européen? Comment votent-ils et sur quels sujets au Conseil?»

Independentemente de concordarmos ou não com o Presidente Giscard d’Estaing (em França, os títulos mantém-se com carácter honorífico mesmo depois de terem cessado as funções que os justificam), não podemos evitar a questão que ele coloca nesta entrevista: a do concreto papel do Reino Unido na estrutura institucional europeia ou, dito doutro modo, do claro afastamento britânico em relação ao projecto europeu. Até porque Gordon Brown, o novo Primeiro-ministro inglês é dos principais representantes dessa corrente de opinião que não compreende o lugar e o papel da União Europeia num mundo caracterizado pela globalização. A posição britânica não vai aproximar-se, nos próximos tempos, da opinião da maioria dos países europeus (que, por outro lado, beneficiariam também se se dessem ao trabalho de reflectirem sobre a sua posição e os seus interesses em vez de papaguearem as palavras dos pais fundadores, como se estas fossem tiradas do Evangelho.) Todos em suma ganhariam em pegar no telefone e fazer uma chamadinha para Clermont-Ferrand.