sábado, 7 de julho de 2007

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade conta-se entre os maiores poetas portugueses de sempre e faz parte do conjunto de poetas da segunda metade do século XX que justificam que esse tempo constitua um dos períodos mais extraordinários de sempre da poesia portuguesa. Para mim, o seu nome acompanha os de Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena e David Mourão-Ferreira para formar o quarteto sublime dos poetas portugueses posteriores a Fernando Pessoa. (Outros, como Torga ou ainda Manuel Alegre, Ruy Belo, Pedro Tamen, Graça Moura, Ramos Rosa ou Fiama Hasse Pais Brandão, podiam ser acrescentados à lista, mas esta representa, como é evidente, a minha sensibilidade pessoal.) Qualquer um deles teria merecido o Prémio Nobel e, se este tivesse sido atribuído a um poeta português, recompensaria um género que, entre nós, assumiu uma pujança notável que suplanta, sem comparação, a prosa lusa do mesmo período. Para além do mais, Eugénio de Andrade é o poeta preferido do Carlos Bonhorst e ele já por várias vezes me censurou o seu esquecimento neste blogue. Mais valendo tarde do que nunca, ficam aqui alguns dos seus poemas.

Antes deles, no entanto, um breve comentário. Os versos de Eugénio de Andrade caracterizam-se por uma enorme beleza formal; cada palavra, cada nome, cada verbo, são cuidadosamente pensados, em função do seu valor expressivo mas também da sua conjugação com a forma e na medida do poema. Há uma profusão de imagens ligadas ao campo, à natureza: aves, árvores, flores, frutos, espigas de trigo, fontes, rios... O amor que o poeta canta é enxertado nestas paisagens construídas que dançam com o corpo, as mãos, a face, os olhos, a boca dos amantes em surpreendentes combinações.

Os seus poemas são belos – mas não são, ao contrário por exemplo dos de Pedro Homem de Mello, cantáveis (era Natália Correia que considerava este último poeta como o poeta cantabile por excelência.) Opõe-se ao canto, precisamente, o rigor do discurso. Uma vez, ouvi Miguel Veiga dizer que Eugénio de Andrade escrevia em papel quadriculado, fazendo corresponder cada quadrícula a uma letra ou a uma sílaba, tal era a sua preocupação com os aspectos formais que lhe apareciam como essenciais para a definição da sua voz e do seu ritmo. Vale a pena considerar as palavras do poeta a respeito da sua própria poesia. Eugénio de Andrade era não só um criador mas também como um espírito lúcido e crítico. Eis o que ele diz de si mesmo: «Sou um homem da margem, na grande tradição da poesia portuguesa, e a criação poética não é para mim coisa amável – a poesia é uma prática de desassossego. (...) A poesia é a fala de uma pessoa com outra. (O carácter da minha escrita), as minhas preferências vão para arquitecturas mais rigorosas, onde um punhado de substantivos e alguns verbos, fascinados pela transparência, se equilibram em tensão constante, e a voz contida não impeça cada sílaba de subir a prumo.»

Aqui ficam alguns poemas.

I.

Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
- Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos


III.

Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.

V.

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.

IX. Madrigal

Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.

XXVIII.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e da lua.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.

(As Mãos e os Frutos, 1948)


Os Amantes sem Dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos sues dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

(Os Amantes sem Dinheiro, 1950)

Anunciação da Alegria

Devia ser verão, devia ser jovem:
ao encontro da manhã ia cantando
como quem entra na água.

Um corpo nu brilhava nas areias
– corpo ou pedra?, pedra ou flor?

Verde era a luz, e a espuma
do vento rolava pelas dunas.

Soltei os olhos sobre aquele corpo,
o coração latindo de alegria.

De repente vi o mar subir a prumo,
desabar inteiro nos meus ombros.

Sem muros era a terra, e tudo ardia.

(Ostinato Rigore, 1964)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

ora bem, mas que honra esta citação no teu blog!
Concordo com (quase) tudo o que escreveste, sugiro só mais um poema para a tua micro-antologia:
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

(Adeus, os amantes sem dinheiro)

10 julho, 2007 16:28  

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