sexta-feira, 6 de julho de 2007

A Europa e Mugabe

É muito raro encontrar-me de acordo com José Manuel Fernandes, o ultra-liberal (mas vindo da extrema-esquerda) director do Público. Assim, quando isso acontece, é caso para referência e regozijo (ou então, cedendo a um ataque súbito de cinismo, caso para pensar que estaremos ambos enganados!)

Vem isto a propósito da futura cimeira Europa-África, uma das prioridades da Presidência portuguesa, e do convite ou não-convite dirigido a Robert Mugae, Presidente do Zimbabwe, para nela participar. À primeira vista, a situação parece simples. Mugabe é um ditador impiedoso. A sua política, orientada apenas pela vontade de se manter no poder a qualquer custo, traduziu-se e traduz-se (utilizando as palavras de José Manuel Fernandes) em «destruir o país e aterrorizar a sua população.» A oposição é perseguida e os seus líderes são presos e maltratados ao menor pretexto, ou mesmo sem pretexto. A política económica é um desastre: não há possibilidade de atenuar ou sequer matizar esta constatação. A esperança de vida é de 37 anos para os homens e de 34 para as mulheres. Os níveis de incidência do sida são dos mais altos de África e, em cada hora, uma criança sofre abusos sexuais. A agricultura do Zimbabwe foi destruída pela perseguição demagógica aos agricultores brancos – motivada apenas, através da criação dum clima de medo, pela necessidade de evitar uma derrota eleitoral prevista. «No antigo celeiro de África, hoje morre-se de fome.» Não há investimento e a inflação atinge a taxa anual de 3.700%.

É este governante, um homem que desqualifica os líderes africanos e até a luta pela independência, que a Europa, cedendo à chantagem da União Africana, quer convidar para a cimeira. Diz José Sócrates que a cimeira é mais importante do que posições de princípio relativamente a Mugabe. Que, se «há países (europeus) que podem muito bem conviver com a ausência de diálogo político com África ao longo de sete anos, há um país que não convive bem com isso e que não quer que isso continue: Portugal, país que ocupa agora a presidência (da União)». Trata-se duma espécie até agora desconhecida de argumento de autoridade. Sou presidente da UE, logo posso e quero e mando...

Mas nem por isso deixa de ser um argumento fantástico (que, em última análise, poderia ser utilizado para justificar que nunca se interrompessem contactos com qualquer ditador que tivesse merecido o opróbio da comunidade internacional: lembro-me de Milosevic ou Saddam Hussein e pergunto-me se o nosso primeiro-ministro estaria disposto a retirar todas as consequências do que diz também nestes casos!) Quem sofre com Mugabe não é o resto do mundo nem, muito menos, os países e governos europeus ou, em particular, Portugal, cujos interesses José Sócrates considera estarem em jogo nesta cimeira. Quem sofre com Mugane são os cidadãos do Zimbabwe. Vale a pena, assim, ouvir as suas vozes. Em particular, vale a pena pena atentar nas palavras recentes do Arcebispo de Bulawayo, Pius Ncube, que pediu a intervenção não violenta de forças estrangeiras para remover Mugabe do poder, dada a terrível situação em que se encontra o país. Portugal que, no caso de Timor, conseguiu ultrapassar as receitas dum falso e improvável realismo diplomático, devia ter agora a coragem de pautar a sua conduta pelos princípios que defende, especialmente pelo que respeita a uma intransigente defesa dos direitos humanos onde quer que eles sejam desrespeitados. Devia, neste caso lamentável, recusar a presença em Lisboa do tirnao africano. Concordo com os que dizem que a União Africana é a principal responsável por esta situação, ao insistir na presença de Mugabe na cimeira de Dezembro. Mas a chantagem dos governos africanos não deveria merecer senão o desprezo dos políticos ocidentais, para além do mais sempre prontos a dar lições de moral quando se dirigem aos povos do resto do mundo, árabes, asiáticos ou africanos, ou quando apressadamente, e por meras razões de política interna, aparecem a promover esse tonto diálogo de civilizações ou religiões, tão tonto como o choque ou conflito entre elas. (Como já ouvi dizer, as pessoas dialogam e conversam, e até lutam, as civilizações e as religiões não!).

Se a anulação da cimeira é o preço a pagar por não ceder a essa chantagem, so be it. Trata-se de mostrar solidariedade a quem a merece e dela necessita: a população, o povo do Zimbabwe. E isso parece-me muito mais importante do que os benefícios eventuais que podem retirar-se destes grandes espectáculos teatrais que são estas cimeiras.