Pedro Caldeira Cabral em Bruxelas - Guitarra Portuguesa à l'honneur
Os que me conhecem sabem que, nestes últimos tempos, para que saia de casa é preciso quase apontarem-me uma arma. Estou a tornar-me num verdadeiro bicho-do-mato e, mesmo quando por fim me decido a aceitar convites ou a essas actividades tão simples, como ir ao cinema, ao teatro, a um concerto, há sempre um momento, antes ou depois do duche, antes ou depois de começar a vestir-me ou de calçar meias e sapatos, em que me apetece telefonar a dizer que não vou, que apanhei um resfriado, que estou com gripe, que me dói o estômago, que caí nas escadas e parti um braço ou uma perna, que o carro está sem bateria, que as crianças estão doentes ou, enfim, que o cão precisa de ir ao veterinário. Tenho a certeza de que, se pudesse contactar esses amigos por correio electrónico, ainda sairia menos do que é habitual. A necessidade de falar ao telefone, e a sensação, verdadeira ou falsa, de que o tom da minha voz me denunciaria, levam-me, quase sempre, a resignar-me ao meu fado e a essas saídas. Confesso, também que quase nunca me arrependo. É mais uma espécie de preguiça do que um carácter anti-social.
Seja como for, ainda bem que não consegui encontrar desculpa que não fosse esfarrapada quando a Vanda me convenceu a acompanhá-la ao concerto que Pedro Caldeira Cabral deu em Bruxelas, na passada sexta-feira, dia 12 de Outubro. Pensei a princípio que se tratasse dum evento (palavra o combien detestável) organizado pela Presidência portuguesa e preparava-me para encontrar todo o conjunto de gente que é presença habitual nestas ocasiões. Nada disso. Nunca encontrei o senhor Vasco da Ascensão mas foi ele que, conhecendo Pedro Caldeira Cabral, o convenceu a vir a Bruxelas: e em boa hora o fez! O concerto realizou-se no espaço Molière, ali para os lados da Porte de Namur. Portugueses estavam alguns, embora poucos, muito poucos se comparados com tanta gente de outras nacionalidades que enchia as salas. Não tenho acompanhado o programa cultural da Presidência portuguesa mas espanta-me que não tenham pensado em Pedro Caldeira Cabral e neste seu recital sobre a guitarra portuguesa.
Tratou-se dum espectáculo inesquecível e não por qualquer efeito mediático ou de publicidade mas apenas pela sua formidável qualidade. O programa foi desenhado com notável inteligência. Tratava-se, em primeiro lugar, de ilustrar a história do fado através das músicas compostas pelos mais célebres guitarristas portugueses. Como disse Pedro Caldeira Cabral, o fado é actualmente associado, de forma quase exclusiva, ao canto, e os seus protagonistas mais conhecidos são as fadistas e os fadistas (Amália, em particular e, tratando-se de canto, com toda a razão). Mas eram os guitarristas, os cultores da guitarra portuguesa, que, em tempos passados, ensinavam as canções e as formas de cantar, era através deles que se transmitia a memória do fado, eram eles os guardiães da tradição.
A guitarra portuguesa teve origem na cítara que é conhecida em Portugal pelo menos desde o princípio do século XVI. Garcia de Resende informa-nos que, em 1521, foram embarcadas uma cítara e três violas no navio que levou a princesa D. Beatriz, filha de D. Manuel, para Sabóia. Informações deste tipo são-nos transmitidas ao longo do espectáculo, sempre a propósito.
A primeira parte do concerto, que começou com uma obra anónima que é a mais antiga música de fado de de que há registo escrito, é dedicada a guitarristas célebres, cujas obras são interpretadas com mestria por Pedro Caldeira Cabral. Luís Carlos da Silva “Petroline”, celebre guitarrista dos finais do século XIX e princípios do século XX, que cantou para o Czar e para o Rei de Portugal e Reinaldo Varela, autor de um célebre método de estudar e tocar a guitarra portuguesa, são exemplos de guitarristas de Lisboa. Com Anthero da Veiga e Gonçalo e Artur Paredes, estes últimos fazendo parte duma família de guitarristas que viria a terminar com o grande Carlos Paredes, passamos ao estilo de Coimbra. Voltamos a Lisboa com Armando Freire “Armandinho”, para cuja redescoberta na década de 80, Caldeira Cabral contribuiu decisivamente, e José Nunes, amador, empregado na EDP, acompanhador de Amália e considerado por esta como o melhor de todos os seus acompanhadores. Referência especial mereceu também a família Grácio, construtores de guitarras que fabricaram para Artur Paredes e a Armandinho novas guitarras que incorporavam alterações técnicas inovadoras que ainda hoje perduram.
Depois do intervalo, uma primeira parte foi inteiramente dedicada a Carlos Paredes, de que ouvimos as principais obras, entre as quais as Variações em Ré Menor e o célebre Verdes Anos, música do filme de Paulo Rocha. Depois Caldeira Cabral interpretou obras de sua autoria, de entre as quais vale a pena destacar as Variações sobre os Verdes Anos, a música composta para o documentário Castro D’Aire e o Fandango, mostrando um apreciável ecletismo – não se esqueça que, no início da sua carreira, adaptava à guitarra portuguesa obras renascentistas, barrocas, clássicas ou românticas. Acabámos, entre aplausos entusiasmados e sinceros, com três encore, de entre os quais as Variações sobre o Fado Lopes permitirem ao guitarrista demonstrar, como se fosse necessário, o seu virtuosismo. A acompanhá-lo à viola, Joaquim António Silva, que, neste papel geralmente ingrato mas necessário, assumiu a abnegação e a modéstia necessárias.
Mas o principal trunfo e motivo de regozijo desta soirée foi, sem sombra de dúvida, o próprio artista. Sente-se em Pedro Caldeira Cabral um profundo respeito pela tradição que representa e é patente, a cada momento, o seu sincero orgulho em ser o continuador de uma notável linhagem de cultores da guitarra portuguesa. Ao mesmo tempo, Caldeira Cabral é um daqueles (poucos) homens que, íntimo conhecedor dos temas que apresenta, não precisa de levantar a voz para ser ouvido: nele destaca-se uma grande e comunicativa simpatia e uma humildade que é pouco habitual encontrar nestes tempos em que a superficialidade impera. Nada disso, nem a sua cultura ou inteligência, nem o seu sucesso, o impede de demonstrar um discreto sentido de humor, como sinal de que não se dá demasiada importância. O que disse de Carlos Paredes, com quem partilhou, durante anos, o mesmo acompanhador (Fernando Alvim) e, particularmente, as suas palavras sobre a sua doença, foi comovente sem ser lamechas. A descrição que fez das diferentes festas populares ligadas aos Baile dos Caretos, de Trás-os-Montes, deixou-nos a todos um sorriso nos lábios. Já quando o vi na televisão, há alguns meses, num programa dedicado à história da guitarra portuguesa, tinha ficado impressionado com este misto de cultura e modéstia que nos apresentava. Agora, fiquei entusiasmado. E vou repensar esta minha mania de ficar em casa – pelo menos quando se tratar de ir assistir a espectáculos como este.
1 Comments:
Excelente resumo e "debriefing" de um espectaculo de grande qualidade. Faço minhas as suas palavras. Ainda bem que veio!
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