quinta-feira, 3 de julho de 2008

Um poema de Sophia

Um livro recente de Frederico Lourenço (tradutor da Ilíada e da Odisseia, de Homero) fez-me pegar nas poesias de Sophia de Mello Breyner e, principalmente, nas duas obras por ele referidas: Geografia (1967) e Dual (1972). A poesia de Sophia nunca deixa de encantar-me: mergulho nela sempre como se fosse a primeira vez. A surpresa, o deslumbramento, a sensação de segredo e mistério não desaparecem, mesmo depois de mil leituras, mesmo quando sei os poemas de cor. Como é possível dizer tudo numa só curta frase? Como podem as palavras - as mesmas palavras que todos nós conhecemos e usamos - significar tanto e deixar-nos assim extasiados?

Fica aqui uma poesia de Geografia, sobre a morte de Frederico Garcia Lorca. A primeira estrofe faz-me lembrar irresistivelmente uma frase da Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena, que já aqui citei várias vezes: «foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seu corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória». Por outro lado, sempre pensei que os genocídios só são possíveis, moralmente e fisicamente possíveis, porque os seus autores são incapazes de imaginar o rosto dos que matam.


Túmulo de Lorca

Em ti choramos os outros mortos todos
Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força.

Não podemos aceitar. O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu foste assassinado

Não podemos aceitar. O processo não cessa
Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado.

(O desenho é de Carlos Botelho)