O que ando a ler?
O que ando a ler? Estranhamente, apenas dois livros (para além de, como sempre, me debruçar, de vez em quando sobre um ou outro volume dos que se alinham contra as paredes da sala ou do quarto ou se acumulam nos degraus da escada antes de a Sirley as levar para o escritório): Runaway (na tradução francesa, Fugitives), de Alice Munro; e The Fall of the Roman Empire, de Peter Heather.
O nome de Alice Munro veio para os jornais, há poucos dias, porque lhe foi atribuído o terceiro Man Booker Internacional Prize. Ao contrário do Man Booker Prize, que tantas vezes tenho citado aqui neste blogue, o Man Booker International recompensa (um pouco à semelhança do Prémio Nobel) a contribuição global de um autor, a sua obra, e não apenas um livro e é atribuído a autores de língua inglesa ou cujos livros estejam, em grande parte, disponíveis em inglês. Este ano, por exemplo, um dos finalistas era Mario Vargas Llosa que, como todos sabemos, é peruano e escreve em castelhano. Os prémios anteriores foram, aliás, atribuídos a um nigeriano que escreve em inglês (Chinua Achebe, em 2007) e a um albanês, que considero um dos mais fantásticos escritores europeus e cuja obra conheço bem, e que escreve em albanês (Ismail Kadare – ou, em francês, Ismaïl Kadaré – em 2005).
Alice Munro, uma canadiana, foi, para o público em geral, uma escolha surpreendente. Mas, para os seus pares, a decisão do júri teve um carácter de quase evidência. Ela é unanimemente admirada pelo que podemos chamar «a comunidade literária». Margaret Atwood, outra escritora canadiana e crítica literária (já vencedora, em 2000, do Man Booker Prize com um livro assombroso: The Blind Assassin) costuma dizer o seguinte: «Well, we talk a lot about writing. But look at Alice Munro: that is writing!» A razão de Munro ser pouco conhecida é simples: o seu género é o conto, a short story, por oposição ao romance. Que eu saiba, apenas escreveu um romance Lifes of Girls and Women e não é por causa dele que é conhecida.
Algumas das suas histórias contam-nos, porém, momentos diferentes da vida das mesmas personagens (é o caso de, pelo menos, três contos deste Fugitives.) A minha primeira impressão é formidável. As suas narrativas parecem-se com um fluxo, às vezes com um princípio (o início duma viagem, uma vizinha que regressa a casa) mas, naquelas que já li, sem fim, deixando pairar uma indecisão sobre o futuro que afinal se limita a imitar a vida. Excelente!
(Entre parênteses, estou a lê-la em francês porque o único livro que consegui encontrar dela aqui em Bruxelas foi este Fugitives. Na livraria inglesa, o nome Munro prima pela ausência). Mas a tradução é óptima e sempre concordei com Kundera quando ele diz que quase todos nós acedemos às grandes obras da literatura mundial em tradução e dá o exemplo dos grandes escritores russos do século passado).
Como é evidente, o meu segundo livro nada tem a ver com romances ou contos mas é uma descrição que beneficia da imensa pesquisa histórica da escola inglesa sobre o primeiro milénio da nossa era (de que o nome mais importante é certamente o de Peter Brown de quem aqui nunca falei, numa falha que pretendo corrigir em breve). Ele constitui, por assim dizer, a abertura que precede, como numa ópera, o meu interesse actual e as minhas leituras sobre o período (quase) indiferentemente chamado The Late Antiquity ou The Early Middle Ages - que se define como a transição entre os tempos finais dos romanos e o início da Alta Idade Média, ou seja, aproximadamente, entre os anos 300 e 800 (ou, para alguns autores, 1000) da nossa era.
Peter Heather transforma o que poderia ser um trabalho enciclopédico e maçador num livro fascinante, recheado de de histórias e de personagens que nos fazem quase encarar aquela época como se nela vivêssemos. É evidente que, ao escrever um livro como este, qualquer historiador se confronta com a sombra de Edward Gibbon e da sua mais que famosa The History of the Decline and Fall of the Roman Empire. Mas a simples mudança de título, com o apagamento do termo «decline», é já indicativa de uma nova perspectiva, hoje predominante, que não identifica necessariamente a queda do Império Romano com a ideia de decadência ou de substituição de uma civilização superior por um conjunto de bárbaros de cultura rudimentar que atravessaram as fronteiras do império e puseram termo a um período excepcional da história da humanidade. Este livro integra-se numa corrente que se recusa a identificar a Idade Média com a Idade das Trevas, ponto de passagem entre duas modernidades, a dos romanos e a da Renascença. Muito interessante.
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