Boa dia - boa disposição, algumas reflexões, em fundo de Foz do Arelho
Esta tarde, quando a Carol e o António telefonarem, vou-lhes propor que passemos na Filigranes para ver os livros e, talvez, comprar um ou outro. Já há muito tempo que não passo pela Filigranes, em parte porque andava cansado, em parte porque a livraria começou a aborrecer-me. Mas é mais prudente do que ir, por exemplo, à Tropismes: mais central, cadeiras onde, se necessário, me possa sentar, e a possibilidade (longínqua) de grignoter qualquer coisa.
Só o sol desapareceu e Bruxelas cobrou-se da sua habitual capa cinzenta. Chove. Por isso, pus aqui uma fotografia da Foz do Arelho, praia da minha mocidade, adolescência e juventude. É este o mar que amo.
Começo a colocar-me perguntas simples mas provavelmente irrespondíveis e ao mesmo tempo, paradoxalmente, importantes sobre a minha doença. Porquê tão depressa? Porquê sem sinais, sem aviso, sem possibilidade de reagir? Porquê esta descoberta quase fortuita? A pior pergunta é: Porquê eu? Sei que tudo isto se resume, afinal, a um conjunto de circunstâncias infelizes em torno das quais involuntariamente rodo e não faço tenções de centrar a minha luta nestas questões: seria um desperdício de recursos. Mas quero compreender a minha doença, o cancro (falo da minha doença mas não falo do meu cancro: este quero eliminá-lo), porque esta compreensão faz parte da minha maneira de a vencer. Por isso, é que a franqueza, o conhecimento exacto do meu estado, mesmo com notícias que, por vezes, são desagradáveis (metástases! Outra palavra que gostava de abolir), constituem elementos essenciais da minha cura.
Não sou religioso. Não tenho o consolo do além. Não acredito que, num dia claro, por entre trompetas, espíritos e corpos se reencontrem para uma reunião final, de alegria, bondade e glória divina. Respeito os que acreditam e reconheço que essa convicção lhes dá conforto, alívio e força. Mas eu encontro tudo isso em coisas terrenas: no amor das minhas filhas e do meu filho, das minhas netas, dos meus genros, desta família que me rodeia e enche de ternura, na amizade de alguns, na recordação de outros que já desapareceram. De qualquer maneira, não seria aos cinquenta e cinco anos que trocaria as minhas convicções por promessas ilusórios de salvação. Sempre encarei a morte como um longo silêncio escuro mas sereno e não mudei de opinião.
Assim, entre espezinhar o"mostrengo" e recusar o bálsamo de um além descrente, decido-me a ir em frente, a lutar, a batalhar. O primeiro passo (a quimioterapia de ontem) foi uma vitória. Sinto-me bem. A pequenos passos (quem sabe?), posso percorrer grandes espaços.

3 Comments:
Caro ZP,
Já te enviei um sms mas a resposta está neste post: fico (ficamos todos, o circulo dos teus amigos) muito satisfeito com esta primeira vitória e sobretudo com o tom positivo que quiseste dar a este texto.
Sim e a ida à Filigranes é mesmo uma excelente ideia.
Daqui te mando um grande abraço.
Contas com todos aqueles que te querem bem, e que te querem a viver bem. O teu primo está sempre contigo.
Querido Zé Pedro
Só agora dei conta do que estás a passar! Quero te dizer que estamos contigo - conta connosco para o que precisares - e que tenho a certeza absoluta que vais ultrapassar este obstáculo na tua vida! Conheço n pessoas (ainda ontem estive com uma delas e que por acaso vive aí em Bruxelas!)que vivem com toda a qualidade, apesar dos cancros que têm há anos.
Vamos te escrever por email.
Um grande beijinho/abraço com muita amizade
Teresa e Carlos
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