quinta-feira, 20 de maio de 2010

Elites

Há dois ou três anos, Miguel Veiga veio a Bruxelas e deu uma conferência na Livraria Orfeu. Foi, se bem me lembro, a propósito do seu livro Os Poemas da Minha Vida. Na discussão que se seguiu concordámos em que David Mourão-Ferreira era um dos maiores poetas portugueses – e relativamente menorizado, em relação aos seus contemporâneos. Mas discordámos, de forma frontal, sobre o que é costume chamar a elite portuguesa. Para Miguel Veiga, tratava-se principalmente de um problema de comunicação. As nossas elites, de qualidade comparável às dos restantes países europeus, não conseguiam afirmar-se "na cena internacional", por falta de uma estratégia adequada de conhecimento e relações públicas. Para mim – e disse-o de forma clara no momento de perguntas e respostas que se seguiu à conferência – as nossas proclamadas elites simplesmente não existiam. Vivemos num país de falsas inteligências. Como dizia uma amiga minha, que trabalha no Parlamento Europeu, os portugueses que cá chegam confrontam-se com gente de qualidade e competência a que não estão habituados lá em casa. Enquanto, em Lisboa, toda a gente curva a cabeça diante dum Ministro, aqui mesmo os ex-Ministros encontram diante de si gente com sólida preparação intelectual. E, então, as nossas pretensas elites portuguesas esvaem-se misteriosamente.

Isto não quer dizer que não haja gente de qualidade em Portugal, capaz de competir, em domínios determinados, com os grandes da nossa terra. Assim, a poesia portuguesa do final do século XX é talvez, no seu conjunto, a melhor poesia do mundo. Não seria fácil reunir, em nenhum país, gente como Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Ruy Bello, David Mourão-Ferreira, Miguel Torga, Eugénio de Andrade – e falo só de alguns para não esquecer algum nome de entre os menos conhecidos. Mas muitos outros houve e há (mesmo sem falar dos brasileiros). Julgo que só o problema de o português ser (relativamente) uma língua menor explica que esta extraordinária arte poética não seja universalmente reconhecida.

Mas, ao mesmo tempo, isto não significa que existam verdadeiras elites em Portugal. E, sobretudo, que os poucos homens de valor que por aí existem (com algumas poucas e honrosas excepções) não manifestem um profundo desprezo pelo povo a que pertencem. São como gente dos arrabaldes que conseguiram escapar ao destino dos seus colegas de escola. O que sobretudo pretendem é nunca voltar à sua origem. São, por isso, altaneiros e arrogantes; e agressivos. Exigem submissão. Não suportam discussões ou contrariedades. Isso não define uma elite: falta-lhe a capacidade de inspiração, de melhorar o comportamento daqueles que deveriam dirigir. Preocupam-se com si próprios e com a sua imagem; o que lhes importa é aparecerem diante do mundo como pessoas capazes de decidir. José Sócrates é o melhor exemplo desta mediocridade. Passos Coelho aproxima-se dela. Pacheco Pereira ou Vasco Graça Moura, com uma estatura intelectual que nada tem a ver com os dois outros, perdem-se em diatribes repetitivas que os desqualificam e nada acrescentam ao combate político. António Vitorino sorri – e diz nada; e consegue, sem nada dizer, dizê-lo de forma imodesta. Saramago goza os rendimentos de um Prémio Nobel objectivamente imerecido (porque, a haver um Prémio Nobel português, seria um poeta que deveria ganhá-lo). Pelo contrário, Miguel Esteves Cardoso, que tanto critiquei aqui, no início das suas crónicas no Público, revela-se uma surpresa agradável, com artigos que vão além do mero comentário e revelam uma personalidade preocupada com os problemas das pessoas de todos os dias. Siza Vieira, por seu lado, acumula prémios devidos e há outros desconhecidos que fazem obra maior; e José Mourinho é, justamente, porque é o melhor no seu ramo, o português mais conhecido e apreciado no mundo inteiro.

O problema é que os poucos homens de génio ou talento que temos não se importam minimamente com Portugal e os portugueses. Luís Figo disse, para escândalo das gentes do burgo, que gosta de Portugal e dos portugueses mas que, aqui, nada o interessa. Logo se levantou um coro de protestos, a lembrar-lhe o que deve a Portugal. Em verdade, nada! Como Cristiano Ronaldo, que, se tivesse continuado no Sporting, teria o destino de João Moutinho.

Assim, logo que as poucas pessoas de talento que por aí temos se deparam com a oportunidade de se irem embora, partem. Durão Barroso, Guterres, são os exemplos mais conhecidos. Mas há mesmo exílios internos. Jorge Coelho confessou, outro dia, que poderia ter sido Primeiro-Ministro, mas acrescentou que, nas actuais circunstâncias, só um doido deixaria o mundo empresarial pelo mundo político. Ou seja, traduzido em palavras claras, os nativos que se lixem. Nós, empresários, políticos, por cá tudo bem; vós, aí, nos bairros sociais; vós, reformados a viver com 350 euros por mês ou menos; vós, desempregados, a quem dificultam a obtenção do subsídio de desemprego; vós, classe média, sem capacidade para mandar os filhos para as melhores escolas – vós, que pena! Não nascestes do bom lado da barreira. É isso o darwinismo nacional-social.

Se a culpa é, em grande parte, de Sócrates, não é apenas dele. Como diria o Estebes, é "esta cambada". Por isso, quando me falam das luso-elites, sorrio. Já nem tenho, sequer, vontade de rir.