segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Boa Esperança

Este é o Cabo da Boa Esperança, que Bartolomeu Dias atravessou quando ainda se denominava Cabo das Tormentas. D. João II mudou-lhe o nome para sublinhar o futuro magnífico dos navegadores portugueses: a descoberta (do caminho marítimo) da Índia. Dominado o Adamastor, "o mostrengo que está no fundo do mar", ficou a vontade do monarca português.

Também eu me encontro diante do meu Cabo das Tormentas e, como o rei, quero mudar-lhe o nome para Boa Esperança. A minha doença é grave mas tudo farei para vencê-la. Conto com a ajuda das minhas filhas, da Sofia, da Inês, da Trezzu, do meu filho, do Dico, dos meus outros dois filhos que são o Diogo genro e o João, e de alguns grandes amigos. Conto com o meu ânimo e o meu optimismo. Empenharei todas as minhas forças nesta batalha, que é a mais importante de toda a minha vida. E espero que também eu possa impor a minha vontade, atado ao meu leme onde sou mais do que eu, a este mostrengo que se agora ergue na minha passagem. E que, espezinhado, ele se acolha no fundo do mar e de lá não desperte.



O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Fernando Pessoa
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