segunda-feira, 8 de maio de 2006

Criadas e cartas de amor - Portugal nos anos 70


Em Portugal, há trinta ou quarenta anos, muita gente não sabia ainda ler e escrever. E assim, quando a nossa criada Amélia encontrou o Armindo e começaram a namorar (e até, tempos antes, a pensar em namorar), precisou de alguém que lhe lesse as cartas que recebia e lhe escrevesse as que iriam, em resposta, de Lisboa às Caldas da Rainha, onde ele trabalhava como marceneiro. Será preciso lembrar que, então, não havia telemóveis e que mesmo o telefone era caro e usado apenas, por gente que não nadasse em dinheiro, em casos de urgência?

A Amélia recorreu a mim, que era o mais velho dos três rapazes que viviam lá casa. E assim, pelo menos uma vez por semana, cabia-me o encargo de passar ao papel, em letra arredondada, facilmente legível, as frases de amor – melhor seria dizer: de atenciosa amizade – da Amélia. As cartas quase não variavam. Depois de uma introdução em que se davam e pediam notícias recentes, e em que se inquiria pela saúde do outro e se ofereciam novas da própria, seguia-se o corpo dedicado à evolução da amizade e, depois, do namoro ou, mais tarde, aos preparativos para o casamento. Eu tentava alterar um pouco certas frases ou expressões mas a Amélia era inflexível naquilo que considerava serem os parâmetros da decência e as conversas apropriadas entre duas pessoas que uma relação caracterizada por uma intimidade crescente mas distante. Não havia espaço para a imaginação ou lugar para o amor, e as cartas assemelhavam-se a ofícios saídos de repartições públicas. As suas exigências davam uma coisa do género:

«Senhor Armindo,
Espero que esta carta o encontre de saúde, que eu por aqui me fico bem. A senhora e os meninos estão também bem e recomendam-se. E o senhorArmindo, como tem passado? Eu, no fim-de-semana, fui a casa da minha irmã, na Amadora. Espero que, um dia destes, possa acompanhar-me lá para conhecer a minha irmã, o meu cunhado e os meus sobrinhos. Por agora, não conto ir às Caldas senão nas férias da Páscoa mas, nessa altura, ficarei com a senhora e os meninos durante, pelo menos, quinze dias. Receba um aperto de mão desta que muito o estima. Amélia.»

O senhor Armindo transformou-se, com o correr do tempo, no Armindo, mas nunca chegaram a tutear-se. E a última frase, quantas vezes a tentei alterar! Até ao casamento, contudo, a Amélia sempre se recusou a mudá-la e a enviar ao seu noivo e futuro marido, em vez deste respeitoso «passou-bem», um simples e casto beijo.

(Texto inspirado por «A Felicidade dos Amantes», encontrado no blogue «Disperso Escrevedor» (http://sonhocomandavida.blogspot.com/), de Manuel José Matos Nunes. E há lá outros parecidos, impondo uma visita.)