Pinochet
Normalmente a pergunta é: «Onde te encontravas quando Kennedy morreu?» A ideia é que estes acontecimentos constituem marcos relevantes na vida de cada um de nós. Ora, se eu sei precisamente onde me encontrava quando Robert Kennedy foi assassinado – na casa da Rua Saraiva de Carvalho, onde vivemos depois de termos regressado a Lisboa, numa altura em que já frequentava o D. João de Castro – ignoro, pelo contrário, o que me aconteceu quando John Kennedy foi morto em Dallas – e é a John Kennedy que a pergunta normalmente se refere. É natural: nessa altura, em 1963, tinha apenas 8 anos. Vivíamos ainda na Madeira ou já em Cascais? Nem disso me lembro.
Mas recordo-me exactamente de onde estava, e do que fazia, quando soube da morte de Salvador Allende: na quinta dos pais duma namorada minha, em Rio Maior, e a sentar-me à mesa para começar o almoço. Presumo, por isso, que a notícia apenas tenha chegado a Portugal no dia seguinte ao do golpe: a 12 de Setembro de 1973. Era o tempo de antes do 25 de Abril. Tínhamos seguido a experiência chilena com a esperança dos que acreditavam que a liberdade também nos chegaria. A morte de Allende e o fim da democracia chilena deixaram-nos devastados. Em casa dessa minha namorada, foi-me servido o prato habitual duma direita que, na altura, nem sequer se envergonhava de apoiar ditaduras: que a intervenção se justificava pelo estado caótico a que Allende conduzira o país. Ordem, ordem, ordem! Pinochet, Salazar: mesmo combate.
Na altura, não conhecíamos Pinochet. Ele apareceu-nos pouco depois, com os traços desta fotografia. Mais tarde, depois de ter deixado o poder, gostava de se apresentar com outra imagem: avô rico e anafado, homem de prestígio e paladino da honra militar. Desapareceram os óculos escuros, desapareceu a farda, substituída por fatos escuros, com as calças a subirem bem acima da cintura e as gravatas cuidadosamente ajustadas. O ar demente foi substituído por um sorriso forçado. Rodeado de filhos, rodeado de netos... Um homem normal, em suma.
Mas um homem normal que mandou para a morte, logo nas primeiras semanas depois do golpe de Estado, pelo menos 1800 pessoas. E cujas vítimas, algumas delas atiradas para o mar de aviões a mais de 3.000 metros de altura, com os olhos vendados, e depois de torturadas (por métodos iguais aos que George Bush agora pretende aplicar aos que considera terroristas), não puderam sequer, na sua maioria, ser enterradas. Um homem normal que dizia que os bons marxistas eram os marxistas mortos...
Morreu antes de ser preso, antes de condenado. Até desta justiça simples escapou. As condições que prevalecem no Chile levam a que seja enterrado com honras militares mas a Presidente Bachelet não estará presente no seu funeral. Pinochet tem mais sorte do que os homens e mulheres que assassinou, cujos corpos se encontram no fundo do mar. Fica a breve e triste consolação de saber que morre como um carrasco, morre como um assassino: mesmo os que o acompanham não deixarão de reflectir nisso.
A Baronesa Thatcher diz que se encontra «greatly saddened» pela morte de Pinochet e ofereceu à família as suas «deepest condolences». Triste pela morte do torcionário, nem sequer tem tempo para uma breve palavra dirigida às vítimas. Um pouco de vergonha não lhe ficaria mal.
5 Comments:
Bravo Zé Pedro, muito bem dito. So o posso apoiar nos seus comentarios justos e acertados. Falar nas vitimas, algures no fundo do mar, na justiça que nao cumpriu o seu papel. E denunciar a tentativa de "tapar o sol com a peneira" tentando rehabilitar " o ar demente por um sorriso forçado. Rodeado de filhos, rodeado de netos... Um homem normal, em suma."
E nao posso deixar de citar o comentario que voce me mandou hoje de manha, a proposito da Baronesa:
"O Pinochet morreu e a Tatcher disse que estava triste... Ficamos, assim, à espera que ela morra também." Genial!
Lembro-me do trauma que foi para a esquerda democrática europeia o fim da experiência chilena de Salvador Allende. Afinal não era possível chegar ao socialismo por um processo de transição pacífica. Esta constatação radicalizou muitos dos que lutavam por transformações sociais e económicas na Europa e também em Portugal, onde, de resto, havia um problema de base para resolver : o do restabelecimento do regime democrático. Tínhamos saído de mais um simulacro de eleições, de um congresso da oposição democrática em Aveiro, e a divisão entre os que se opunham ao regime autoritário de Marcello Caetano era feita muitas vezes a partir da dicotomia luta legal / acção revolucionária. O Chile de 73 que hoje lembramos pela morte do seu verdugo esteve sempre presente no Portugal do 25 de Abril: lembremo-nos das palavras de ordem de origem chilena O POVO UNIDO NUNCA MAIS SERÁ VENCIDO.
Até que enfim! novos artigos... ;)
Digo ao Zé Pedro que, palavra de ex-refugiado e sempre marxista, fiquei muito sensibilizado pelo tom justo, firme e digno do texto dele.
>Infelizmente os carrascos morrem quase sempre na cama: Salazar, Franco, Batista de Cuba, etc.
Transcrevo aqui um poema de Mario Benedetti, escrito a 10 de Dezembro, transmitido pela Lena e pelo Mário (cunhado), chileno que, como milhares de outros, foi torturado pelos sicários de Pinochet, que juntou o comentário final:
O
BITUARIO CON HURRAS
Mario Benedetti
Vamos a festejarlo
vengan todos
los inocentes
los damnificados
los que gritan de noche
los que sueñan de dia
los que sufren el cuerpo
los que alojan fantasmas
los que pisan descalzos
los que blasfeman y arden
los pobres congelados
los que quieren a alguien
los que nunca se olvidan
vamos a festejarlo
vengan todos
el crápula se ha muerto
se acabó el alma negra
el ládron
el cochino
se acabó para siempre
hurra
que vengan todos
vamos a festejarlo
a no decir
la muerte
siempre lo borra todo
todo lo purifica
cualquier día
la muerte
no borra nada
quedan
siempre las cicatrices
hurra
murió el cretino
vamos a festejarlo
a no llorar de vicio
que lloren sus iguales
y se traguen sus lágrimas
se acabó el monstruo prócer
se acabó para siempre
vamos a festejarlo
a no ponermos tibios
a no creer que éste
es un muerto cualquiera
vamos a festejarlo
a no volvernos flojos
a no olvidar que éste
es un muerto de mierda
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Que a terra lhe seja pesada!(SGA)
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ps si a alguien le duele la poesia de Benedetti , a mi todavía me duelen las palizas que recibí el día 12, 13, 14, 15 de Septiembre de 1973, nunca olvidaré la noche en el Estadio Chile en que me faltó corage para gritar asesino al celebre coronel Espinoza, pero lo peor fue la humillación obligada, el silencio consentido, por eso vorward und nicht vergessen ( adelante y nunca olvides, Brecht). Mário
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