Um racismo elementar, meu caro Watson
José Manuel Fernandes vem, no editorial do Público de hoje, defender que é inaceitável a decisão de cancelar a conferência de James Watson no Reino-Unido, no seguimento das declarações deste Prémio Nobel sobre uma pretensa menor inteligência dos negros. Não nega que essas declarações constituam um disparate, nem que o cientista tenha usado argumentos deploráveis – como disse um outro cientista, muito crítico em relação a Watson, verdadeiros argumentos de taberna. Mas acha que os que anularam a palestra foram mais longe: não se ficaram pelo disparate, impediram que o debate prosseguisse.
Estou muito contente por poder voltar à minha posição de princípio – que é a de contrariar José Manuel Fernandes, excepto em casos verdadeiramente excepcionais. Gosto francamente de poder discordar dele. Para mim, essas diferenças de opinião confortam-me na ideia de estar ainda lúcido.
Quanto ao triste caso que nos ocupa hoje, será que José Manuel Fernandes não percebeu que o que está em causa não é a posição de Watson – todos temos direito a proferir tolices e a democracia e o liberalismo estão aí (também) para proteger os asnos. O que se passa é que este é um homem com especiais responsabilidades: um cientista de nomeada, Prémio Nobel, com obra reconhecida, prestígio e notoriedade. Exige-se de pessoas na sua posição que pensem antes de falar porque o que dizem será ouvido com reverência. Palavras que poderiam aceitar-se se proferidas por José Manuel Fernandes ou por mim, num círculo restrito de amigos ou à mesa do café, e que dariam apenas lugar às críticas ou comentários do reduzido número de pessoas que as ouviriam e encolheriam os ombros interrogando-se sobre se teríamos enlouquecido, não são admissíveis quando pronunciadas por este homem público numa entrevista pública. A celebridade, a fama, o respeito dos pares, trazem consigo acrescidas responsabilidades.
Ainda podia dizer-se que as declarações de Watson reflectiam uma posição cuidadosamente pensada, baseada em argumentos científicos sérios ou, pelo menos, maduramente ponderados mesmo se errados – e estaríamos no campo da discussão científica, onde o que é hoje considerado asneira pode sempre vir a revelar-se o profícuo caminho do futuro. Mas não foi isso que se passou (como o reconheceu o próprio cientista nas suas atabalhoadas desculpas). Watson disse que os negros eram menos inteligentes do que os brancos, como sabe qualquer patrão que os emprega. Isto não é só uma rematada asneira: não se baseia em coisa nenhuma e é (será necessário lembrá-lo?) particularmente ofensivo. Porque Watson não pode ignorar que os negros, ou afro-americanos, ou africanos, foram, ao longo dos tempos, e em tempos ainda muito próximos, objecto de violência e discriminação, apenas por causa da cor da sua pele. Quando se fala de assuntos sérios, é preciso ser-se sério.
Para além de que a punição não foi particularmente severa: a anulação duma conferência ou a suspensão das actividades do cientista no seu laboratório de origem não se traduzem num castigo infamante ou exagerado. Não se trata de o silenciar, como pretende José Manuel Fernandes, mas apenas de censurar os seus erros. Os erros pagam-se, como costuma dizer-se. O preço nem sequer foi elevado. Nada que se compare ao que sofreram alguns homens por causa das opiniões de que Watson se fez eco.
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