José Carlos Ary dos Santos - Tourada
O Estado Novo já estava a dar o último estertor. Mas ainda ninguém tinha a certeza de que as coisas acabariam em breve. Foi por isso que esta canção, Tourada, provocou escândalo. Nós, os mais novos, ríamos deliciados: era uma instituição nacional que se punha em causa - com o «inteligente» a dizer que tinham acabado as canções. Os mais velhos - o meu pai, os meus tios, por exemplo - acharam tudo isto escandaloso - quase o fim do mundo. Houve mesmo um protesto dos peões de brega, que acharam que a canção os achincalhava - profissão que não pega!
Hoje, quando se fala de acabar com as touradas, estas coisas devem ser lembradas. Porque, na verdade, as touradas não são, nunca foram (lembre-se o conto de Rebelo da Silva, A ùltima Corrida de Touros em Salvaterra, que, nos nosso tempos, líamos nas escolas - um manifesto do Iluminismo contra os velhos e infamantes costumes) mais do que uma máquina de propaganda. E isto é dito por mim que, aos dezoito anos, e por razões familiares, gostava de touros. Estive, aliás, presente - e com grande entusiasmo - no Campo Pequeno, quando se comemoraram os cinquenta anos da alternativa de João Núncio. Mas há tradições que, simplesmente, não devem manter-se. Peço desculpa à Antónia, minha amiga - mas, há poucas semanas, falando com ela, compreendi que, com o seu Pai, um homem que amava os touros como ninguém, seria impossível para ela ter uma opinião diferente.
Foi ainda a Ary dos Santos e Fernando Tordo que ficámos a dever esta pedrada no charco. Uma canção que punha em causa todo o imaginário do Estado Novo - se faltava falar, com todas as letras, do futebol, do fado e de Fátima, toda a gente percebeu que isso se escondia debaixo da metáfora desta tourada muito especial. Um ano depois, o regime desaparecia. Dez anos depois, ninguém se lembrava dele. Hoje, a juventude nem sabe que ele existiu mesmo se Salazar é ainda considerado a personalidade portuguesa mais popular de todos os tempos em estúpidos concursos de televisão.
Naquele tempo, havia uma liberdade crítica que mesmo hoje, por vezes, nos falta. E as canções do Festival RTP tinham interesse.
Tourada
Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
esperas.
Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.
Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.
Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.
Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.
Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram asa canções.
Ouvir a Tourada aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=ZrQzEXIUYQQ
Ou aqui, no Festival da Eurovisão:
http://www.youtube.com/watch?v=TZgMMXyFouQ&feature=related
E perdoe-se, que num caso quer noutro, porque se tratava duma época diferente, o kitsch de ambas as interpretações!
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